Em Abril do ano passado, o Público anunciou uma forte aposta nos temas ambientais, destacando seis jornalistas, numa equipa de 10 pessoas, supervisionados por duas editoras de Ciência, e através de um modelo assente em parcerias ao estilo de mecenato. Assim nascia o Azul. Mas o único contrato que, entretanto, veio a público com um dos parceiros iniciais (Biopollis) é afinal uma prestação de serviços, envolvendo 90 mil euros em seis meses. Entretanto, na semana passada, o Público alargou os serviços do Azul: vai fabricar conteúdos editoriais para organismos estatais. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) é o primeiro cliente e vai pagar 31 mil euros. E ainda trata o Público como “prestador de serviços”, exigindo prévia revisão dos podcasts a produzir.
Azul – assim se chama o projecto editorial do Público apresentado, em Abril do ano passado, como um modelo de jornalismo independente dedicado em exclusivo ao Ambiente.
Considerando “a crise climática como a grande causa política das novas gerações”, na verdade o Azul também mostra uma outra crise: a do jornalismo a transformar-se numa plataforma de conteúdos prêt-à-porter, onde se mercadejam “conteúdos comerciais” como informação, e onde até institutos públicos, como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), podem garantir, através de pagamentos, a execução de conteúdos controlados com prévia validação.
Desde a sua fundação, integrado na edição digital do Público, os responsáveis do Azul diziam, no respectivo estatuto editorial, ser um projecto de jornalismo de causas ambientais – com a biodiversidade, a sustentabilidade e a crise climática como bandeiras –, e que, estando aberto à sociedade civil, contava “com o apoio de parceiros comprometidos com agenda do ambiente para financiar a sua equipa e a sua operação”.
Na linha da frente, como parceiros, foram então destacadas quatro entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biopolis – um consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier –, a Lipor – a empresa pública de tratamento de resíduos do Grande Porto, cuja central de incineração é um dos focos mais importantes de emissão de dioxinas em Portugal – e a Sociedade Ponto Verde – uma das empresas gestoras de resíduos de embalagem.
Para garantir a execução do Azul, a direcção editorial do Público – então comandada por Manuel Carvalho – destacou, além de duas experientes jornalistas da área da Ciência, como editoras (Teresa Firmino e Andrea Cunha Freitas), uma equipa de 10 pessoas, das quais seis jornalistas, o que implicaria a impossibilidade de elaboração de conteúdos comerciais ou a subordinação a entidade externas.
Porém, apesar de o Público ter garantido que o Azul seguiria “um modelo de cooperação e mecenato cada vez mais frequente em projectos jornalísticos na Europa e nos Estados Unidos”, e que “os parceiros e o jornal reconhecem que uma condição crítica para o sucesso” deste projecto editorial “passa[ria] pela transparência e pelo respeito integral das regras profissionais e deontológicas do jornalismo consagradas na lei”, a realidade mostra-se bem diferente.
Com efeito, embora ainda sejam desconhecidos os protocolos com três dos alegados mecenas conhecidos do Azul – apesar de solicitados pelo PÁGINA UM à direcção editorial do Público –, sabe-se agora que a Biopolis fez afinal um contrato de prestação de serviços com a administração do jornal, pelo menos no período compreendido entre Março e Agosto deste ano.
Assinado nos primeiros dias de Março passado, este contrato estabelece a entrega pela Biopolis de 90 mil euros, mais IVA, a troco da “aquisição de serviços de divulgação e promoção da cultura científica, através da promoção de conteúdos subordinados aos temas da biosfera, sustentabilidade e crise ambiental”.
A questão polémica nem estará tanto na imposição – como “obrigações gerais do Público”, de acordo com a cláusula 4º do contrato – de o jornal, perante o parceiro (uma entidade externa à linha editorial) ter de identificar temas e elaborar artigos noticiosos temáticos.
Na verdade, o contrato transcende a Lei da Imprensa – o próprio Estatuto do Jornalista – porque considera, como obrigação, “a publicação de 26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não consta no Portal Base nem foi disponibilizado pelo Público]”.
O articulado desta obrigação é, aliás, muito sui generis, pois acrescenta que os 26 artigos obrigatórios, devem resultar “de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis”, mas acrescenta a seguir que essa escolha tem de ser feita “entre os projectos científicos disponibilizados por esta [Biopolis], a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para posterior divulgação ao público” Ou seja, se a Biopolis indicar ao Público apenas 26 temas para artigos, o jornal assume que a sua escolha é completamente independente.
Mesmo que um editor do Azul até considere que todos os temas propostos pela Biopolis não têm interesse jornalístico, e que seria mais interessante que os jornalistas dedicassem tempo e recursos a outros assuntos, o Público tem sempre a obrigação de pegar em 26 temas indicados pelo consórcio universitário.
Saliente-se que um dos critérios das avaliações de projectos de investigação nas universidade é o impacte mediático e social. Portanto, a independência editorial do Azul logo aqui aparenta ser uma miragem.
O contrato ainda acrescenta que os textos publicados no âmbito deste contrato terão como referência o serem “promovidos pela Biopolis”, mas também aqui se usa uma falácia: um pagamento sob a forma de contrato, estipulando um número pré-definido de artigos, jamais pode ser rotulado como conteúdo “promovido” ou “patrocinado”. E, se assim fosse, existem fortes dúvidas de legalidade sobre se poderá ser escrito e assinado por um jornalista, uma vez que lhe estar vedado por lei a possibilidade de contribuir para a execução de contratos comerciais.
Além disso, o contrato da Biopolis estabelece o cumprimento de prazos – ou seja, se o consórcio universitário desejar que saia publicado determinado artigo em certo dia, tal terá de se verificar – e também a obrigação de o Público “prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que esta assim o requeira”. Em suma, fica assumida uma linha aberta entre um jornal e quem lhe paga serviços.
Na semana passada, quando contactada pelo PÁGINA UM, a direcção editorial do Público – então ainda liderada por Manuel Carvalho – garantiu, apesar do exposto, a independência do Azul, acrescentando ainda que a Biopolis é uma rede de cientistas, e que “em causa não está uma empresa vocacionada para finalidades comerciais”. Em todo o caso, saliente-se que a Universidade de Montpellier está associada à Agência Nuclear de Energia – ligada à OCDE – e à Agência Internacional de Energia Atómica, numa altura em que está em crescendo o lobby que apresenta a energia nuclear como “energia limpa” numa perspectiva de descarbonização da Economia.
Manuel Carvalho assegurou também que “nenhum dos outros contratos” com os outros parceiros “incluem qualquer tipo de obrigação”, embora o PÁGINA UM não tenha conseguido, até agora, ter acesso nem constem no site do Azul.
Mas se este contrato com a Biopolis já é polémico, pior ainda é aquele assinado no passado dia 25 de Maio com a CCDR-N, e detectado na passada sexta-feira pelo PÁGINA UM no Portal Base. Além de ser uma “parceria” com um instituto público sob administração directa do Estado – tutelado pelo Ministério da Coesão Territorial em coordenação com o Ministério da Modernização do Estado –, as cláusulas constantes do caderno de encargos constituem, sem margem para eufemismos, um despudorado atropelo às elementares regras deontológicas e de independência jornalística.
De facto, a troco de 31.000 euros pagos pela CCDR-N no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.
Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.
Isto para além de o Público ficar “também obrigado a apresentar” à CCDR-N, “sempre que solicitado, um relatório com a evolução de todas as operações objecto dos serviços e com o cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato”. E até há a nota de que todos os relatórios, registos, comunicações, actas e demais documentos “devem ser integralmente redigidos em português”.
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero – que integra o conselho consultivo do Azul, e que, no ano passado, tinha elogiado a independência do projecto do Público, afirmando ser este factor “um elemento a valorizar” – diz-se surpreendido com este tipo de contratos. “Levanta-me dúvidas ver a existência de contrapartidas”, afirma este professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, para quem “se mostra fundamental haver uma clarificação”.
Por sua vez, Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, mostra-se estupefacto tanto com a tipologia dos contratos como com os termos usados. “A nossa prestação, como jornalistas, é para os nossos leitores, e não pode ser para entidades externas, através de prestação de serviços”, diz, acrescentando que “o mecenato é um instrumento fundamental no jornalismo, mas não pode é surgir depois sob a forma de contratos em que se exigem contrapartidas”. Para Luís Simões “há uma necessidade de reflexão sobre este tipo de contratos”.
O PÁGINA UM tentou, especificamente sobre o contrato do Público com a CCDR-N, ouvir David Pontes, o novo director do jornal do Grupo Sonae, desde o início do presente mês, mas não obteve resposta.
Também se expôs à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) os contratos assinados pelo Público, no âmbito do projecto editorial Azul, para obtenção de um comentário, mas apenas foi acusada a “boa recepção da sua mensagem”, com a promessa de ser dado “seguimento coma brevidade possível.”
Recorde-se que em Maio do ano passado, o PÁGINA UM compilou 56 contratos com sinais de promiscuidade e ilegalidades assinados entre grupos de media e entidades públicas mas não existe, até agora, conhecimento da conclusão de diligências.
Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 24 de Outubro de 2023 por determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cujo texto pode ser lido aqui.