Título
Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro
Autora
SUSANA MOREIRA MARQUES
Editora (Edição)
Companhia das Letras (Abril de 2023)
Cotação
18/20
Recensão
Susana Moreira Marques já me tinha, agradavelmente, surpreendido com o seu livro: Agora e na hora da nossa morte.
Aqui o relato é outro, mas igualmente envolvente e emocional.
De Maio de 1948 a Maio de 1950, foi publicado em fascículos, para fugir à censura, o livro As mulheres do meu país, de Maria Lamas. É uma obra considerada um marco monumental do jornalismo que levou a autora a percorrer o país e a contactar mulheres de todos os extratos sociais dando a conhecer aos seus leitores a vida das portuguesas, sobretudo as das zonas rurais, nos anos 40.
Confrontada com a indiferença do Governo em relação à condição feminina em Portugal, Maria Lamas respondeu que "iria observar como vivem as mulheres portuguesas e confirmar se os seus problemas estão realmente resolvidos" e "imagina que pode ganhar algum dinheiro, imagina que pode provar que as mulheres não estão protegidas pelo país fora como o Governo dizia que estavam, talvez imagine mesmo que pode ajudar à mudança, ainda que não seja claro que aspeto terá essa mudança para as mulheres.”
Foi assim que decidiu empreender a grande viagem por um Portugal ditatorial, subdesenvolvido e analfabeto. Encontrou miséria, ignorância, superstição, obscurantismo, falta de condições básicas de higiene e de salubridade e falta quase total de cuidados médicos.
Viajou de autocarro, de carro, de carroça, a pé, de burro, subiu e desceu montes e vales, falou com centenas de pessoas, tirou centenas de fotografias, opinou, interpelou, confrontou, foi mais fundo e muitas vezes comoveu-se e entristeceu-se e quase sempre se revoltou.
Relatou com realismo a vida das operárias, das intelectuais e das artistas. Fez um retrato pungente que ainda hoje nos impressiona pela magnitude e pela minúcia.
Em 2022, setenta anos depois, Marta Pessoa, realizadora de cinema, aborda o processo de escrita deste livro, recorrendo aos diários e ao espólio de Maria Lamas, e faz o documentário “Um nome para o que sou”.
Pede a Susana Moreira Marques, jornalista e escritora, que se junte a ela na reflexão sobre a própria matéria e forma do livro e as leituras e significados que pode trazer, na atualidade.
Diante da câmara, Susana Moreira Marques procura colocar-se no lugar de Maria Lamas e olhar para o lugar que as mulheres ocupavam antes e ocupam hoje num diálogo e num jogo de olhares. Há o olhar de Maria Lamas sobre as mulheres, o olhar da escritora sobre Maria Lamas e o livro, e ainda o olhar da realizadora (do filme) que se envolve e simultaneamente observa todo este processo.
Há as imagens e as palavras, de antes e de hoje. “Quando cheguei ao fim da viagem, o que aconteceu foi que, depois de ter gravado a voz off do filme [que estreou em 2022], percebi que o texto tinha uma vida própria e havia muito material ainda, que tinha escrito ou pensado e não tinha entrado, e decidi que precisava de continuar a escrever”, revela a escritora e jornalista.
E é esta Susana que parte, país fora e nos conta: “Em 1949, eu não existia. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha o seu dinheiro, que não é casada, mas partilha a vida com alguém, que tem filhas pequenas e, em vez de ficar em casa a cuidar delas, viaja.” E diz-nos:
“Fazes também, mentalmente, uma lista do que não levas:
Não levas um marido.
Não levas o pai.
Não levas a autorização de um homem para viajar.
Instruções e ordens alheias.
Uma série de regras não escritas, mas bem estudadas.
Não levas percursos interditos assinalados no mapa.
Nem, no itinerário, paragens proibidas por questões de moral.
Em 1949, a minha mãe está na barriga da minha avó.
Em 1949, a minha avó tem 23 anos. Está casada. Tem um filho de um ano. Anda com cargas à cabeça sem se desequilibrar do rio para as fábricas.
Sei que a minha avó não está entre essas mulheres com quem Maria Lamas acaba de ir falar, mas eu procuro-a.
Susana Moreira, seguindo, pois, os passos de Maria Lamas também enche cadernos com notas sobre os lugares por onde passa, mas em vez de grandes descrições escreve pequenos apontamentos, frases curtas que nos deixam suspensos e que são pequenos versos de poesia.
Na maior parte dos lugares por onde passa repara que mudou quase tudo, “menos a luz”. Já não encontra crianças descalças, nem mulheres a empurrar carroças sempre a meio de um trabalho qualquer, carregando cestos, grandes fardos e cântaros à cabeça.
Mas encontra outras mulheres (às vezes as mesmas, muitos anos depois) e vai fazendo a ponte entre uma mulher que não aparece no relato de Maria Lamas, a sua própria avó, e a sua própria filha que, ainda criança, a acompanha na contemplação desses imagens antigas. Susana Moreira Marques define-se como uma “mulher à janela” e “alguém que escuta”. É uma mulher que se surpreende e é nesse deixar-se surpreender que começa a sua viagem:
“Unes pontos no mapa. Observas o desenho. Perguntas se é isso o país. Levas cadernos, canetas, câmaras, instrumentos digitais ou analógicos, mas sempre com a mesma função de registar o que se vive. Levas também um livro. Levas o livro como se fosse um guia de viagem, mas um guia que poderia servir para muitas outras viagens para o resto da vida, oferecendo várias possibilidades e não um só percurso. Leva-lo como se leva uma bíblia, para ter perto da cama quando se descansa, à mão em momentos de grandes dúvidas e receios. Leva-lo como um manual que torna mais fácil a compreensão da vida prática que tem sempre que ser desvendada. Ou como se fosse um volume esotérico, um instrumento mágico, que dará acesso ao que há muito está desaparecido. “
E é uma viagem enternecedora e que nos ajuda a percebermos melhor o país que fomos e que, em muitos casos, continuamos a ser.