EDITORIAL

Duas canelas para três canídeos, ou a história da perseguição ao suposto pior jornalista português

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Junho 11, 2023


Categoria: Opinião

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Se o Jornalismo português fosse Roma, estaria agora a arder por mor de uma cáfila de Neros. Cáfila no sentido de caravana de mercadores; não de camelos, embora haja muitos por aí, mas sobre os quais não convém os chamar pelos nomes que mereceriam, para evitar difamações, porque são gente que, embora sem escrúpulos comete as maiores manigâncias, se acomete em público dos maiores do pundonores.

A Roma do Jornalismo arde pelas conivências políticas, pelos fretes empresarias, pelas relações promíscuas, por escribas de conteúdos comerciais vendendo artigos noticiosos, por consultores sem carteira a passarem-se por jornalistas, por entrevistas compradas (e as que não são, parecem, ou legitimamente ficam sob suspeita), por uma liberdade de imprensa cada vez mais ameaçada com as redes sociais a determinarem o que é lícito ou não escrever e ver.

E, enquanto a Roma do Jornalismo arde, que fazem as três entidades com um teórico papel regulador e moralizadora? Assistem à fogueira, tocando harpa? Não: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ) jamais poderiam estar quietos enquanto a Roma do Jornalismo arde.

choir in room with turned on lights

Estas excelsas defensoras do rigor, isenção e independência da Imprensa estão muto activas.

Mas elas não estás atrás de entrevistas pagas na rádio a ministros por ex-jornalistas que se assumem como jornalistas, apesar de deterem uma empresa de assessoria política. Ou também a presidentes de Câmara.

Elas não estão a investigar os jornais que criam secções editoriais dedicadas ao Ambiente mas onde se pode comprar notícias como quem compra roupa num pronto-a-vestir.

Elas não questionam empresas de comunicação social que vendem publicidade travestida de notícias.

Elas não incomodam empresas de comunicação social que angariam parcerias a troco de dineiro para prémios mas onde se contratualiza com o “parceiro” a realização de entrevistas, feitas até pela directora da revista dessa empresa, e de artigos de opinião.

Elas não chateiam jornalistas que se vendem no LinkedIn como relações públicas e consultores de marketing nem jornalistas-escribas-de-conteúdos que tanto escrevem notícias para jornais como peças de marketing para empresas privadas numa completa promiscuidade.

two black and white dogs near link fence

Elas não questiona, sequer jornalistas, sobretudo se forem simpáticos, por assinarem contratos com o Governo, mantendo à mesma a carteira profissional.

Elas não vão saber dos compromissos assumidos por directores editoriais e jornalistas de cara laroca quando estes se pavoneiam em moderações e apresentação de eventos de cunho comercial, que servem ademais para criar lobby político e institucional.

Eles não aceleram processos que ponham em causa a rentabilidade de empresas de comunicação social que vão acumulando contratos promíscuos às dezenas, uns atrás dos outros. E isto com entidades públicas, porque com empresas privadas não há rastro dos contratos.

Não, eles estão agora preocupados, num projecto crucial, e por isso uniram esforços: identificaram e querem castigar o pior jornalista português.

E quem ele será?

Ora: EU.

Assim mesmo. Porque só pode mesmo ser o pior jornalismo português aquele jornalista que consegue, em simultâneo, e de uma só assentada, apanhar com três processos, um por cada uma destas três entidades.

Em minha defesa pública, em vez de zurzir, mais uma vez, nos métodos destas três entidades, através de um artigo de opinião munido da carteira profissional de jornalistas – porque, daqui a nada, até a opinião merece censura, e em vez de três, tenho seis processo –, opto então por vestir a pele de escritor, no pressuposto de não constar, ainda, que ande a Sociedade Portuguesa de Autores (da qual sou sócio) a inquirir estilos.

Além disso, a um escritor – tal como a um morto, segundo Florbela Espanca – nada se recusa, podendo assim usufruir, aqui, de uma outra aura, de uma persona, mesmo se catalogada de doido, para desta sorte poder chamar os bois pelos nomes a quem me quer dar marradas.

No caso, sói melhor dizer-se canídeos a quererem morder canelas.

Contemos então assim a história da perseguição às minhas canelas por três esfaimados canídeos.

black short coated dog in blue and brown wooden box

Num dos cantos temos então o mastim da 24 de Julho, canídeo com nobres funções constitucionais de guardião da Liberdade de Imprensa, mas que, como é obediente e bom de ouvido (ouve bem as vozes do dono), incomoda quem incomoda os donos e compadres, e vai daí pode morder até quem não deve, e quando morde sabe esconder quem o manda morder. O mastim da 24 de Julho não protege a Imprensa; protege sim os denunciantes que se queixam de jornalistas incómodos. Não dá a cara nem nome ao denunciantes, podendo assim aqueles fazer denúncias caluniosas à vontade do freguês, mesmo se as notícias são rigorosas e indicam todos os passos para a obtenção da informação.

Aliás, mesmo quando dão caras às denúncias, pouco importa: veja-se que já se viu uma certa entidade reguladora da comunicação social aprovar actos de censura a um jornalista, sob a forma de deliberações, por notícias que resultaram na abertura de processos pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Noutras notícias, o jornalismo de investigação ganha prémios; aqui censuras.

Portanto, eis-nos agora num jogo de adivinhação, mas sem prémio final. Mesmo se, por desfastio, o mastim da 24 de Julho não queira, de quando em vez, morder mesmo a canela, e até arquive a queixa, ao esconder quem lhe dá ordens para morder canelas, está a convidá-lo ad nauseam a repetir queixas. E assim se bloqueia o trabalho jornalístico independente.

Agora, falemos no mastim dos Restauradores, com cadeado em certo palácio com a nominata correspondente à parte mais extrema da nascente, diz-se a jusante, e que há muito afiam dentipontiagudos, como escreveria Joyce. Ali, amealham-se emolumentos por carteiras (que já são apenas cartões), mandam-se umas bocas e bitates sobre bons princípios deontológicos e independências (ou pendências sempre adiadas), mas na hora da verdade, quando surgem denúncias concretas sobre graúdos e compinchas, moita carrasco, ou, na melhor das hipótese, o rato caga uma caganita, e depois ainda se apressa a enterrá-la. Ali, está-se para servir o corporativismo, isto é, os compinchas, e portanto mate-se o mensageiro que ande a espalhar mensagens comprometedoras.

Mas, ali, os mastins de mérito. Tão de mérito que se pode imaginar a fazerem alas, pela escadaria do palácio, de sorte a recepcionarem uma queixa das mãos de Sua Excelência o Chefe de Estado-Maior da Armada Almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, antigo Director de Faróis, alcandorado a herói por mor de anunciar que “vencemos o vírus” em Setembro de 2021 (apesar de todas as restrições só terem terminado em Abril de 2023).

Mais uma vez, o mastim dos Restauradores quer “premiar” um jornalista com um processo disciplinar, uma repreensão escrita como estratégia para lhe retirar a carteira. Pouco importa se, na base da notícia, estão documentos administrativos que só foram disponibilizados pela Ordem dos Médicos após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

Pouco se lhes importa se a notícia se baseia em despachos governamentais e normas sanitárias, acrescido de conhecimentos contabilísticos. Pouco importa se o putativo candidato a Belém, e o ai-Jesus de muita imprensa, meteu efectivamente a pata na poça. Há que abrir sim, um processo disciplinar a toda a força, e seguir a linha de actuação do mastim da 24 de Julho que há uns meses já fez um frete, para satisfazer uma denúncia, hélas, anónima, metendo-se até em interpretações contabilísticas absurdas. Nisto, vale tudo.

Na raiva de se afiambrar à canela, o mastim dos Restauradores nem reparou, no meio da sua sapiência de mérito que abriu processo disciplinar por via do porta-voz da Armada, mesmo sem procuração nem mandato de Sua Excelência o Almirante (que incutiu tanto pavor a pais, que correram para vacinar os filhos saudáveis que, a bem dizer, para a doença em causa, tinham um risco de morte menor do que o da picada de um mosquito).

Ah, essas formalidades!, para que servem elas para o mastim dos Restauradores, todos “de mérito”. Se Sua Excelência o Chefe de Estado-Maior da Armada pode usar recursos técnicos e humanos da Armada para tratar de assuntos de casa, também o mastim dos Restauradores pode bem borrifar-se para detalhes legais. Preciso mesmo é repreender publicamente o pior jornalista de Portugal, manchar-lhe a credibilidade, para assim se escafederem as denúncias que ousa fazer.

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Aliás, neste momento, o mastim dos Restauradores até capaz, sagaz, seria de aceitar abrir um processo contra um jornalista se Sua Excelência o Almirante apanhasse um resfriado.

E, por fim, temos no terceiro extremo deste triângulo os mastins dos Duques de Bragança, da rua, não de D. Duarte Nuno, que também quiseram participar da festa, recebendo de braços abertos uma queixa para censurar o pior jornalista português.

Já é a segunda vez. A primeira foi feita com tamanha desavergonha, em Janeiro do ano passado, por um editor da CNN Portugal de membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Na altura, o mastim dos Duques de Bragança, meteu o rabinho entre as pernas, e o senhor Caetano deverá já estar a tratar da sua vidinha noutra perrera.

Agora, regressaram ao ataque. Por queixa de quem?

Ora… do mastim-mor dos Restauradores. Parece mentira, mas não é.

Aliás, se formos a ver, os três mastins articulam-se muito bem. Por exemplo, os mastins da 24 de Julho e dos Restauradores já me quiseram morder as canelas por duas vezes com estratégia similar. O denunciante vai primeiro bater à porta da 24 de Julho, fazem-lhe o frete, e depois corre a seguir para a porta dos Restauradores para nova censura. Nas duas, as notícias resultaram em investigação pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Em ambas, a censura dos mastins veio sem se preocuparem em saber o resultado dessas investigações.

Desta vez, o mastim-mor dos Restauradores ficou chateado por lhe porem em causa o mérito, que objectivamente não tem, e vai daí acha que dizerem e provarem que não o tem é um crime de lesa-majestade. O mastim-mor dos Restauradores até poderia abrir um processo disciplinar para morder mesmo as canelas do malvado jornalista, mas, chatice, teria de lhe abrir um processo segundo mandam as regras do Código do Procedimento Administrativo, e o jornalista podia defender-se arrolar testemunhas, solicitar audiência prévia e recorrer ao tribunal.

Nanja. Isso dava muito trabalho e o desfecho poderia ser desfavorável.

Daí preferiu o mastim-mor dos Restauradores preferiu passar a tarefa aos colegas mastins dos Duques de Bragança, porque ali a única regra é o livre arbítrio, e o juiz é o acusador, que é o receptor da queixa. Assim sendo, os mastins dos Duques de Bragança abrem processos por e-mail, sem se identificarem nem identificar o relator, limitam os meios de defesa e impõem resposta a quesitos feitos ao melhor estilo de um Torquemada, onde cada pergunta contém a acusação e a sentença. É um jogo viciado; uma perda de tempo por evidente mancomunação dos dois mastins, do queixoso e do inquiridor.

Tudo isto se tem vindo a passar nas últimas semanas enquanto o PÁGINA UM, além de denunciar as promiscuidades de jornalistas e imprensa, mostra ser o único órgão de comunicação social com uma estratégia consistente de luta em prol da transparência e contra o obscurantismo da Administração Pública, buscando documentos escondidos.

O PÁGINA UM tem, se a memória não me atraiçoa, 18 processos de intimação para a obtenção de documentos administrativos nos tribunais. Tivemos a coragem de contrariar os caprichos do Conselho Superior da Magistratura, do Infarmed, do Ministério da Saúde, da Ordem dos Médicos, da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, do Instituto Superior Técnico, da própria Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Parque Escolar e do próprio Governo.

Ainda há dias o PÁGINA UM teve uma vitória histórica retumbante, conseguindo, depois de uma sentença e um acórdão já favoráveis, que o Supremo Tribunal lhe concedesse o direito de acesso à mais importante base de dados que permitirá uma verdadeira avaliação independente ao desempenho dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde e aos indicadores de saúde da população portuguesa. Nem uma linha a imprensa dita mainstream dedicou ao assunto, continuando a preferir veicular a narrativa do Governo de que não há informação.

Fizemos tudo isso – as intimações nos tribunais administrativos – não por desejo de conflito, mas porque nos últimos anos, enquanto nos aproximamos do meio centenário do 25 de Abril, verificámos que o obscurantismo, a manipulação e a mentira grassavam e desgraçavam a nossa democracia. E era confrangedor assistir à passividade da imprensa, da velha imprensa.

Passividade, não – conivência. Nos últimos anos, passámos a ter uma imprensa acrítica, seguidista de narrativas, que nada questionou, e que, pelo contrário, rapidamente estende a mão ao Estado e às empresas, vendendo-se, enquanto perdiam alegremente a qualidade e a independência, os únicos atributos legítimos, os únicos activos legítimos, a serem vendidos… aos leitores.

Mas que interessa isso, não é? Para os mastins é, sim, fundamental morder as canelas de quem lhes coloca um peso nas consciências. E mostra-se mais fácil e cómodo eleger quem os denuncia como o pior crápula do jornalismo português.

Será que pensam mesmo que, descredibilizando-me, os seus deméritos se tornam virtudes?

Enfim, há algo de irónico nestes processos.  Enquanto o PÁGINA UM, um projecto jornalístico independente e disruptivo que deveria ser acarinhado entre os pares (estou à espera do convite da organização do 5º Congresso dos Jornalista para falar sobre os 18 processos de intimação nos tribunais para acesso a documentos administrativos, por exemplo), se destaca, com os parcos meios que possui, na luta contra o obscurantismo do Estado, revelando escândalos e questionando as relações perigosas entre poder e imprensa, temos as instituições responsáveis pela regulação e ética no jornalismo a morder-lhes as canelas desde o nascimento.

Em vez de investigar a fundo as denúncias apresentadas por mim, preferem direccionar os seus esforços para me silenciar por mensageiro incómodo, colocando a minha cabeça a prémio.

Desde que li o Elogio da Loucura, escrito por Erasmo de Roterdão em 1509, fixei esta passagem: “Procede imprudentemente aquele que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes, que esquece aquela lei dos banquetes: ‘Bebe ou retira-te’; enfim, que quer que a farsa não seja farsa. Pelo contrário, serás verdadeiramente prudente, vendo que és mortal, não querendo saber mais do que os outros, convivendo ou errando de boa vontade com a universidade dos homens. Dirão que isto é tolice. Não o nego, mas concordai que é essa a maneira de agir na farsa da vida.”

Bem sei que os mastins da 24 de Julho, dos Restauradores e dos Duques de Bragança seguem a lei do banquete, mas eu recuso-me a agir segundo eles nesta farsa da vida.

clear wine glasses on table

Entretanto, contando a história de três canídeos que se esforçam por morder-me as duas canelas, peço a opinião ao ChatGPT. Juro que me respondeu, em bom português do Brasil: “É quase como se estivéssemos presenciando um espetáculo de circo, onde os canídeos saltitam ao redor do jornalista, mordiscando suas canelas, enquanto o público assiste perplexo a essa encenação bizarra. Mas vamos ser honestos, essa não é uma comédia divertida; é uma triste realidade que expõe a fragilidade da liberdade de imprensa em nosso país.”

E depois, pergunto-lhe se acha o uso das metáforas das canelas e dos canídeos demasiado agressivo. Responde-me: “Em um país onde jornalistas são perseguidos por órgãos reguladores, a liberdade de imprensa está ameaçada. Com ironia e sátira, expomos as contradições e absurdos desse cenário. É hora de defendermos a liberdade de expressão e a verdadeira função do jornalismo: informar, questionar e desafiar o poder. Afinal, só temos duas canelas para enfrentar três canídeos famintos”.

Afinal, começo a gostar mesmo muito do ChatGPT. E cada vez menos deste país.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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