Há séries que desafiam as noções de subjectividade sobre grandeza e entram numa concórdia geral, podendo haver apenas pequenas discórdias sobre a posição a ocupar numa qualquer lista pessoal de melhores séries já criadas e vistas por milhões.
Sabemos que, ao longo do tempo, a posição de número 1 é, e tem de ser, volátil ou dinâmica, para que haja espaço para o que ainda não foi feito, e para que nos possamos surpreender. Decorre, portanto, que este lugar fique ou vazio ou se mostre plástico.
Porém, lugares à parte, haverá sempre um pequeno número de obras que, por mais do que uma razão, teimam em ficar na memória e tornam-se até um arquétipo, que só é possível se sobreviverem ao teste do tempo e assim servirem de inspiração para outras ideias futuras.
É o caso de The Wire.
Passaram este mês de Junho, os 21 anos daquela que é (na minha opinião) a melhor série policial já criada, e que deve figurar nos lugares cimeiros das melhores séries de televisão.
São muitas as razões que levam The Wire ao lugar onde merece estar, e a homenagem é tão evidente como essencial para os milhões de apreciadores. E para aqueles que ainda a possam ver.
Em primeiro lugar, como o seu criador teve um jornalista com um passado em jornalismo criminal, David Simon, e também Ed Burns, um ex-polícia tornado escritor.
David Simon, nascido em Washington, trabalhou 12 anos como repórter policial no The Baltimore Sun, o que lhe conferiu um conhecimento acentuado sobre a criminalidade daquela cidade, tendo-lhe servido como inspiração para os seus primeiros trabalhos de ficção: Homicide: a year on the killing streets (1991) onde relata o seu testemunho após um ano de colaboração com a unidade de homicídio da Polícia de Baltimore; e mais tarde, em 1997, The corner, uma história sobre as vidas dos passadores e vendedores de droga nas esquinas da cidade, claro está, de Baltimore, onde já colaborou com Ed Burns.
Este livro deu lugar a uma minissérie de seis episódios no ano 2000 e recebeu três Emmys, para melhor série, melhor realizador (Charles C. Dutton) e melhor escrita para minissérie, este último para David Simon, marcando a sua primeira adaptação de um livro para televisão.
Por sua vez, Ed Burns é um veterano do mal afamado Vietnam, que mais tarde se tornou um detective da polícia de Baltimore. Antes de se reformar, deu ainda sete anos da sua vida à profissão de professor. Após o sucesso do livro e minissérie The corner, onde Burns tem também créditos como escritor da adaptação televisiva, embora a chefia pertença a Simon.
The Wire é assim uma consequência de um repositório dos conhecimentos adquiridos pelos seus escritores. É, antes de mais, esta a chave do seu sucesso, criada por pessoas que sabem do que por lá se passava e viram em primeira mão os assuntos sobre os quais depois se debruçam, o que confere uma autenticidade indiscutível.
Embora se possa afirmar que existe um protagonista, Jimmy Mcnulty, interpretado pelo actor britânico Dominick West, The Wire não se cinge às histórias de um polícia nem a episódios individuais separados como as séries policiais clássicas do género Law & Order. Desta forma o verdadeiro protagonista é Baltimore e tudo o que acontece nesta cidade do estado de Maryland.
As cinco temporadas, que entre 2002 e 2008 deliciaram os seus fãs, contam as histórias dos polícias, criminosos e políticos, e exploram vários sectores e locais da cidade de Baltimore e as suas idiossincrasias. Esta é também umas das outras chaves do seu sucesso: contar várias histórias a um ritmo paulatino, onde o espectador se imersa nas vidas de personagens com e sem longevidade, e onde nunca se sabe quem morre e quem vai ficando. Isto tudo dentro de uma grande e longa história de 60 episódios.
A vida de todas estas personagens roda à volta das relações de poder entre si e ao jogo de rato e gato entre todos os intervenientes. Ao longo da série podemos ver como o arco das personagens é criado consoante as suas posições hierárquicas, a sede de poder hegemónico e o que farão para manter ou subir nos respectivos rankings. The Wire é também uma série sobre ascensões e quedas e a forma como uns caem e outros emergem, e onde os poderosos exploram (enquanto podem) os mais fracos numa relação de interdependência.
Embora tenha um elenco com algumas caras conhecidas do grande público – como Idris Elba, Wendell Pierce, Lance Reddick e Aidan Gillen –, The Wire não dependeu da popularidade passada de uma estrela principal. Por isso, é o ensemble que faz a série resultar bem, tal como a humanização das personagens, através do storytelling. Esta é, na verdade, outra das chaves do seu sucesso.
Não menos importante são os sectores descritos da cidade de Baltimore. Se numa das temporadas o foco vai para os estivadores, sindicatos e as ilegalidades cometidas pelos seus representados, The Wire traz também à luz os problemas do ensino e das relações entre filhos de criminosos (alunos) e professores bem intencionados, algo que é baseado na experiência directa de Ed Burns. Há lugar ainda para a corrupção política, racismo, pobreza e os media.
Outro aspecto que fez de The Wire um sucesso, para além da imoralidade que rasga por completo as convenções clássicas do bom e do vilão, é a vertente estética. Existe uma sensação de documentário enfatizada pela falta de música, que normalmente serve o propósito de manipular o espectador para uma emoção pré-pensada. Os sons mais utilizados são os próprios da cidade, como as buzinas, os tiros, as sirenes e som de fundo, que ajudam à imersão da audiência em cada episódio, e transformando a série numa longuíssima metragem.
Ainda há que adicionar dois pormenores interessantes, que podem passar despercebidos mas que também ajudam a explicar o sucesso desta série.
O primeiro é a música do genérico, Way down in a hole”, original de Tom Waits, que se mantém ao longo das cinco temporadas, mas nunca é tocada pelos mesmos, tendo participações de The Neville Brothers e The Blind Boys of Alabama, entre outros.
O outro pormenor são as frases no início de cada episódio, que constituem uma linha de diálogo de uma das personagens que aí se destaca, criando assim mais uma forma de manter o espectador colado ao ecrã à espera de saber de quem se trata.
The Wire foi nomeada 54 vezes e recebeu 16 prémios durante os seus anos de emissão. Tem uma pontuação de 9,3 em 10 no ranking do site de referência IMDB e 94% no Rotten Tomatoes.
Está ainda disponível no HBO Portugal e mais que uma “granda” série, (perdoem o vernáculo) é uma série do caraças!