Gotas de chuva como pingos de mel dourado, caem em raios de luz, e eu juro que o céu, ao descer de Trancoso, indeciso entre a Primavera e o Verão no crepúsculo do fim do meu dia, parece desabar-se em cascatas de algodão, incandescente, que fazem até acreditar no divino, ou em galopadas furiosas de quadrigas romanas pertencentes a uma classe superior de seres – se olhar cá para baixo, podem, num respingo, alumiar ou ensombrar tudo o que nos sustém.
O carro mantém a rota a serpentear por asfalto, agora lambido por um rio de ouro líquido, fino, singelo.
Penso talvez que, assim, as cerejas ganharam viço, mas e ai que boas que estavam – e que importam os bonecos a papaguear nos ecrãs que o fim está próximo, alterações e climáticas e patati patatá!
Calem-se diacho!
Já todos entendemos que querem é fechar o país, porque vem aí o calor, e temos todos que fingir que os incêndios não são um negócio, e isto há já décadas.
Agora, aquilo que está a dar é fingir ser tudo pelo nosso bem (patati!), pedir licença de porte de isqueiro para não chegar fogo à mata e não fumar para não chegar fogo aos pulmões (patatá!), que isto de viver num estado totalitário será coisa a estranhar devagarinho e depois entranhamos, que remédio!
Mas as gotas de chuva como mel continuam a correr, quando tem de mesmo de ser, e sinto-as como quem atravessa uma tempestade de cometas rasgando o dia… Ou a noite.
Tenho saudades de Arraiolos. Tenho de ir derreter ossos nortenhos por lá, até porque já fazem falta as migas. Vou pela estrada fora, e continuarei a seguir até lá, é sensato procurar o calor, ao contrário do que me diz a televisão, que cresceu, duplicou e alastrou pela parede da sala, que nem bolor negro, tóxico, intrusivo…
Mariana Santos Martins é arquitecta
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