São apenas dois dias, e sem aparato demasiado espampanante, mas o primeiro evento de maior dimensão da novel Sociedade Portuguesa de Saúde Pública revela bem como o debate público sobre futuras pandemias está a ser rapidamente enviesado. Instalando-se um nicho criado pela pandemia, esta sociedade científica foi ocupada por altos funcionários públicos de confiança política do actual Governo, e o seu primeiro congresso, em parceria com duas associações, conta apenas com “peritos” escolhidos a dedo. E, claro, mãos de farmacêuticas, que patrocinam talks, que, na verdade, são sessões públicas de lobby descarado. Uma viagem ao programa do Congresso Saúde Pública 23, conduzida pelo PÁGINA UM, sob o mote “Uma Nova Era”.
A Culturgest vai ser hoje e amanhã palco do Congresso Saúde Pública 23, com o mote “Uma Nova Era”. Uma notícia normal diria que, no auditório e diversas salas do edifício da Caixa Geral de Depósitos, passaram as principais figuras que marcaram os anos da pandemia, tanto do quadrante político como de especialistas.
Para debater políticas públicas de Saúde, inovação e ciências e assuntos paralelos, e até equidade para pessoas LGBTQIA+, está prevista a presença, logo pela manhã de hoje, como cabeças de cartaz, a ex-ministra da Saúde Marta Temido, a directora-geral da Saúde Graça Freitas, o seu antecessor e ex-presidente da Cruz Vermelha Portuguesa Francisco George, e ainda Raquel Duarte, ex-secretária de Estado da Saúde e uma das peritas requisitadas nas famosas reuniões do Infarmed.
Em segundo plano, estarão outras figuras bastante mediáticas, classificadas pelo Governo como “peritos” durante a pandemia, como o pneumologista Filipe Froes, o epidemiologista Henrique Barros (marido da actual secretária de Estado da Promoção da Saúde), o imunologista Miguel Prudêncio, o presidente da European Respiratory Society Carlos Robalo Cordeiro, e ainda o novo subdirector-geral da Saúde, André Peralta Santos.
Mais do que debater Saúde Pública, pelos palcos da Culturgest, sobretudo pelo seu auditório, se espraiará, contudo, a promiscuidade entre poder político, sociedades médicas e farmacêuticas, num conluio que, sem encontrar fronteiras, começa a cansar por recorrente. Vejamos.
Organizado por três associações – Sociedade Portuguesa de Saúde Pública, Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública e Associação Portuguesa para Promoção da Saúde Pública –, o congresso conta com o patrocínio oficial da Caixa Geral de Depósitos, que cedeu o espaço e a logística, mas quem abre os cordões à bolsa, até por não haver inscrições pagas, são quatro farmacêuticas – Abbott, GlaxoSmithKline, Pfizer e Sanofi –, que têm ali palcos majestáticos para exporem os seus consultores, grande parte dos quais com um papel mediático durante a pandemia.
Apesar de ainda não serem conhecidos todos os montantes envolvidos – e que apenas serão oficializados quando integralmente inseridos no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed –, alguns detalhes conhecidos já demonstram servir este congresso para falar mais do que de saúde. Pelos sinais – e porque não vale a pena obter reacções, porque todos negariam, horrorizados pela torpe suspeita –, ali se espraia, de forma mais ou menos discreta, lobbies com bypass directo entre Governo, Administração Pública, supostas sociedades científicas e farmacêuticas.
O caso mais paradigmático passa-se com a principal organizadora do congresso, a novel Sociedade Portuguesa de Saúde Pública (SPSP), que tem na Culturgest o seu segundo evento público conhecido, após uma singela apresentação de um livro em Março passado, coordenado por Francisco George, seu presidente.
Anunciada em Maio do ano passado, a SPSP terá 20 fundadores, onde também pontificam, segundo então se revelou na comunicação social, a pneumologista e ex-secretária de Estado da Saúde Raquel Duarte, os epidemiologistas Baltazar Nunes e Andreia Leite, o presidente do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), Fernando Almeida, o professor jubilado em Saúde Pública Constantino Sakellarides (e ex-director-geral da Saúde), o psiquiatra Daniel Sampaio, o médico Rui Portugal, na época subdirector-geral da Saúde, o então presidente do Conselho Nacional de Saúde, Henrique Barros; e a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos Ana Paula Martins, então na farmacêutica Gilead e que agora preside ao Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.
No entanto, apenas assinaram a constituição desta associação, em 6 de Maio de 2022, Francisco George, o então subdirector-geral da Saúde Rui Portugal – que se demitiu no final do mês passado, pouco tempo depois de admitir candidatar-se ao lugar de Graça Freitas – e o presidente e a vogal do INSA, Francisco Lopes de Almeida e Cristina Abreu dos Santos. Saliente-se que, conforme referido no seu site, o Conselho Directivo do INSA dirige os seus serviços “em conformidade com a lei e as orientações governamentais”, sendo apenas constituído por duas pessoas.
Diga-se que a SPSP acaba por ser similar à co-organizadora Associação Portuguesa para a Promoção da Saúde Pública (APPSP), mas esta não tem o élan de ter sociedade na denominação. Com efeito, a APPSP é uma associação criada em 1969 por Arnaldo Sampaio, director-geral da Saúde entre 1972 e 1976, sedeada na Escola Nacional de Saúde Pública.
Se o excessivo peso de funcionários públicos de confiança política provoca legítimas dúvidas sobre a independência e isenção deste tipo de organizações, estas também se desvanecem na leitura da localização da sede da SPSP: Centro de Saúde de Sete Rios, em Lisboa. Ou seja, em instalações públicas.
Certo é, de entre as poucas intervenções públicas da SPSP, destacam-se as recentes declarações de Francisco George, em Março passado, que mostraram uma grande sintonia com os interesses governamentais. De facto, o antigo director-geral da Saúde e ex-presidente da Cruz Vermelha defendeu então a aprovação da lei de protecção em emergência de saúde pública para que, em futuras pandemias, se restrinjam administrativamente direitos e liberdades individuais.
Nessas declarações à Lusa, Francisco George deu também, como presidente da SPSP, o seu aval aos confinamentos durante a pandemia, considerando-os “uma medida absolutamente essencial” para controlar e prevenir a covid-19. Ora, os Governos costumam agradecer essas opiniões de sociedades científicas independentes na aparência.
No entanto, a nível internacional, e em revistas científicas independentes, já há muito se coloca em causa os confinamentos como solução adequada para a pandemia da covid-19. Por exemplo, no ano passado, John Ioannidis, o mais relevante epidemiologista mundial, destacava, num artigo em co-autoria no International Journal of Forecasting, que “a população em geral foi confinada e colocada em alerta de terror para evitar que os sistemas de saúde entrassem em colapso”, mas “tragicamente, muitos sistemas de saúde enfrentaram grandes consequências adversas, não pela sobrecarga de casos de covid-19, mas por razões muito diferentes”. E apontava para os “pacientes com ataques cardíacos [que] evitaram hospitais para atendimento, tratamentos importantes (por exemplo, para cancro) [que] foram injustificadamente atrasados” , para além de prejuízos na saúde mental.
Ioannidis também salientava que “com operações prejudicadas, muitos hospitais começaram a perder pessoal, reduzindo sua capacidade de enfrentar crises futuras”, como por exemplo uma segunda onda, e que “com o novo desemprego massivo, mais pessoas arriscaram perder o seguro de saúde.”
Mas isso foram sempre aspectos nunca admitidos pelos “peritos” governamentais portugueses, alguns dos quais agora com ligações umbilicais à SPSP, como é o caso de Raquel Duarte. Antiga secretária de Estado da Saúde, Raquel Duarte destacou-se no grupo de peritos ad hoc das conhecidas “reuniões do Infarmed” – que validava todas as medidas do Governo de António Costa, substituindo a Comissão Nacional de Saúde Pública, que nunca foi colocada a funcionar – e é co-autora de uma obra apologética sobre a estratégia governativa, apresentada em Maio do ano passado na Universidade do Minho diante de um agradado primeiro-ministro.
Além destas ligações de boa convivência com o Governo, a SPSP também não fugiu ao amplexo com farmacêuticas. Não se conhecendo ainda todos os financiamentos deste congresso, no Portal da Transparência do Infarmed – cuja inserção de registos é voluntária e pouco ou nada fiscalizada pelo regulador dos medicamentos, presidido por Rui Santo Ivo –, já consta o apoio da Pfizer à SPSP. E, oficialmente, não é pequeno: 15.000 euros.
Isto considerando que este dinheiro serve para patrocinar o “sponsor talk by Pfizer”, a moderna designação para 45 minutos da apresentação de Charles Jones, director sénior de inovação e estratégia mRNA da Pfizer, acompanhada pelas palavras de Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular, e de Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP). Desde que assumiu a liderança desta associação de médicos, em finais de 2021, Tato Borges – que tem pretensões a ser o próximo director-geral da Saúde – já recebeu por seis vezes apoios da Pfizer, no valor total de 10.210 euros, incluindo uma viagem a um congresso à cidade canadiana de Toronto.
Se 15.000 euros valem 45 minutos de “sponsor talk by Pfizer”, similares montantes se deverão praticar nas outras “talks” – assim à inglesa, que se paga melhor. Todas com participantes e moderadores que garantem ausência de surpresas ou vozes dissonantes. Por exemplo, a “sponsor talk by Abbott”, financiada por esta farmacêutica norte-americana, contará com a moderação de Francisco George, e a participação do médico espanhol José María Eiros Bouza e do médico português Gonçalo Órfão.
A Sanofi – que está numa promíscua campanha, através da Sociedade Portuguesa de Pediatria em coligação com a imprensa, para convencer o Governo a administrar anticorpos monoclonais contra o vírus sincicial respiratório (VSR) a todos os recém-nascidos – desembolsará mais, porque pagou duas “sponsor talks”, ambas nesta sexta-feira.
A primeira terá como cabeça-de-cartaz a pediatra Teresa Bandeira para falar… sobre o vírus sincicial respiratório e “novas soluções para um desafio de saúde pública”. Teresa Bandeira foi a principal subscritora do parecer que recomendou a compra massiva de anticorpos monoclonais da Sanofi e AstraZeneca à Direcção-Geral da Saúde. E ainda em Abril passado participou num evento promovido pela Sanofi sugestivamente denominado “Rumo a uma nova era de prevenção do vírus sincicial respiratório“. Desta vez, para a sessão de 20 minutos na Culturgest, a moderação será de… Gustavo Tato Borges, putativo candidato a director-geral da Saúde e presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Público, e co-organizador do evento.
Moderada pela jornalista do Expresso Vera Lúcia Arreigoso, a segunda “sponsor talk by Sanofi” tem como tema a nova vacina contra a gripe como “uma prioridade de Saúde Pública”, e conta com três palestrantes: Carlos Aguiar, Sofia Duque e Carlos Robalo Cordeiro. Nem de propósito, ou talvez sim, a Sanofi começou a comercializar recentemente uma vacina quadrivalente contra a gripe, e tem-se multiplicados em eventos de promoção, em parceria com órgãos de comunicação social, como Expresso no âmbito da Flu Summit.
Estes eventos são sempre óptimos momentos de cortesia e lobby, como a que ficou patente na homenagem a Graça Freitas, que entre muitos sorrisos juntou Lacerda Sales, ex-secretário de Estado da Saúde e actual deputado que presidente à comissão parlamentar da TAP, e ainda Helena Freitas, directora-geral da Sanofi Portugal, e Carlos Robalo Cordeiro.
Aliás, este pneumologista e professor da Universidade de Coimbra – um empolgado adepto da vacinação contra a covid-19 de jovens, chegando a integrar um grupo de queixosos que espoletou um torpe processo disciplinar contra Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, por recomendar prudência – é sempre um habituée deste tipo de eventos. Com benefícios: só no ano passado, o actual presidente da European Respiratory Society amealhou quase 25 mil euros das farmacêuticas, dos quais 3.414 euros da Sanofi. Este ano conta, em menos de seis meses, um pouco menos de 11 mil euros. Apesar disso, a declaração de interesses deste médico naquela sociedade internacional está a branco, sem qualquer justificação, apesar de o PÁGINA UM ter pedido esclarecimentos, que não obteve reacção.
Por fim, a “estrela” da última “talk“, financiada pela GlaxoSmithKline (GSK), será Filipe Froes, um dos médicos com maior portefólio de relações promíscuas com a indústria farmacêutica, e que, apesar de estar com um processo disciplinar instaurado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde desde Fevereiro do ano passado, continua a ser presença habitual em eventos deste género – se forem financiados por farmacêuticas, claro.
Froes falará, nesta sexta-feira, sobre “a vacinação como um pilar para o envelhecimento saudável”, numa altura em que concentra os seus esforços de consultadoria e de marketing na promoção de uma nova vacina pneumocócica da Merck Sharpe & Dohme (MSD) para bebés, crianças e adolescentes.
Em parte por esse motivo, este ano, e até agora, quase dois terços dos cerca de 20 mil euros daquilo que Froes oficialmente recebeu de farmacêuticas foi a partir da MSD, que já no ano passado, com a Sanofi, fora um dos seus principais “mecenas”. Este ano, este pneumologista ainda só recebeu cerca de 1.600 euros da GSK, mas não estão ainda incluídos os honorários da “sponsor talk by GSK” de amanhã na Culturgest.
Depois da palestra de meia hora de Filipe Froes, terminará o Congresso Saúde Pública 23, organizado por associações “associadas” ao Governo, e com “talks” financiadas por farmacêuticas, com um derradeiro evento: a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, presidirá ainda à cerimónia de entrega de prémios aos vencedores das PH Innovation Sessions, ou seja, aos melhores trabalhos apresentados nas outras salas.
A organização não informa, no seu site, se os prémios são monetários e financiados por farmacêuticas. Em todo o caso, os funcionários públicos que participem, e recebam diploma, têm dispensa de serviço. Não parece demasiado mau para quem tem de ouvir palestras financiadas por farmacêuticas.
N.D. O Código Deontológico dos Jornalistas determina que “a distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.” Uma vez que, aparentemente, subsistem dúvidas de certos reguladores sobre a interpretação desta frase, declara-se o óbvio: quando o leitor ler, numa notícia, um qualquer adjectivo, então estará perante uma opinião. Se não for uma notícia e se ler um adjectivo, então será também uma opinião. Em todo o caso, tudo se interpreta com rigor e honestidade. Mesmo quando se escolhem os adjectivos.