VISTO DE FORA

Os meus 6339 dias

person holding camera lens

por Tiago Franco // Junho 15, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Passam hoje 6.339 dias desde o momento em que aterrei na Suécia para dar início a uma vida de emigrante. Ou, por outras palavras, passam hoje 6.339 dias desde o dia em que perguntei quando voltaria. Como quase todos, saí de Portugal com a teoria dos dois anos bem presente.

O que é a teoria dos dois anos, pergunta o leitor? É uma mentira que contamos à família no momento da despedida. “Vamos apenas por dois anos para ter a experiência… e depois voltamos”. É uma mentira tão boa que até nós, os que embarcamos para um país diferente, acreditamos nela.

Os dias foram passando e, como é fácil de perceber, ao fim de 730, dois anos portanto, não regressei. E por cada 365 que passavam, mais difícil era esse regresso.

luggage, suitcases, baggage

Uma das coisas que sempre achei estranho foi a ligação a Portugal, que teimava em desaparecer. É normal que, ao fim de algum tempo, o emigrante se vá desligando da realidade que deixou para trás e se vá inteirando daquela que, entretanto, conheceu. Não foi o meu caso.

Quer dizer, embrulhei-me na realidade sueca e na forma como a sociedade funciona, mas não deixei de ouvir notícias de Portugal por um dia que fosse. Percorri o país de norte a sul, fiz questão que conhecer toda a Escandinávia, subi montanhas e experimentei mares diferentes. Votei sempre nas eleições locais e procurei entender a base social em que assenta este país. Mas os acontecimentos que me incomodavam, as notícias mais marcantes, as fontes de preocupação vinham sempre da realidade portuguesa.

Ia para o trabalho com a TSF ligada, limpava a cozinha com o jornal da noite no ar e pedalava com um podcast qualquer de debate. A cada regresso, em conversas com familiares e amigos, notei, por vezes, que sabia mais do que por ali se passava do que eles que nunca tinham saído do mesmo bairro. Essa necessidade de saber a realidade lusa fez-me perceber que não conseguiria desligar-me de Portugal. 

train passing in between buildings

Ao contrário do que se possa pensar, manter este laço com o país de origem não torna a emigração mais fácil. Faz-nos pensar, repetidas vezes, afinal o que fazemos aqui.

No caso da Escandinávia é mais ou menos fácil perceber a dificuldade de aceitar o regresso. Basta consultar qualquer tabela de desenvolvimento social para compreender que esta zona do globo está naquilo a que convencionámos chamar o mundo civilizado.

A base social assente em impostos progressivos permite que o país seja dotado de um sistema público de saúde e uma educação verdadeiramente universal. Gratuita desde o primeiro dia na creche até ao último dia da universidade. Classes profissionais separadas por pequenos degraus onde, por exemplo, o fosso entre um gestor de empresa e um canalizador não permite que algum deles viva na pobreza. Uma Economia assente num sector produtivo tão grande que nunca há gente suficiente para preencher as vagas.

baked breads

Atravessei duas crises mundiais por aqui, com milhares de despedimentos. Lembro-me de ao fim de seis meses já estar tudo em ritmo de “business as usual” enquanto mais a sul demoraram anos a reerguer.

É, de facto, difícil largar uma realidade onde a sociedade civil funciona, as regras são cumpridas e as oportunidades são mais do que muitas. Ninguém enriquece a trabalhar por aqui, mas também ninguém volta a olhar para o saldo. É uma realidade que ouço de vez em quando na boca de outros emigrantes.

O problema é a outra parte. Os afectos, as relações, a proximidade, o contacto. Aquele calor humano, a espontaneidade, o improviso, a alegria não planeada. Todos os ingredientes que nos fazem latinos. O sol, o céu azul, o mar com ondas, a gastronomia. Enfim, não ter que pensar no que se diz quando se misturam três línguas diariamente.

white ceramic mug with brown liquid on white ceramic saucer

Num destes dias, disse-me o meu filho, nascido aqui, que depois de acabar a escola queria sair da Suécia. Perguntei porquê, afinal, esta é a realidade que ele conhece e de onde nunca pareceu interessado em sair. Disse-me que quando a vida académica o separasse dos amigos que o acompanham desde a creche, qual seria o sentido de passar a vida num sítio gelado?

Realmente… Para ele isto é um sítio gelado onde tem os amigos. Não é um país de primeiro mundo que por acaso também é gelado.

Ele não tem termo de comparação e, ainda assim, todos estes anos com meses passados em Portugal, já o fizeram perceber que a vida pode ser mais simples noutras latitudes. Pelo menos aos olhos de uma criança que depende das relações humanas e, ainda não, de um emprego.

people sun bathing on beach

Durante estes anos, perdi a conta às pessoas que ajudei a vir para aqui, a arranjar um primeiro emprego, o primeiro alojamento. A todos disse, quando me perguntaram, que a emigração não era um el dorado. Ao contrário do que o Passos Coelho disse, não chega ter uma Europa sem fronteiras e com livre circulação.

Ninguém, absolutamente ninguém, deveria ter necessidade de sair do sítio de onde nasceu à procura de melhores condições de trabalho. É uma violência da qual nunca recuperamos e é uma fatia da vida que, por muitas coisas boas que nos traga, leva invariavelmente uma boa parte da alma.

O tempo que perdemos com a família e amigos. Os momentos em que aparecemos no vídeo numa mesa recheada de caras conhecidas. As semanas de solidão que atravessamos nos invernos que parecem não ter fim. 

person looking out through window

Hoje, ainda coloco questões. Voltaria a fazer tudo de novo? Sim. Não sou um emigrante mal-agradecido ao país de acolhimento. Todo o reconhecimento profissional que obtive, devo-o à Suécia. A vida que é proporcionada à minha família, devo-o à Suécia. As oportunidades que os meus filhos têm hoje e o conhecimento que têm do mundo, devo-o à Suécia.

Provavelmente, poderia ter sido mais fácil. Certamente ter-me-ia dado jeito alguma ajuda no início do processo.

Mas sim, voltaria a fazer este caminho, passando pelo mesmo sofrimento, sabendo que poderia dessa forma ajudar a minha família.

De há uns anos a esta parte, venho dizendo aos que me estão mais próximos que está na hora de voltar. Normalmente, ouço um “deixa-te estar lá que estás bem, aqui não há nada”.

Discordo. Aí está praticamente tudo o que importa. Aos 46 anos, e 6.339 dias depois, o ciclo fechou.

Vou para casa. Agora.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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