ARTIGO DE OPINIÃO DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Brincar com o fogo: um texto que não envelheceu

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Junho 17, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Este texto, com pequenos acertos de edição, como rescaldo do incêndio de Pedrógão Grande há seis anos, foi originalmente publicado na edição de 22 de Junho de 2017 da revista Visão. Convém recordar que, em Outubro daquele ano, uma nova vaga de incêndios causou mais 49 mortes. Oficialmente, foram declaradas 115 mortes pelos incêndios rurais em 2017, que destruíram 540.754 hectares.


No passado sábado [17 de Junho de 2017], numa das suas já voluntariosas sessões de confortos e alentos, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, desferiu a derradeira machadada na credibilidade do Estado. Não falo da credibilidade do Governo, que é um fluxo. Falo sim do Estado, aqui visto como uma espécie de stock, de reserva de confiança dos cidadãos, uma espécie de Deus ex machina, ao qual nos dispomos em oferendas – vulgo impostos – e em submissão às suas/ nossas leis, em troca de protecção, de harmonia. Para enfim não andarmos homens feitos lobos em guerra contínua, evitando que, como lamentava Thomas Hobbes no século XVIII, a vida nos seja solitária, pobre, suja, brutal e curta.

Note-se que a dita machadada do Presidente da República, embora possa ter sido involuntária, não tem nenhuma mácula. É inteiramente verdadeira. De facto, também eu acredito, e há já demasiado tempo, que “o que se fez, foi o máximo que se podia fazer”, que “não era possível fazer mais”, citando as suas palavras.

bare trees on rocky hill under white sky during daytime

De facto, o Estado – através dos sucessivos Governos, pois não lhes encontro diferenças substanciais em política florestal e de protecção civil – tem mostrado à saciedade por estes dias; mostrará ao longo deste Verão, como mostrou em anos anteriores, que se faz sempre o que se pode, o que é pouco e, muitas vezes, mal. E dando os resultados tristes, tenebrosos que a comunicação social agora expõe. Os presentes e os passados. E muitos esquece, porquanto somos lestos em acordar estremunhados e com vontade de mudar o mundo nos dias de tragédia, para em seguida serenarmos quase tudo no olvido até ser uma fugaz ocorrência histórica.

A nossa memória é, de facto, curta. A minha ainda não é.

Quem se recorda do incêndio da Madeira do ano passado [2016]? Um desastre ambiental e três mortes. Ou o de Arouca? 22 mil hectares destruídos. Acham pouco ou muito?

Assim a frio, muitos nem sabem dizer. Direi que já nem está no top 10 dos mais destrutivos de sempre – o de Pedrogão Grande já o suplantou – mas se tivesse ocorrido nos anos 90 seria considerado catastrófico. De facto, quanto maiores são os dramas, mais depressa se esquecem os anteriores. Hoje, um Governo lança metaforicamente foguetes se não se ultrapassam os 100 mil hectares de área ardida num ano.

full moon in the sky

Há duas décadas, em Espanha – que tem um território cinco vezes maior – nuestros hermanos mudaram toda a estratégia de gestão florestal e montaram um combate assente no profissionalismo. Os efeitos positivos foram imediatos.

Nós por cá damo-nos ao amadorismo, que é uma mistura de amor com laxismo. Tem efeitos catastróficos, porque em qualquer sistema profissional que premeia o mérito, seria difícil observar, sem melhor escrutínio, na cúpula de uma estrutura como a Liga dos Bombeiros Portugueses, alguém que, durante duas décadas, foi comandante da corporação de Vila Nova de Poiares – um município onde em, entre 1990 e 2005, foi consumida uma área acumulada de 113% (não é engano). Aqui, no combate aos fogos, é o contrário do futebol: ascendem aos lugares cimeiros os goleiros frangueiros.

Não há milagres com o fogo. Embora tudo me pareça um déjà vu, os números recordam-me que estamos sempre a piorar, e quando um ano não é mau, o futuro cobrará com juros. Sempre. Nos anos 90 um fogo com mais de 5.000 hectares fazia manchetes, abria telejornais. O maior incêndio até ao final dessa década foi em Arganil, com 10.076 hectares. O último do top 10 foi em Arganil, em 1995, com cerca de 4.000 hectares. Isto é, cerca de 10% da área ardida do mais destrutivo incêndio em território português, o de Nisa de 2003, que dizimou 41 mil hectares, aproximadamente quatro vezes a cidade de Lisboa. É um valor inimaginável, mas poderá vir a ser ultrapassado pelo de Pedrógão, porque em Portugal, neste sector, até agora pode sempre ser-se pior.

brown and black helicopter flying in the sky

E enquanto tudo isto acontecia, fomos sendo embalados com promessas, novas promessas, mais promessas, mais legislação reinventando a roda – nem imaginam, por exemplo, as revisões de leis, desde o Estado Novo, que sucessivamente proíbem o uso de fogo em zonas florestais no Verão –, mais as ideias estapafúrdias, outras mais que ainda agravam o problema – conforme se verificou com uma recente abertura à eucaliptização –, etc., etc., etc..

Nesta mescla de acontecimentos recentes, as fortuitas declarações da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, são chocantes. Pressenti um déjà vu, intolerável porque desta vez subimos um patamar tétrico: 64 mortes num sopro de chamas, algo que eu, que acompanho estas desgraças ano após ano, não imaginei sequer poder acontecer com esta dimensão. Apelou ela ser tempo para «a dor e o pesar». A avaliação ficava para mais tarde; e eu sei no que dão as avaliações. Dão em nada; dão em aumentos da dimensão das catástrofes, até que uma maior faça esquecer a anterior. E uma maior que 64 mortes é, para mim, uma morte. Uma só morte deve considerar-se, a partir de agora, intolerável.

Na verdade, perante este cenário, perante o nosso histórico, acho que a hora é para revolta, para indignação, porque esta, como dizia Santo Agostinho, é uma das filhas da esperança, sendo irmã da coragem. A indignação hoje é a melhor forma de dignificar as vítimas mortais – se é que isso é possível; e se é, bem que prescindia do acto em troca do retorno daquelas vidas –; mais do que a solidariedade e a caridade.

people walking near fire

Não havendo jamais mortes úteis – cada morte é uma tragédia multiplicada –, aquilo que sucedeu em Pedrógão Grande tem de valer mais do que lamentos, mais do que os dois milhões de hectares ardidos em cerca de duas décadas (e que, aliás, ceifaram a vida de várias dezenas de pessoas). Têm de valer. Porque se 64 mortes não fizerem agora mudar a atitude de um Estado insuportavelmente incapaz na protecção civil e na gestão florestal, nada mais fará.

E isso para mim é insuportável; deveria por todos ser considerado insuportável. Não apenas por aqueles que vivem em zonas rurais – que ficam agora a saber que estarão sujeitos a tragédias que os possam fazer figurar em dias de luto e cadeias de solidariedade –, mas mesmo para todos. Para os lisboetas, por exemplo, como eu, que têm agora a absoluta certeza que, havendo um terramoto, nada mais obterão, perante um inexistente sistema de protecção civil do Estado, do que palavras de comiseração e de luto.

A actual ministra – que como assessora de António Costa, que ocupava essa pasta em 2005 – não é leiga nestas matérias. António Costa muito menos. Ambos apanharam em 2005 um dos mais violentos anos de fogos florestais (325 mil hectares dizimados). Esta será, para eles, a segunda oportunidade. A partir de agora só podem agir de forma diferente. Não podem optar, como sucedeu em 2006, por pacotes legislativos perfeitos na forma e ocos na aplicação. Aliás, um deles, assinado então por António Costa como titular da Administração Interna, determinando exactamente o encerramento de estradas em períodos críticos (vd. Decreto-lei 124/2006).

burning building during night time

Enfim, parafraseando Almada Negreiros, já existem todas as frases, todas as medidas essenciais para salvar a floresta, salvar vidas humanas deste flagelo dos incêndios; estão todas escritas e sabidas; só faltando executá-las. Mudando o status quo: apostando na prevenção e na gestão florestal economicamente sustentável; alterando o obsoleto modelo de combate assente num pseudo-voluntarismo, heróico mas ineficaz; reforçando um sistema de protecção civil pro-activo e preventivo; etc., etc., etc.. Sabe-se tudo.

A ladainha é tão longa como a desgraça Só falta mesmo fazer. Tem de se fazer. Para não chegarem novas vítimas, novos lamentos, novas reportagens, novos artigos de opinião. Já cansa. Já tudo é demasiado trágico. Até a própria tragédia.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.