Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 5
Será que o edifício elaborado, nervoso e ansioso e orgulhoso, e supersticioso e enganoso, do material cerebral que constrói a nossa humanidade, ainda está imbuído da essência profunda daquele cérebro que existiu na floresta tropical?
Richard Wrangham e Dale Peterson
DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)
Até agora aprendemos algumas coisas impossíveis[1] sobre a nossa natureza profunda de Grandes Primatas[2], passe-se a acção no Alto Alentejo ou no Alto Volta[3]. Logo para começar, os dados científicos obrigam-nos a engolir que estamos evolutivamente e socialmente mais próximos dos chimpanzés do que esses mesmos chimpanzés estão próximos dos gorilas. Ainda por cima, isto não é assim tão fácil de disfarçar como isso. Somos as duas únicas espécies com a necessidade compulsiva de conquistar mais territórios para a nossa tribo – e que, para o efeito, travam entre si guerras horríveis e cruéis. Somos as duas únicas espécies que matariam o vizinho do lado mesmo, sem existir uma única razão para isso que não seja o prazer de toda aquela adrenalina das lutas entre gangs. E somos as duas únicas espécies que cultivam a violência doméstica como forma de manter as suas sociedades na ordem.
Mas não somos as únicas duas chavetas de Grandes Primatas[4] a recorrer à brutalidade onde ela lhes parece necessária.
E parece que é sempre no que, de uma forma ou outra, tenha a ver com a reprodução.
Ou seja, parece que não há forma de separar a brutalidade da sexualidade.
Vejam-se, por exemplo, os orangotangos, esses trogloditas ruivos tão ternos e tão comoventes, elas sempre com uns filhotes amorosos às costas[5]. Os orangotangos são os menos sociais de todos os grandes primatas. Às vezes duas ou três fêmeas adolescentes juntam-se por dois ou três dias para passeatas cheias de conversatas, em grupo, no topo das árvores. Às vezes também se junta mais do que um jovem macho, já libertos das Mães, que preguiçam todos juntos entre as lianas ou aproveitam zonas mais escuras para espiarem uma ou outra fêmea.
E é tudo.
Os orangotangos nunca formam tribos, nem famílias, nem casais. Claro que tentam passar muitos genes à progenia, e merecem que se note que são extremamente activos nessas actividades. E fazem-no utilizando sistematicamente o mesmo método: violando tantas fêmeas quantas conseguirem, mesmo que elas ainda andem com um filho e, portanto, não estejam a ovular[6].
E os gorilas? Uns pais de família que, estudados de perto na Natureza, se revelaram tão perfeitos e carinhosos que o pessoal esqueceu completamente o King-Kong e agora tende a chamar-lhes Gentle Giants? Hmm. Giant, certamente. Mas Gentle? Basta serem machos jovens que ainda não têm a sua própria família, e que, por sorte, apanham a mulher do chefe, com um bebé adorável no colo, isolada e distraída: saltam-lhe em cima, roubam-lhe o bebé, matam-no ali mesmo para que ela veja, e logo a seguir arrastam-na atrás de si para começarem a vida familiar do zero depois deste cortejamento auspicioso.
Três espécies de grandes primatas, e sempre o mesmo padrão. Fêmeas? Raptam-se e violam-se. E, seja por ser considerado necessário ou seja apenas por ser muito apetecido, espancam-se. Como é que estes maridos alarves sacaram estas mulheres maternais? Sempre a mesma história. Elas foram completamente parvas e deixaram-se isolar do seu grupo.
Então mas a menina não sabia que não podia andar por aí a passarinhar sozinha, sem a protecção do seu marido?
E eu?
E se eu fosse comprar um marido daqueles que estão sempre em saldo no mercado, e depois o deixasse viver em paz no seu tugúrio porque éramos um casal moderno, mas pronto, o essencial estava garantido porque eu já podia dizer “o meu marido”, não era? E, aos olhos de toda a gente, readquiria a normalidade que perdi a cinco de Janeiro de 2005.
E – melhor ainda, parece-me – se eu passasse, pura e simplesmente, a dizer a toda a gente qualquer coisa como “o meu marido, que é daqueles Sargentos que fazem formação nos Comandos, está a fazer a sua terceira comissão na República Centro-Africana?”
É que uma fêmea farta-se.
A sério.
Comecei a perder a paciência para tanto Desmodus rotundus estremocencii[7] quando o gordo da esplanada lá de cima[8] me tocou à porta a meio da tarde, me obrigou a parar o que estava a fazer para ir abrir, e me apareceu à frente todo suado, a feder àquele fedor específico e enjoativo que se solta em cada respiração da própria pele de quem esteve a beber muito, e começou a dizer, sem o mínimo de discrição, mesmo em frente da porta do dentista, “vá lá, deixa-me entrar… vamos fumar um charro! Vá lá, anda, um charro!”
O Sebastião tinha só cinco meses à data, e levava o gordo em conta de amigo, pois que ele está sempre naquela esplanadinha onde eu vou tomar café e buscar comida – e toda a gente grita, especialmente os meninos, “olha o Sabastião!” – “anda cá, Sabastião!” – “dá a pata, Sabastião!”, e tal e tal. Mas, assim que me viu tentar empurrá-lo para fora de casa enquanto ele ia repetindo “um charro… um charro…” como um disco riscado, e continuava a tentar entrar em casa, todo o seu instinto de cão de guarda veio à superfície. Percebeu logo que com amigos daqueles eu nunca precisaria de inimigos, e saltou-lhe às goelas com um tal rosnar de lobo enfurecido que o gordo desapareceu escada abaixo num instante.
Eh pá, se estas escadas falassem.
Agora tive um daqueles acidentes imprevisíveis que ninguém consegue evitar por completo, e arderam-me duas divisões da casa. O Rogério, que trabalha nas obras, ofereceu-se imediatamente para tratar do restauro. Como eu estava mesmo muito mal de finanças, pediu às minhas irmãs uns oitocentos euros para materiais. E depois foi só assim. Meteu o dinheiro ao bolso, mandou dizer que estava doente, nunca mais me atendeu o telefone ou abriu a porta, às tantas já nem os colegas nem os vizinhos sabiam dele, e três dias mais tarde, faz agora um mês, que desapareceu por completo.
“A menina Clarinha devia ter vindo falar comigo primeiro, que eu arranjava-lhe uns homens de confiança. Agora vai a menina falar sozinha com um pedreiro manhoso, e mais as suas irmãs, todas tão bonitas e tão bem-postas a falar com aquela gente… o que é que achou que um pintas como o Rogério ia pensar? Achou mesmo que ele era seu amigo? Ora adeus, quando vamos a ver aquela gente nunca é amiga de ninguém.”
Já lá iam mais de dois anos desde a minha mudança para o Largo Sem Localização Latente[9], e era cada vez mais evidente para mim o que é que todos aqueles pintas pensavam. Primeiro não me ligaram grande coisa, porque devem ter imaginado que eu só estava ali de passagem. Mas, à medida que o tempo passava e eu me instalava de forma cada vez mais profunda, fazia amigos, enchia o terraço de flores e ervas aromáticas, montava uma gaiola toda elegante para o meu casal lindíssimo de Galinhos da Malásia, e, finalmente, começava a aparecer em toda a cidade com um belíssimo cão à trela[10], tudo isto sem nunca aparecer por ali ninguém com ar de marido, namorado, ou vá, enfim, de amigo colorido – então, à medida que se tornava óbvio que eu tinha mesmo ido para ali viver, e que vivia ali sozinha, começaram a circular toda a sorte de rumores sobre as minhas verdadeiras intenções[11].
No Verão passado, durante a noite, numa daquelas semanas em que a temperatura nunca desceu abaixo dos quarenta graus fosse a que horas fosse, estava eu de janela toda aberta com a torre grande do castelo a brilhar ao fundo, o Júnior deitado ao meu lado sem mexer nem as pálpebras, e já há quase uma hora mergulhada nas delícias do DOCTOR BRODIE’S REPORT, do Jorge Luis Borges, enquanto deitava abaixo uma garrafa de água atrás da outra. Pelo meio disto tudo, com o Júnior já a ressonar no seu sono de cão feliz sem remorsos, começo a ouvir, ainda confusamente, duas vozes de homem que vinham de mesmo debaixo da minha janela.
São duas da manhã e estes homens não são dois bêbedos, são apenas dois alentejanos daqueles dos normais.
Que raio de conversa é que podem estar a ter, assim tão descuidadamente, em voz tão alta, por baixo da minha janela?
Pus-me à escuta.
E aquilo ouvia-se bem.
“Atão mas ela é uma puta?”
“Na senhor, home, ela é mais assim uma artista.”
“Aaaah. Olha-me só qu’intressante.”
E seguiram o seu caminho nas calmas, enquanto eu encerrava mentalmente a minha série dedicada ao masculino estremocence e ao universal, recordando, ainda, outro parágrafo de DEMONIC MALES.
“Para nós, humanos, o maior perigo não é que o macho demoníaco seja a regra na espécie. Vendo bem as coisas, outras espécies que seguem a regra dos machos demoníacos não estão em perigo de extinção quando entregues a si próprias. O verdadeiro perigo é que a nossa espécie combina o demonismo masculino com uma inteligência ardente – e, portanto, possui uma capacidade sem precedentes para criações e destruições. O grande cérebro humano é o produto mais assustador da Natureza.”
(fim)
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Mas, como consta que Galileu terá dito ao abjurar que a Terra rodava em volta do Sol perante o tribunal dos Jesuítas, “E, no entanto, elas movem-se!”. E consta que, ao findar o seu protesto, embateu com o pé e tudo. Claro que toda esta linda história não passa de um mito urbano, e não sou eu quem vai pôr-se a servir gato por lebre aos nossos leitores. Mas enfim, é um mito muito bem esgalhado. Ajuda a enfatizar o que está aqui em causa, ou seja: há muita coisa que pode perfeitamente parecer impossível, mas, quando conseguimos estudá-la melhor, percebemos que é tão possível que se torna tautológica. E, nessa altura, bate-se o pé.
[2] Isto presta-se a debates muito sérios, porque não faltam aí primatologistas, ou pura e simplesmente biólogos tout court, que recusem esta forma de arrumar os nossos grupos. Mas, se o Homo sapiens for o tal Quinto Primata que tanta gente diz que é, então está mesmo na linha divisória entre uma tipologia e outra. Ou seja, de um lado estão o Orangotango, o Gorila, e o Humano; e do outro lado estão o Humano, o Chimpanzé, e o Bonobo. Este último só foi descoberto há setenta anos, é pouco conhecido do Português Comum, mas vale a pena realçar que é uma espécie bué gira, mais pequena e muito menos belicosa do que todas as outras, com uma organização social baseada, sobretudo, na amizade entre as fêmeas.
[3] Ah. Caraças. Olha, o teu problema é teres os ossos todos enferrujados, OK? CLARO QUE EU SEI que desde as minhas aulas de geografia no liceu até hoje o Alto Volta se tornou um país livre e passou a chamar-se Burkina Faso. E mais, gosto tanto de Ouagadoudou que já nem me lembro do nome da capital durante a colonização francesa. Mas, Santo Deus. Nunca brincaste aos jogos de palavras? Tipo Alto Alentejo e Alto Volta? Ele há cada leitor mais perro…
[4] Em termos taxonómicos, isto é bastante mais fácil de entender (e, consequentemente, de organizar) do que parece: os PRIMATAS são os únicos macacos que não têm qualquer espécie ou vestígio de cauda.
[5] As fêmeas do Pongo borneo, e das algumas outras espécies de orangotango igualmente estudadas de perto na Natureza, só têm um filho de cada vez. Como vivem nas camadas mais altas de folhagem da floresta equatorial, e é aqui que os jovens precisam de saber onde é que, em cada noite, devem fazer o seu novo ninho, ou onde é que podem encontrar bons lugares para procurar frutos e nozes que ainda nenhum rival tenha dizimado, precisam de ter todo o seu habitat memorizado para conseguirem sobreviver sozinhos, tal como nós precisamos de aprender a ler, escrever, a declinar a tabuada, a fazer contas, e finalmente a aceitar que a ordem dos factores não altera o produto (ainda por cima, esta última lei é de tal forma um vox populi psicológico que convém, mesmo, nunca nos esquecermos dela), para podermos sair da escola e vir a ter uma vida interessante. No caso dos orangotangos, o professor é a mãe, a escola é a floresta, e o livro de texto contém a viagem por todos os habitats que interessam aos orangotangos em formação. Memorizar este mapa equatorial e saber dar-lhe o seu melhor uso demora oito anos.
[6] A ovulação só recomeça nos últimos dois anos de educação do filho. Os machos sabem perfeitamente que nenhuma fêmea recomeçará a ovular enquanto o filho que transporta consigo não fizer seis anos – e a ausência de ovulação é assaz explícita, uma vez que modifica a cor, a humidade, e o tamanho dos grandes lábios vaginais.
[7] O Desmodus rotundus é o morcego-vampiro da América do Sul, que se alimenta sobretudo do sangue do gado mas pode tornar-se perigoso para as populações nos anos em que, geralmente devido a uma seca violenta, as cabeças de bovino começam a escassear. Quanto ao estremocencii, é o nome dado à subespécie, dado a chupistas desta natureza residentes em Estremoz. Ah, sou boa nisto! Lineu não faria melhor. Estás orgulhoso da minha literatura binária com subespécie aposta, Padrinho?
[8] Este nojento e o seu paradeiro nem nome merecem. E é uma grande pena, porque a cozinha do sítio, saída da obra, da energia, e da coragem de duas mulheres imparáveis, é deliciosa e muito barata.
[9] Este sítio maravilhoso ainda há de ter muitos nomes até a terrível gentrificação desta cidadezinha de província que costumava ser tão genuína me obrigar a ir procurar outro esconderijo, bastante mais esfarrapado e substancialmente mais esconso, onde a própria população local meta tanto medo aos estrangeiros que ainda seja capaz de evitar a sua instalação e a consequente passagem das rendas para o dobro.
[10] Foi o cão que veio antes do Sebastião, e me deu um desgosto tão grande quando morreu aos dez anos que eu percebi logo que sem marido estava-se bem, mas sem cão a vida era uma grande tristeza. Era um Leão da Rodésia perfeito, com os olhos cheios de ternura, que se chamava Júnior e precisou de uma enfermeira particular durante mais de um ano. Tinha sido ferido com uma selvajaria incrível pelos seus dois irmãos mais novos numa disputa renhida pela posição de macho alfa. O que, uma vez mais, confirma que não é só entre todos os Grandes Primatas, mas antes um pouco entre todos os mamíferos, que os machos são capazes de se matarem uns aos outros para ganharem a supremacia total dentro do grupo.
[11] Que, regra geral, não eram boas. O pessoal acha muito estranho eu ter um rafeiro alentejano em casa. Eu nunca digo nada, mas francamente. Porque será que é importante para a minha paz de espírito viver com um dos maiores cães que há, famosamente dedicados aos donos e no cimo da escala enquanto cães de guarda?