VISTO DE FORA

Aguentem o ‘as long as it takes’…

person holding camera lens

por Tiago Franco // Junho 22, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Cheguei ao banco na hora marcada. Os horários não são grande coisa, mas, se perco a vaga, tenho de esperar mais um mês. Faz-se tudo online. Hoje em dias, falar com alguém para resolver um problema é um luxo. Parece conversa de velho – eu sei –, e é.

A rapariga que me atende não terá mais de dois ou três anos de trabalho e aparenta uma indiferença preocupante. Espero que, pelo menos, perceba alguma coisa disto.

Começa o discurso com a introdução histórica ao tema. Há uma guerra, os custos de produção aumentaram na Europa, a inflação disparou e, em virtude disso, o Banco Central Europeu (BCE) aumentou as taxas de juro, para controlar a coisa e reduzir o consumo na Zona Euro.

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Espero uma pausa no discurso ensaiado para a informar que não estamos na zona económica do euro. A Suécia tem moeda própria. 

Ela corrige, e diz que, apesar disso, o Banco Central da Suécia aproveita a boleia e também aumenta as taxas de juro para reduzir a inflação que ainda ronda os 6%. Até chegarmos aos 2%, temos que continuar neste caminho, diz ela. Aqui tive a primeira alucinação com a Christine Lagarde e o mantra dos 2%.

Como gosto de aprender a magia que rege a Economia, e já que o objectivo era reduzir o consumo, perguntei-lhe se não seria altura de abrandar esse aumento das taxas de juro no momento em que percebem que a luta não é consumir mas manter as habitações?

Ela disse que sim, teria lógica, mas que os bancos não podiam fazer nada. A decisão era do BCE e os bancos centrais de cada país, quais pedintes numa igreja, tinham a missão de ir recolher o dízimo em forma de prestação a cada cidadão europeu que, um dia, tinha tido a audácia de comprar uma casa.

Receitada que estava a cantilena, começou a fazer contas, dizendo que tinha uma oferta muito boa a rondar os 5%. Cerca do triplo da taxa de crédito contratada há anos, num regime fixo, que tinha como objectivo proteger-me dos mercados de que nunca confiei. Voltou a dar umas marteladas furiosas na máquina até me dizer que a minha prestação passaria para o dobro. 

Avisou-me, enquanto observava o meu silêncio, que eu tinha um mês para pensar. Voltou a falar da guerra e dos improváveis que ninguém controla.

Já não consigo ouvir mais uma pessoa que seja a dizer-me que “temos de aguentar”. “Temos”? Quem? A Lagarde, em princípio, não deve ter problemas destes. A Von der Leyen também não. Certamente que Putin não paga casas a prestações. E Biden muito menos.

Portanto, quem está englobado no “temos de aguentar?”. Eu respondo: os trabalhadores que ousaram contrair um crédito à habitação. Muito bem. Sigamos então a conversa.

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Pergunto-lhe quando é que prevê que a coisa volte ao normal ou, vá lá, a algo suportável. Ela diz que espera-se que a Economia deixe de nos esfolar em 2025. 

“Mas já não há guerra em 2025?” – introduzo eu na conversa. “Não sei, como é que posso saber uma coisa dessas trabalhando num banco?” – responde ela ligeiramente irritada. 

Ora aí é que está o busílis. Se me diz, primeiro, que estamos neste barco sem rumo por causa da guerra e que prevê chegar a terra firme em 2025, mas não sabe quando acaba a guerra, quer dizer que está a mentir. Ou mente quando diz que a guerra nos colocou aqui, ou mente quando diz que tudo termina em 2025. Agora é escolher.

O clima ficou um pouco mais tenso e ela sugeriu uma nova reunião em outro dia. Devo aqui introduzir um conceito muito sueco de, em cada reunião, criar temas paralelos que geram novas reuniões. Faz-se uma vida disto – já presenciei. E há quem fique mesmo esgotado mentalmente com a azáfama.

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Disse-lhe que não precisava de tempo nenhum para pensar e muito menos de nova reunião. Não ia pagar uma exorbitância em juros para suportar uma guerra ou a ganância dos bancos.

Fosse qual fosse a teoria certa, nenhuma delas merecia o meu apoio e muito menos horas e horas de trabalho para pagar uma prestação completamente desajustada do nível de vida e dos salários médios naquela região. 

Todos os meses vejo esta realidade em redor. Casas e mais casas a serem vendidas porque, de repente, as prestações ficaram superiores aos valores dos salários.

Em simultâneo ouço, em Bruxelas, o “as long as it takes” no apoio financeiro à guerra e, em Frankfurt, a cada nova conferência da Lagarde, a certeza de que continuarão a aumentar as taxas de referência até a inflação chegar aos 2% (hoje ronda os 6%) em todos os países da Zona Euro.

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O problema do empobrecimento, como se percebe, alastra-se do sul ao norte da Europa. Cedo ou tarde, está a chegar a todos e a minar a qualidade de vida do Continente.

É estranho, pensaria eu, que todas as populações aceitassem isto de ânimo leve. Nós, que começamos batalhas por penáltis mal marcados, aceitamos patrocinar uma das várias guerras do globo, onde três potências decidem quem vai mandar nas próximas décadas, sem barafustar. Sem partir qualquer coisa. Sem nos revoltarmos para lá da angústia individual e da raiva acumulada dentro de nós.

Levantei-me sem plano B e disse-lhe que iria engrossar a lista de pessoas que, ali no bairro, tentava vender a casa para acalmar o “consumo desenfreado”.

A rapariga não tem culpa alguma, note-se.  Cumpre apenas as directivas que lhe dão. É como ir a um balcão de reclamações da Ryanair e achar que a pobre desgraçada que nos atende é aquele insuportável do O’Leary.

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Uma pessoa, por vezes, perde a paciência, mas como o leitor compreenderá, estamos todos a fazer a nossa parte. Os bancos a tentar aumentar os lucros e nós, os trabalhadores, a tentar não empobrecer mais. Foi apenas isso que ali aconteceu.

Ela disse que me ia assaltar de forma legal e eu, que fiquei um pouco chateado, não parti nada porque – lá está – são estas as regras do capitalismo, e não há muito que um peão isolado possa fazer.

Já perto da porta, e ainda sem um plano B para tapar aquele novo buraco, sorri e despedi-me com um: “agora é ver se recuperamos a Crimeia para a casa não ser perdida em vão”.

Ela sorriu e disse: “espero que sim, temos de ganhar!”. Quando a porta já batia, ainda ouvi um: “em 2025, falamos para comprar outra!”

Por mais montanhas que uma pessoa tenha de atravessar, ainda é o humor que nos safa. E a ironia –sobretudo a ironia. 

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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