Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me – … mas leva, leva… – e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei – Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu-me: – Leva… se ele fica aqui, morre de fome.
Jorge de Sena
ANTIGAS E NOVAS ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1940)
Um pequeno ensaio sobre as formas tão bem concebidas que se tornam quase invisíveis de continuar, sistematicamente, a empobrecer a população e a fortalecer os infames 1% de quem já não se aguenta nem ouvir falar. O Trump faz parte dos 1%, o Putin faz parte dos 1%, e chega.
A Martina veio da Roménia agarrada às três filhas e com pouco mais, fugida num rompante à violência doméstica[1]. Em Estremoz encontrou um namorado romeno, que se chama Cornel e trabalha nas obras, e que, sobretudo, a trata como uma princesa. Também foi em Estremoz que a Martina descobriu uma casinha para viver, arranjou emprego a servir à mesa num dos restaurantes enormes da Feira, mas – e esta é a parte que eu não sei explicar bem, mas pouco importa[2] – enquanto não começar a receber o apoio da Segurança Social e as Autoridades Competentes não certificarem devidamente que a tal besta violenta não anda por aí, não pode ter as meninas com ela. Estão numa espécie de asilo, ou orfanato, ou lar, ou o que queiram chamar a tudo o que diz respeito a armazenar crianças, onde – diz o namorado[3] – “não lhes falta nada”.
Eu fico calada, mas é evidente que, acima de tudo, lhes falta a Mãe. E há-de faltar-lhes a segurança de saberem que desta vez, no lugar de Pai, está um homem que as estima, que não se mete nos copos, que se farta de trabalhar, e que, com o que ganha e com o pouco tempo que lhe sobra, ajuda a sua nova familiazinha tanto quanto pode.
A Martina não tem dinheiro para visitar as filhas mais do que de quinze em quinze dias. O Cornel é de uma tal dedicação ao seu novo projecto de vida que tira o dia para ir com ela, e ajuda sempre a pagar as viagens.
“Mas são assim tão caras, essas viagens?”
Quer-se dizer, de Évora para Estremoz o bilhete da camioneta custa 4,80 Euros. E, de Évora para Estremoz, a distância é de 46 quilómetros. Tendo em conta que, do Alandroal para Estremoz, a distância é apenas de 24 quilómetros…
“Que raio de transporte é que vocês usam, para tu teres que ajudar a Marina?”
“Oh, você sabe, Dona Clara. Comboio, isso acabou. E camioneta não tem. De maneira que ela vai e vem de taxi, é 60Euros para cada lado, portanto cada viagem é 120Euros. Às vezes ela não tem, mas, como é sempre o mesmo taxista, ele aceita fiado. Só que, depois, ainda fica mais caro.”
Tendo em conta que a bilheteira de Estremoz fica no Bar da Estação da Rodoviária local[4], é inútil ir lá perguntar qualquer coisa a não ser se tem imperial preta ou se só tem branca. Um senhor sempre muito bem posto[5], que é advogado em Lisboa mas foge para a sua terra assim que pode e nessas alturas se cruza frequentemente comigo nos passeios nocturnos do Sebastião[6], indicou-me o Turismo como local onde se pedem informações sobre minudências dessas[7]. E mais acrescentou:
“Não sei se estás bem a ver, mas dantes essas camionetas que fazem a ligação entre as aldeias mais pequenas andavam sempre cheias. Agora, como já não há pobres, toda a gente tem carro, não é? Então claro, cortou-se imenso nesses pequenos trajectos das camionetas.”
Desculpem.
AGORA QUE JÁ NÃO HÁ POBRES?
AGORA???
Mas esta gente vive em que mundo?
Está mais que estudado, mais que provado, mais que galardoado com o Nobel – toda a gente sabe que não há nada mais fácil do que acabar com a miséria. Só requer vontade política para isso.
Pelos vistos, esta é a vontade política de uma maioria absoluta que continua a autoapelidar-se de Socialista.
O raio que os parta.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] O pior, explica ela no seu português ainda muito hesitante, nem sequer era o que o monstro lhe fazia a ela. O pior, mesmo, eram as tareias que dava às filhas quando chegava a casa a meio da noite e podre de bêbado. Chegou a partir a clavícula da mais velha, que aguentou toda a fuga neste estado. Passou um ano e meio. A fractura ainda está a ser tratada no tal depósito de crianças do Alandroal.
[2] Alguém consegue explicar com absoluta coerência os procedimentos da Segurança Social? E, pior um pouco, por alma de quem é que esses procedimentos implicam separar os pais dos filhos? Desculpem a analogia, mas é que parece mesmo uma daquelas medidas estupendas do Trump.
[3] Note-se de passagem que este namorado cheio de dedicação tem um corpanzil que mete respeito, e anda a fazer obras cá em casa. Ou seja, aos olhos da população de Estremoz arranjei finalmente um gajo. E que gajo, caros leitores.
[4] Esse é outro tratamento da população absolutamente indigno. A estação é grande, e costumava ter uma bilheteira, onde uma pessoa podia pedir todas as informações que quisesse. Esta bilheteira fechou durante o primeiro confinamento, e depois nunca mais voltou a abrir. Nem toda a gente tem PCs, nem toda a gente sabe usar a internet, e aliás há imensa gente que nem internet tem. Houve para ali um momento de confusão, em que era frequente as pessoas irem de propósito a Borba, que é uma cidade bastante mais pequena que Estremoz mas ao menos tem bilheteira, para terem a certeza de que estavam a comprar os bilhetes certos. Depois o Bar – que, esse sim, faça chuva ou faça sol, está sempre a abarrotar de convívio com cerveja – viu ali uma óptima oportunidade de facturar mais uns cobres nada desinteressantes, por isso agora a gente compra os bilhetes no mesmo sítio onde compra as empadas e as queijadas. Uma vez a confusão na fila era tal que eu comprei um bilhete para Tavira, e, quando olhei bem para ele, era um bilhete para Lisboa. A senhora da caixa trocou o meu bilhete com o de outra pessoa qualquer. E, para remediar a situação, explicou o caso ao motorista, que se esteve bem nas tintas para a complexidade de tudo aquilo e me levou até Tavira com um bilhete para Lisboa.
[5] Agora que o dia se prolonga até às 22 horas, e levando em linha de conta que às 21.30 o Sebastião já está no seu posto ao cimo das escadas, a olhar para mim com uns olhos muito grandes de pobre cachorrinho abandonado, vê-se ainda melhor que as camisas do senhor são de botões de punho, que os loafers do senhor são da melhor camurça italiana que há, que só usa cintos de cabedal finíssimo e que nunca anda despenteado – ah, mas tudo isto ainda não é nada. O melhor de tudo, mesmo, é a voz do senhor. Uma autêntica voz de locutor de rádio, em baixo profundo e com sotaque de Estremoz. Este senhor ainda nem fez sessenta anos, quase não tem cabelos brancos, há cerca de três anos deixou completamente de beber, e está disponível. Depois não digam que não vos avisei.
[6] E não sei se é after-shave se é perfume, ou mesmo se será do shampô com que a sua dedicada Josefa dá banho ao imponente pastor belga que ele traz à trela – a verdade é que este senhor, além de estar sempre composto, também cheira sempre muito bem.
[7] Estranhei, não é? Uma banalidade como inquirir da camioneta Estremoz-Alandroal no Turismo? E ele, sempre com aquela sua linda voz, todo satisfeito com o nosso bate-papo porque assim podia fumar um cigarro até ao fim: “Então, ó Professora. Francamente. Hoje em dia, quem é que passa horas a fio a cruzar o Alentejo Profundo nessas camionetinhas que não sejam os turistas?”