ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Uma folha amarrotada é uma construção

brown and blue wallpaper

minuto/s restantes

Esta coisa do viver tem corpo mas também tem tempo. Como esse corpo que vestimos, e que esticamos a pele nos ossos, à medida que nos pomos de pé na vida, à medida que esse vestido fica solto, amarrotado e enrugado, onde antes existiam dobras, e a velhice se instala e nos aninha. A pele transforma-se em peles, todas as que vestimos, remendamos e engomamos ao longo do tempo.

Eventualmente, livres da pintura que pode esconder as brechas de terra seca que se abrem pela nossa cara, livres da roupagem que pode encobrir as manchas que povoam os nossos braços, livres para avistar os derrames que trepam pelas nossas pernas, vemos o tempo e não o corpo. Afinal, a quarta dimensão é visível e real, só que não conseguimos ver num momento só.

naked woman lying on bed

(E as curvas, as curvas onde alguém se pode aninhar em nós, onde nos podemos aninhar em alguém. Sento-me no teu colo e encaixo a cabeça na curva do teu pescoço e que descanso posso sentir, que alívio, que até o ar parece correr melhor dentro de nós se podemos repousar no carinho que um corpo encontra com outro corpo.)

A casa que nos embrulha não é diferente. Também se cansa, também se estraga e envelhece. Também decai e morre, também sofre abandono e entranha o cheiro das nossas peles nas paredes. (Será que fico a cheirar à minha casa?)

Tudo precisa de cuidado, de limpeza, de ternura, de um abraço. As coisas também. (As pessoas também.)

Mas os anos passam, e nós não vemos o tempo, a não ser quando ele já passou. Pensamos sempre que é cedo de mais ou tarde de mais. Pensamos sempre que há um ontem, um hoje e um amanhã, e que o hoje é já tão enorme que não dá para olhar para ontem ou imaginar o amanhã.

close-up photography of human hand

Não dá para falar mais baixo sem que os sussurros se infiltrem nas portas até enferrujarem as dobradiças que rangem, grasnam em cada vaivém. E não dá para falar mais alto sem que as vibrações sacudam as janelas e lá fora vejam que almas querem fugir a bater as asas e voar. (Longe, longe desta casa vou encontrar a minha casa.)

Cavar a terra para descobrir um projecto é como preparar o terreno para semear fruto desconhecido. Na verdade, não sabemos se estamos a pôr água de mais ou água de menos, não sabemos se quer sombra ou se quer luz. Só sabemos que, entre as ervas daninhas e o mundo a viver em volta, cada vez mais nos pavimentam os espaços vazios para que só passem as rodas, porque se passarem os pés sabemos que nos vamos queimar.

Da folha vazia passamos à folha amarrotada, no fim talvez cheguemos a um origami preciosamente podado, que levou tempo a mimar, aparar e amparar.

O mundo agora é feito de folhas amachucadas numa pressa. Amarfanhadas. Atiradas para o ar como quem tenta acertar no cesto dos papéis. Estas folhas sem desenho sempre existiram, espraiam-se pelas estevas desde sempre, agarradas o mais possível a ribeiros, que alimentavam campos, ou estão encavalitadas em buracos onde se conseguem enfiar nas cidades.

person with green yellow and pink paint on hand

Mas estas folhas de ontem tinham uma coisa que as folhas de hoje não tinham: tempo. Tinham demorado tempo, tinham custado tempo, tinham durado no tempo, tinham materiais feitos com o tempo infindável da natureza que sempre existia e sempre existirá.

E isto, simplesmente isto, tinha uma dignidade que não conseguimos hoje ver nas placas pré-fabricadas empilhadas num armazém enorme, sujo de colas e venenos vários que nos apressamos em assemblar por cima da cabeça e respirar intensamente.

Então, agora passamos por muita construção. Muita mais do que alguma vez a minha avó viu. A terra já não entra dentro da cozinha de casa, o Estado (essa entidade sobrenatural) até já tanto construiu, e tantos de nós saíram das barracas.

Porque estais então tristes? Porque estais então cansados?

two children sitting on ground with dried leaves

Posso ser eu a desenhar o espaço da curva do pescoço onde deveis repousar a cabeça e respirar de alívio?

Digam-lhes, não nos tirem as casas. Sejam elas como forem, não lhes chamem velhas nem tortas. Não nos digam que o nosso corpo polui o tempo, dêem-nos carinho, cuidado e limpeza. Criar demora, digam-lhes, aguardem.

Mariana Santos Martins é arquitecta


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