Não creio que haja algo de mais gratificante do que podermos exercer uma profissão de que se goste tanto que nem dê para definir como “trabalho”.
Se a conseguirmos desempenhar, ao longo da vida, sendo ainda principescamente remunerado por tal e, graças a ela, ganharmos o estatuto de “pessoa mediática”, é o cúmulo da felicidade.
Essa será, provavelmente, a principal razão que leva centenas de pais, por todo o mundo, a investir fortunas para que os seus filhos possam tentar vencer nessas carreiras.
Principalmente se considerarem que têm essas vocações.
O futebol será, provavelmente, o exemplo mais forte.
Não deve haver espectáculo, em todo o mundo, com tantos seguidores nem onde se invista mais dinheiro.
A quantidade de jornais, revistas, programas de rádio e televisão que vivem deste fenómeno é caso único.
A ligação dos adeptos às diversas equipas supera, em muito, a que os crentes têm para com as suas igrejas.
Um adepto que se revolta quando se levanta a hipótese de aumento de uns euros aos seus governantes, considera da mais elementar justiça que se assinem contratos, com jovens de dezoito anos, com salários mensais superiores ao de todos os membros do Governo do país durante um ano.
Obviamente que este cenário só poderia levar ao aparecimento de oportunistas querendo facturar com as expectativas das famílias de jovens a quem se aponta talento.
Portugal não é diferente e os casos de exploração sucedem-se.
Nenhum com a gravidade do último caso conhecido.
Gente importante, e com cargos na estrutura futebolística nacional, e na política, criaram uma escola, pomposamente chamada de “Academia”, para jovens a quem se reconhecesse o dom para este desporto.
O presidente da “Academia” era, nem mais nem menos do que, o Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Liga Portugal.
Entre os seus “embaixadores” constava um ex-Secretário de Estado e ex-Presidente da AICEP e TAP cujas funções, segundo o próprio, “consistiam em fazer contactos com vários players nacionais e internacionais, institucionais e empresariais”, estando, entre essas entidades, “Embaixadas de Portugal no estrangeiro, Embaixadas do estrangeiro em Portugal, SEF, Ministérios e Departamentos Governamentais e empresas privadas nacionais e internacionais”.
Estes nomes e cargos, que eram apresentados aos potenciais interessados, levaram a que muitos pais, de países estrangeiros e longínquos, lhes confiassem os filhos, pagando propinas que chegavam aos dois mil euros mensais, para os formarem como futebolistas.
O destino era uma “escola” em Riba de Ave que, veio a saber-se agora, não passava de um esquema, que as autoridades consideram criminoso, com o único intuito de ganhar dinheiro.
Nas buscas ao local as autoridades encontraram mais de cem jovens atletas, estrangeiros, muitos deles menores, que dormiam em camaratas fechadas a cadeado.
Os jovens tinham acesso limitado ao exterior, tinham ficado sem os documentos e eram muitas vezes sujeitos a medidas disciplinares.
Alguns deles, em entrevista à Rádio Renascença denunciaram a prática de retenção de passaportes dos atletas, por parte da direção, e queixaram-se de má alimentação e de restrições de circulação.
Pelo que as autoridades concluíram que eram, alegadamente, vítimas de uma rede de tráfico de seres humanos.
Ao contrário do “Embaixador” distraído, o Presidente do Sindicato dos Futebolistas não se mostrou surpreendido.
Até porque já tinha denunciado estas situações, em 2021, quando alertou o então Secretário de Estado da Juventude e do Desporto para o problema.
Garantiu que, na altura, foram convocadas as organizações, directa ou indirectamente envolvidas neste caso, nomeadamente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Segurança Social e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que “houve uma reunião”, mas que “nada mais foi feito”.
O terminar (ou o adiar) da concretização dos sonhos desta centena de jovens é muito preocupante.
Os prejuízos, que este episódio pode trazer para as Academias dos clubes profissionais, que tanto têm dado ao desporto e a centenas de jovens, são incalculáveis.
Nada que mereça a milésima parte da atenção concedida, quer pelos nossos políticos quer pelas nossas televisões, por exemplo, ao célebre roubo de um computador do gabinete de um ministro.
O Governo, pelo Secretário de Estado da Juventude e Desporto, já veio considerar que “é inaceitável, chocante e condenável a situação que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras nos deu a conhecer, publicamente, através de uma operação de tráfico de seres humanos numa academia”.
Que teste magnífico para a nossa Justiça.
Vai ser curioso conhecermos a decisão, lá para 2040!
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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