VISTO DE FORA

A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António

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por Tiago Franco // Julho 3, 2023


Categoria: Opinião

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O Bloco de Esquerda (BE) deixou de me motivar no período que se seguiu ao Miguel Portas, Daniel Oliveira e Ana Drago. Entrou numa fase de lideranças errantes, e Catarina Martins sempre foi, na minha opinião, um erro de casting. A um político não basta passar a mensagem certa, tem de saber passá-la sem irritar o ouvinte.

Catarina Martins falhava, habitualmente, nas duas vertentes. Ainda assim não deixei de acompanhar a vida do partido. Posso não ser eleitor do BE, mas sou eleitor de esquerda e, portanto, tudo o que acontece entre o cada vez mais centrista PS e a extrema-esquerda do MRPP me interessa. Extremismos à parte, espero ter essa parte ficado implícita.

Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES (2014-2015), fiquei a conhecer Mariana Mortágua. Tinha tudo, achei eu nessa altura, para ser uma política de sucesso. Estudava os temas, falava de forma calma e ponderada, usava argumentos lógicos e facilmente perceptíveis pelos eleitores, sem entrar em populismos baratos. Esta parte é importante num político que quer algo mais do que um esporádico bom resultado eleitoral.

O pouco que fui vendo da vida do BE, desde essa comissão de inquérito foi, essencialmente, para perceber para onde caminhava Mariana Mortágua. Nunca percebi, que me perdoem os seus acólitos, como foi possível manter tantos anos Catarina Martins na liderança, quando se tinha Mariana Mortágua ali ao lado.

O discurso de uma e de outra é a diferença entre mudar o canal ou ficar a ouvir até ao fim. Depois de algumas eleições catastróficas, e, julgo, quase 10 anos de liderança, Catarina cedeu o lugar a Mariana. Em boa hora.

Este fim-de-semana, numa sardinhada do BE, Mariana Mortágua deixou duas ideias simples, mas fortes, dada a urgência de ambas. A primeira relacionada com as taxas de juro e com a inoperância do Governo português perante os aumentos do Banco Central Europeu (BCE).

Com salários que rondam os 800 ou 900 euros, algumas famílias viram a prestação da casa subir de 400 para 700 euros. Não é preciso ser um matemático de eleição para perceber que não se vive assim. Na melhor das hipóteses, sobrevive-se.

Como pode um país cada vez mais pobre, como Portugal, suportar políticas de aumento da despesa familiar para controlar a inflação? Como é que se pode aplicar a gregos, portugueses e romenos a mesma estratégia que seguem alemães, belgas e holandeses? E por que razão é apenas Mariana Mortágua que repete isto, sugerindo que os bancos, com lucros recorde, absorvam os aumentos em vez de sacrificarem as famílias. Tudo isto é tão óbvio que nem deveria dar argumentos para uma conversa.

A outra mensagem, relacionada com a Educação, foi a de exigir que as creches fossem incluídas no sistema público de ensino e tal, como as escolas, fossem gratuitas em cada bairro e cidade. Algo que afirmo há pelo menos 14 anos, desde que percebi, na minha vivência de emigrante, que os impostos podem ser usados numa Educação verdadeiramente universal. Da creche até ao Ensino Superior, as mesmas oportunidades para o filho do padeiro e do médico. Tudo gratuito. É isso, e apenas isso, que faz um sistema de ensino universal.

Uma vez mais, porquê apenas Mariana Mortágua, entre duas sardinhas e um copo de vinho tinto, fala sobre isso? Poucas coisas são tão importantes para um país pobre e envelhecido do que o estímulo à natalidade. As creches gratuitas são parte importante do plano.

Gosto quando a esquerda fala sobre temas clássicos da esquerda sem se perder em discussões de unicórnios ou casas de banho, por onde o Bloco resolveu andar nos últimos anos. Estes são temas actuais, importantes e prioritários. Ditos de forma perceptível e sem grandes dramas ou demagogias. Mariana não parece encarnar um personagem, limita-se a dizer o que pensa. Ou, pelo menos, é essa a sensação que passa.

No mesmo fim-de-semana, nas Caldas da Rainha onde há anos se recolheu, António José Seguro deu um ar da sua graça e parece, anos depois da rasteira que lhe passaram, estar disposto a regressar às lides políticas. Sobre Seguro, voltarei noutro texto porque há algo mais para dizer, mas, para já, fico com a impressão de que a esquerda portuguesa se começa a mexer numa direcção curiosa, para o período de oposição que se adivinha.

Depois de tutti-fruttis, Catarinas, Costas, Galambas, Temidos e Cabritas, o futuro parece apontar para algo mais suportável, para quem não vota em Montenegro, Ventura ou o novo Cotrim (ainda não lhe decorei o nome).

Já só falta o João Ferreira. Mais década menos década, está ai a rebentar.  

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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