LUZ SOBRE INQUÉRITO À OPERAÇÃO MARQUÊS: O PAPEL DO JORNALISMO

Acórdão demolidor do Tribunal Central Administrativo dá (terceira) vitória do PÁGINA UM contra o Conselho Superior da Magistratura

por Redacção PÁGINA UM // Julho 4, 2023


Categoria: Exame

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Em causa está o acesso ao inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês, e o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação de Portugal que não aceitou um NÃO do todo-poderoso Conselho Superior da Magistratura. E foi à luta pelos direitos de acesso à informação. Primeiro, na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Venceu, mas o CSM recusou. Segundo, no Tribunal Administrativo de Lisboa. Venceu, mas o CSM recorreu. E o PÁGINA UM viu agora três desembargadores darem-lhe razão. Terceira vitória. Haverá novo despique, agora no Supremo Tribunal Administrativo, para um provável 4-0, ou o CSM vai aceitar que se vive numa democracia?


A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, anunciada em Junho do ano passado era já claríssima: “Em face do que antecede, julgo a presente acção intentada por Pedro Almeida Vieira [director do PÁGINA UM] procedente e, em consequência, intimo o Conselho Superior da Magistratura [CSM] a, no prazo de 10 dias, facultar-lhe o acesso aos documentos por aquele solicitados através do seu requerimento de 2 de Dezembro de 2021”.

Este deveria ter sido o corolário de sete meses de legítima pressão do PÁGINA UM – consubstanciada na Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e da Lei da Imprensa – sobre o CSM para a obtenção do célebre inquérito à distribuição do processo da Operação Marquês em 2014 – então entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre, e que culminaria então com a detenção do ex-primeiro-ministro, José Sócrates.

Conselho Superior da Magistratura quis sempre manter secretismo sobre os meandros da Operação Marquês.

Mas não foi, Na verdade, foi preciso mais um ano, muito mais papel, mais um parecer do Ministério Público, e um acórdão de três juízes desembargadores de 23 páginas para fazer cumprir um direito óbvio de acesso a documentos administrativos e ao exercício da liberdade de imprensa.

O “caso” foi espoletado pelo PÁGINA UM em finais de 2021, mas era uma história antiga. Sistematicamente, o CSM recusava a divulgação do famoso inquérito à entrega ao juiz Carlos Alexandre do mais famoso processo judicial em tempos de democracia, a Operação Marquês. Este inquérito tinha feito já correr muita tinta, incluindo um processo judicial de José Sócrates contra o Carlos Alexandre, que acabou arquivado pelo Tribunal da Relação em Maio do ano passado.

Porém, nunca este inquérito viu a “luz do dia”, como se fosse um segredo de Estado, e não um episódio fundamental para percebermos os bastidores da Justiça em Portugal.

O PÁGINA UM não aceitou e foi dar luta ao CSM onde se deve fazer num Estado de Direito: nos palcos da lei e a ordem, enfrentando uma das cúpulas da Justiça – ou seja, exercendo a nobre função do Jornalismo

Primeira página do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul concedendo o direito de acesso ao PÁGINA UM.

Primeiro, pedindo formalmente os documentos, corria o mês de Dezembro de 2021. Em 21 desses mês, a juíza Ana Sofia Wengorovius, adjunta do CSM, recusou liminarmente, emitindo um parecer alegando que o acesso por um jornalista àqueles documentos violaria ou afectaria “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, salientando que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.

O PÁGINA UM recorreu então à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, que viria a dar razão ao PÁGINA UM em 17 de Fevereiro de 2022.

Mas nem assim o CSM se disponibilizou a ceder os documentos do inquérito, advogando que o parecer da CADA não era vinculativo, acabando mesmo por “convidar” o PÁGINA UM a recorrer para o Tribunal Administrativo de Lisboa.

O órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais portugueses considerou então, através da também juíza Ana Cristina Chambel Matias que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso”, acrescentando que “apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos”.

Na verdade, o PÁGINA UM sempre alegou que o estatuto de jornalista era suficiente, tendo sim recusado justificar se a consulta se consubstanciaria em notícia ou não.

O PÁGINA UM decidiu então seguir para a verdadeira luta judicial: o Tribunal Administrativo, naquele que viria a ser o primeiro processo de intimação financiado pelos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO,

Em sede de contestação, o CSM insistiu na tese da existência de “dados nominativos” nos documentos do inquérito. Porém, em vez de acreditar piamente no CSM, o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, Pedro Almeida Moreira, exigiu que lhe fosse enviado “em envelope selado, cópia dos documentos a que o Requerente [director do PÁGINA UM] pretende aceder, de molde a permitir a este Tribunal aquilatar se os mesmos contêm ou não ‘múltiplos dados pessoais’ e, ‘se a isso se chegar, tecer um juízo de proporcionalidade concernente aos interesses que aqui se encontram concretamente em jogo’”.

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A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, em 30 de Junho do ano passado, foi o primeiro revés para o CSM, uma vez que o juiz Pedro Almeida Moreira considerou, consultando o inquérito à distribuição da Operação Marquês, que este “não configura um documento nominativo, em sentido próprio”, uma vez que “em causa estão unicamente dados atinentes aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada”.

O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa tecia mesmo duras críticas às alegações do CSM, considerando que “a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido [CSM], isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.”

Mas o CSM não se deu por vencido com a opinião da CADA e do Tribunal Administrativo de Lisboa, recorrendo – e obrigando o PÁGINA Um a suportar mais encargos judiciais – para o Tribunal Central Administrativo Sul. E o acórdão demorou, mas saiu no final da passada semana. E é um acórdão demolidor.

Más notícias, portanto, para os conselheiros do CSM.

Mas óptimas notícias para a transparência pública e para a liberdade de imprensa num sistema democrático.

Sentença do juiz Pedro Almeida Moreira foi “validada” por três desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul, que lançam críticas à atitude do Conselho Superior da Magistratura.

O acórdão, votado por unanimidade pelos desembargadores Lina Costa (que foi a relatora), Catarina Vasconcelos e Rui Pereira em 29 de Junho passado, arrasa em toda a linha a argumentação que o CSM usou para evitar o acesso ao inquérito.

E até aborda em detalhe o argumento do CSM de que o director do PÁGINA UM não tinha justificado – porque se recusou a justificar, por ser óbvio aquilo que um jornalista faz – a finalidade dos documentos requeridos.

Para os desembargadores, a sentença inicial do juiz Pedro Almeida Moreira é para manter em toda a linha, concluindo que não houve qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.

O acórdão mostra-se, aliás, particularmente importante por clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo, através da recusa de acesso ou à eliminação até do nome de funcionários públicos em documentos administrativos, como se tem observado no Portal Base com os contratos públicos.

Nessa linha, os desembargadores salientam que “essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente, “enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”, o CSM deveria ter permitido logo o acesso.

Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”

Os desembargadores concluem que o CSM não poderia ter decido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos], até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”

O CSM foi ainda condenado a pagar as custas do processo, mas pode ainda recorrer para a última instância para o Supremo Tribunal Administrativo. Essa opção implicaria novo atraso num processo que é considerado urgente – mas que já vem de 2021 – e mais custos para o PÁGINA UM.

Mas, se tal suceder, o CSM arrisca também perder uma quarta vez, depois de uma deliberação da CADA, de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e deste recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.


N.D. Os processos de intimação do PÁGINA UM só são possíveis com o apoio dos leitores. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

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