Escândalo na imprensa: jornalismo comercial "combinado" acaba no Tribunal de Contas

ERC detecta quatro grandes empresas de media com 15 contratos públicos forjados

por Pedro Almeida Vieira // Julho 7, 2023


Categoria: Imprensa

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O jornalismo costumava ser o watchdog da gestão pública, mas afinal, nos últimos anos, práticas ilegais e eticamente reprováveis foram cometidas pelas próprias empresas de media. A fiscalização da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – que até foi branda e deixou escapar demasiados responsáveis editoriais – não apenas detectou “jornalistas comerciais”. Também se apanhou 15 contratos públicos forjados, sobretudo com autarquias, entre as quais a de Lisboa, então presidida por Fernando Medina, e a de Viana do Castelo, então liderada pelo actual secretário de Estado do Mar. Mas a ERC também considera que padecem de nulidades um contrato do Ministério da Economia e até um assinado por uma associação empresarial que tem Marcelo Rebelo de Sousa como presidente honorário. Impresa, Global Media, Cofina e Trust in News deverão ser agora “condenadas” a devolver os montantes pagos em contratos forjados, e os gestores públicos multados.


Nulos – e como se nunca tivessem existido. São 15 os contratos assinados por quatro empresas de comunicação social “apanhados” pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que estarão feridos de nulidade por a data da sua celebração ser posterior às datas em que foram executados os serviços prestados.

As deliberações do regulador – que, neste caso em concreto, incidem sobre alguns dos contratos públicos assinados sobretudo nos últimos três anos pela Impresa, Global Media, Trust in News e Cofina – terão já sido enviadas para o Tribunal de Contas, a entidade com competência para declarar a nulidade do contrato. Por norma, nestas circunstâncias, o Tribunal pode mandar devolver as verbas às entidades públicas e aplicar sanções aos dirigentes públicos que assinaram os contratos.

Domingos de Andrade, durante um evento pago à Global Media pela autarquia de Setúbal, corporiza o “novo jornalismo” português: escreve notícias, dirige órgãos de comunicação social e estabelece parcerias comerciais para promover entidades, não se importando com o cumprimento de normas de contratação pública.

Pela leitura das sete deliberações da ERC, divulgadas na sua totalidade na semana passada, contabiliza-se um contrato ilegal assinado pela Impresa , dois pela Trust in News, cinco pela Cofina e sete pela Global Media.

De entre as entidades públicas que se disponibilizaram a forjar contratos encontram-se sobretudo autarquias – oito, no total, incluindo a de Lisboa, então liderada pelo actual ministro das Finanças, Fernando Medina –, mas também duas empresas municipais (de Gaia e de Lisboa), o Instituto Politécnico de Portalegre, o Instituto Camões, a COTEC (uma entidade empresarial, que tem Marcelo Rebelo de Sousa como presidente honorário) e até o Ministério da Economia, através da sua Secretaria-Geral.

De acordo com diversas deliberações públicas da ERC – que têm estado a ser analisadas pelo PÁGINA UM –, em relação à Impresa está em causa um contrato com a EMEL, assinado pelos seus administradores Luís Natal Marques e Francisco Ramalhosa. Assinado em 26 de Fevereiro de 2020, no valor de 13.500 euros, tem como objecto a “aquisição de serviços para publicação de editorial com conteúdos publicitários sobre os 25 anos” desta empresa municipal de Lisboa.

Contrato entre EMEL e Impresa, para um suplemento do Expresso, considerado ilegal pela ERC. O Tribunal de Contas foi chamado a declarar nulidade.

Porém, o dossier sobre mobilidade que o sustenta já tinha sido publicado no Expresso em 7 de Dezembro de 2019 – ou seja, 81 dias antes do contrato –, sob a coordenação do jornalista José Miguel Dentinho, que estará agora, se a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) decidir actuar, sujeito a um processo disciplinar por ter executado tarefas jornalistas em cumprimento a um contrato comercial.

No caso da Trust in News – a empresa que tem como título principal a Visão –, o regulador detectou dois contratos ilegais para pagar publicações na revista Exame

No primeiro caso, envolveu um pagamento de 50.000 euros por parte da COTEC Portugal à TIN Publicidade e Eventos. O contrato serviu para formalizar a “aquisição de serviços de elaboração, produção e impressão de duas revistas, em formato físico e digital, assim como de 6 (seis) newsletters a desenvolver para e com a COTEC Portugal, no âmbito do Programa Advantage 4.0.”

Saliente-se que a COTEC Portugal é uma associação privada sem fins lucrativos constituída em Abril de 2003 na sequência de uma iniciativa do então Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio, mas tem um estatuto que a obriga ao cumprimento das normas de contratação pública. Tem, actualmente, Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente Honorário.

Marcelo Rebelo de Sousa é presidente honorário da COTEC Portugal, associação empresarial que assinou um contrato forjado com a Trust in News. Foto: Rui Ochoa/ Presidência da República

O contrato em causa foi assinado pela então presidente da COTEC Portugal, Isabel Furtado, em 28 de Dezembro de 2020, mas um dos suplementos da revista Exame, enviado pela Trust in News à ERC, já tinha sido afinal publicado 10 meses antes, em Fevereiro daquele ano.

Embora a ERC não se tenha mostrado interessada em escalpelizar as newsletters e a outra revista, nem o caderno de encargos do contrato – onde, geralmente, se especificam em concretos as obrigações –, “apanhou” o director da revista Exame, Tiago Freire, a escrever o editorial desse primeiro suplemento, razão pela qual integra a lista de 14 “jornalistas comerciais” enviados à CCPJ pela ERC.

O segundo contrato ilegal da Trust in News foi assinado com o Instituto Camões em 15 de Dezembro de 2020 pelo seu actual presidente, o embaixador João Ribeiro de Almeida. Envolvendo o pagamento de 31.099,30 euros para a produção e publicação de um encarte editorial na edição quinzenal saída em 2 de Dezembro, ou seja, 13 dias antes da data do contrato. Apesar de a Trust in News até admitir que houve jornalistas envolvidos, não os identificou, e a ERC não se interessou em saber quem foram.

No caso dos seis contratos da Global Media, todos envolveram autarquias: Barreiro, Valongo, Lisboa, Aveiro (dois contratos), Setúbal e Estarreja.

Em relação a autarquia do Barreiro, o contrato está associado ao pagamento de 19.995 euros pela “aquisição de serviços de comunicação no âmbito dos 500 anos da autarquia do Barreiro”.

Câmara do Barreiro pagou quase 20 mil euros por um debate e cobertura noticiosa no Diário de Notícias. O debate foi moderado pela então subdirectora do DN e directora do Dinheiro Vivo, Joana Petiz (primeira, à direita). ERC concluiu que o contrato é nulo.

A ERC verificou que o contrato foi assinado em 30 de Agosto de 2021, mas afinal a cobertura noticiosa de um dos eventos contratualizados realizou-se em 25 de Junho. Saliente-se que a Global Media confessou que um desses eventos, uma conferência, teve a moderação da então directora-adjunta do Diário de Notícias, Joana Petiz, mas a ERC não considerou que estaria a executar um contrato comercial, ao contrário da jornalista que escreveu sobre o evento (Alexandra Costa), que integra a lista de 14 “jornalistas comerciais”.

Por sua vez, o contrato com a Câmara Municipal de Valongo teve um pagamento associado de 7.500 euros para “aquisição de serviços de comunicação e divulgação do evento ‘Switch to Innovation Summit’”, tendo sido assinado em 22 de Junho de 2021. Neste caso, a ERC acreditou que foi apenas publicidade, com um problema: foram inseridos no Jornal de Notícias uma semana antes da celebração do contrato.

Contudo, na verdade, o contrato envolveu a participação de jornalistas da Global Media no evento pago pela Câmara Municipal de Valongo, em tons encomiásticos. Foi o caso do jornalista Paulo Ferreira, também investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, que participou activamente no evento, moderando um debate com o presidente da edilidade. Ferreira não poderia ser mais louvaminheiro de Valongo, agradecendo o facto de o Jornal de Notícias ter sido convidado a ser media partner “nesta excelente iniciativa”.

Jornalista Paulo Ferreira (primeiro à esquerda), do Jornal de Notícias, não poupou elogios ao presidente da autarquia de Valongo, José Manuel Ribeiro (segundo, à esquerda), que pagou o evento à Global Media, mas num contrato nulo.

“Temo-nos habituado a olhar para Valongo como um município provocador no sentido de elaborar um conjunto de iniciativas que, como se diz hoje, saem um bocadinho da caixa”, afirmou Paulo Ferreira na introdução ao debate, congratulando-se de o periódico da Global Media já ter feito outros eventos com esta autarquia. José Manuel Ribeiro, autarca que pagou o evento, foi classificado por este jornalista do Jornal de Notícias como um dos “convidados” de “alto gabarito” do debate, completado com mais elogios grandiloquentes.

No final do debate de 50 minutos, Paulo Ferreira despediu-se de José Manuel Ribeiro, e em nome “da direcção do Jornal de Notícias” agradeceu o convite e o desafio para “sermos media partner”, sem referir que houve um pagamento pela função. A ERC ignorou estes factos que consubstanciam a promoção feita por jornalistas a uma entidade pública pagadora.

Quanto ao contrato da autarquia de Lisboa com a Global Media, que nem sequer foi reduzido a escrito, envolveu o pagamento de 17.500 euros e foi assinado em 24 de Maio de 2021, para, segundo consta no Portal Base, a “aquisição de serviços de campanha de comunicação para divulgação e promoção do seminário ‘O investimento público no pós-pandemia’, a realizar nos Paços do Concelho”.

ERC analisou pela “rama” parcerias polémicas entre entidades públicas e empresas de media, mas não se importou com a participação dos directores editoriais, culpando apenas jornalistas que escreveram artigos abrangidos por contratos.

Neste caso, a ERC caiu no logro das justificações da Global Media, porque na sua deliberação diz que “trata-se de um anúncio publicitário a um evento organizado pelo Município de Lisboa, publicado numa edição eletrónica do Diário de Notícias”, e também na edição em papel de 19 de Maio, ou seja, cinco dias antes do contrato.

No entanto, bastaria a ERC fazer uma simples pesquisa na Internet para confirmar que a participação do Diário de Notícias num contrato de 17.500 euros foi mais do que publicar anúncios.

Na verdade, o evento foi transmitido pelo site do Diário de Notícias, “com abertura garantida pelo [então] líder do executivo municipal, Fernando Medina”, tendo marcado “presença o vereador João Paulo Saraiva e o economista Alfredo Marvão Pereira como keynote speakers”. Na segunda parte, houve um debate com António Saraiva, então presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), e Augusto Mateus, professor e antigo ministro da Economia, “numa conversa moderada por Rosália Amorim, diretora do DN”. O então ministro do Planeamento, Nelson de Souza, ministro do Planeamento, encerrou a iniciativa.

Assim, apesar da evidente participação activa da directora do Diário de Notícias numa prestação de serviços para a Câmara Municipal de Lisboa, envolvendo autarcas que pagaram o serviço à sua entidade empregadora, Rosália Amorim não foi identificada para a lista de “jornalistas comerciais” agora a contas, se assim o Plenário da CCPJ, com processos disciplinares por violação do Estatuto do Jornalista.

Seminário pago pela Câmara Municipal de Lisboa à Global Media foi moderado pela directora do Diário de Notícias, que depois publicaria uma notícia sobre o evento. Este artigo noticioso é da autoria do jornalista Francisco de Almeida Fernandes, que embora detectado como “jornalista comercial” em conteúdos comerciais para o Expresso, não foi, neste caso, “fiscalizado” pela ERC.

Curiosamente, o Diário de Notícias até publicou uma notícia sobre o seminário, na data do contrato (24 de Maio), destacando sobretudo a intervenção de Fernando Medina, que pagou, através dos cofres autárquicos, a operação de promoção. O artigo noticioso foi escrito pelo jornalista Francisco de Almeida Fernandes, que não foi alvo de análise neste caso, pese embora tenha sido identificado pela ERC como “jornalista comercial”, mas por conteúdos escritos para o Expresso.

Em relação à autarquia de Aveiro, o primeiro contrato ilegal com a Global Media refere-se à “aquisição de serviços de organização da conferência “Aveiro no Centro da Resposta à Pandemia”, no âmbito do “JN Praça da Liberdade – Ciclo de Conferências”, contra o pagamento de 65.000 euros. O contrato foi assinado em 3 de Novembro de 2020.

Também aqui a ERC fez uma análise pela rama, acreditando que se tratou apenas de “um anúncio publicitário a um evento organizado pelo Município de Aveiro, publicado na edição impressa de 16 de outubro de 2020 do Jornal de Notícias”, em data anterior à da celebração do contrato. Mais uma vez, além do contrato assinado fora do prazo, houve mais factos irregulares não analisados pelo regulador.

Fernando Medina, então presidente da autarquia de Lisboa, pagou, em Maio de 2021, um total de 17.500 euros à Global de Notícias para promoção pública da sua acção política. O Diário de Notícias cobriu o evento, mas ERC diz que contrato é nulo por violação das regras de contratação pública. Foto: Luís Filipe Catarino/CML

Com efeito, a ERC nem sequer procurou saber o que era a “JN Praça da Liberdade” por pesquisa na Internet, não verificando assim que o contrato englobava a organização de uma conferência no dia 23 de Outubro de 2020 – ou seja, duas semanas antes da sua celebração por ajuste directo, também sem redução a escrito.

Na página do YouTube da Câmara Municipal de Aveiro até se pode visualizar a entusiástica abertura de Ribau Esteves, presidente da edilidade que pagou à Global Media, agradecendo ao jornalista Domingos de Andrade, também administrador da Global Media e director da TSF, por ser o “desafiador desta Praça da Liberdade”.

Embora a conferência tenha sido apagada entretanto do site do Jornal de Notícias, ainda se encontra no portal do YouTube da autarquia de Aveiro uma intervenção de 21 minutos e 4 segundos de Ribau Esteves a promover a recuperação e a saúde financeira da sua edilidade. A promoção do autarca, numa conferência apresentada como conteúdo editorial, foi feita afinal sob o pagamento de uma factura de 65.000 euros saídos dos cofres públicos.

A intervenção de Ribau Esteves tem, aliás um aspecto agora algo irónico. O autarca social-democrata aproveitou para lançar um forte ataque à intervenção do Tribunal de Contas, no controlo da corrupção, e está agora sujeito à acção do Tribunal de Contas que, com elevadíssima probabilidade, considerará nulo o contrato entre a Câmara Municipal de Aveiro e a Global Media.

Câmara Municipal de Aveiro fez dois contratos forjados com a Global Media. Num dos eventos, Ribau Esteves até chegou a criticar a acção do Tribunal de Contas, que agora deverá considerar nulos aqueles contratos.

Além deste, um outro contrato da autarquia de Aveiro, assinado em 19 de Dezembro de 2019 com a Global Media, estará também ferido de nulidade. A ERC diz que a Global Notícias lhe enviou um “anúncio publicitário” impresso na edição de 6 de Dezembro, ou seja, duas semanas antes da formalização do contrato.  Mas, estranhamente, o regulador não foi mais longe para desvendar os contornos de um contrato com um valor significativo (110.000 euros) que não se poderia esvair num mero anúncio publicitário.

O contrato no Portal Base – no valor de 110.000 euros, repita-se – é completamente omisso sobre o âmbito do “evento ‘Sai pra Rua’ no âmbito do projecto ‘Boas Festas em Aveiro’”, porque tudo é remetido para um caderno de encargos não divulgado. Mas a ERC poderia exigir a sua entrega por via das suas funções fiscalizadoras. Não o fez.

Em todo o caso, o PÁGINA UM detectou um programa da Câmara Municipal de Aveiro sobre essa iniciativa, que decorreu entre 1 de Dezembro de 2018 e 14 de Janeiro de 2019.

Quanto ao contrato com a autarquia de Setúbal, foi assinado em 3 de Março de 2020 para uma conferência do Jornal de Notícias sobre regionalização, que também já desapareceu do site deste periódico, mas que ainda se encontra no site do município. Para promover a campanha a favor da regionalização, a conferência contou também com os então presidentes das autarquias dos Porto, Rui Moreira, de Oeiras, Isaltino Morais, e de Loures, Bernardino Soares, ficando estabelecido o pagamento de 19.997 euros.

O problema é que o contrato, não reduzido a escrito, estipulava um prazo de execução de 12 dias, mas o evento apenas se realizou em 25 de Novembro. Ou seja, está em incumprimento das normas de contratação pública, sendo nulo.

Maria das Dores Meira, então presidente da autarquia de Setúbal, pagou quase 20 mil euros por um evento organizado em 2021. Mas o contrato, assinado em Março, estipulava um prazo de execução de 12 dias. O evento só se realizou em Novembro. ERC defende nulidade do contrato.

Curiosamente, Domingos de Andrade, o jornalista e administrador da Gobal Media, teve um papel particularmente interventivo no evento, sendo até citado no site da Câmara Municipal de Setúbal. Segundo um artigo camarário, Domingos de Andrade “realçou o facto de a regionalização ser um processo ‘assombrado por contradições, avanços e recuos, cavando o aumento do fosso entre as regiões’”, e que defendeu que, “embora para os opositores da regionalização a situação económica e social em que a pandemia de covid-19 deixou o país ‘sirva de pretexto para novos adiamentos’, esta ‘mostrou a falta que faz um nível intermédio de legitimidade política’”.

Por fim, o sexto contrato ilegal entre autarquias e a Global Media ocorreu com a Câmara Municipal de Estarreja para a organização de eventos, no valor de 6.000 euros, de acordo com o Portal Base.

Segundo a ERC, tratou-se de anúncios numa edição electrónica do Jornal de Notícias e na edição impressa de 16 e 22 de Fevereiro de 2020 sobre o Carnaval, ou seja, antes da data do contrato, que ocorreu em 28 de Fevereiro. No entanto, no Portal Base, onde surge a referência ao facto de o contrato não ter sido reduzido a escrito, foi acrescentada a informação de uma redução do pagamento para apenas 4.000 euros, uma vez que “não foi realizado um dos eventos contratualizado – GARCICUP 2020 (COVID-19)”. A ERC não aprofundou estas incongruências.

Rosália Amorim, directora do Diário de Notícias, é uma recordista na participação de eventos pagos à Global Media por entidades públicas e privadas. Passou “pelos pingos da chuva” na análise feita aos contratos públicos por parte da ERC.

Em relação aos cinco contratos da Cofina, estão em causa relações comerciais com o Instituto Politécnico de Portalegre, com a empresa municipal Gaiurb, as autarquias municipais de Viana do Castelo e Albufeira e ainda a Secretaria-Geral do Ministério da Economia.

De acordo com a deliberação da ERC, o Instituto Politécnico de Portalegre assinou um contrato de prestação de serviços com a Cofina, em 25 de Maio de 2022, no valor de 74.950 euros, para “prestação de serviços de informação e publicidade no âmbito do Projeto Guardiões”.

A ERC considerou aceitável que a Cofina justificasse um montante tão elevado (74.500 euros) através da inserção de apenas três comunicados de imprensa, devidamente identificados como tal, na Sábado e Jornal de Negócios. E apenas apontou como grave terem sido publicados antes da celebração do contrato, pelo que sinalizou o facto junto do Tribunal de Contas.

No caso da Gaiurb – a empresa municipal de urbanismo de Vila Nova de Gaia –, a ERC comprovou que se tratava exclusivamente de um contrato comercial, com conteúdos inseridos na secção C-Studio, mas com data de contrato posterior à execução dos serviços. Com efeito, o contrato foi celebrado em 10 de Novembro de 2021, mas a ERC confirmou que os vídeos feitos estiveram disponíveis a partir de Junho desse ano, ou seja, mais de quatro meses antes. Por quatro vídeos, a Cofina recebeu 53.000 euros da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, que nos últimos anos tem sido pródiga a distribuir dinheiro pelos principais grupos de media.

A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, presidida pelo Eduardo Vítor Rodrigues, é uma das autarquias que mais dinheiro distribui pelos diversos grupos de media.

Quanto ao contrato com a autarquia de Viana do Castelo, em causa está a “prestação de serviços para organização de seminário e divulgação – Economia Azul”, assinado em 17 de Setembro de 2021, num valor de 13.500 euros. A ERC detectou, ou quis apenas detectar, que o contrato integrava a realização de um webinar (seminário) sobre Economia Azul (relacionada com os recursos económicos do mar), noticiado no Jornal de Negócios, que decorreu em 9 de Setembro daquele ano, ou seja, cerca de uma semana antes da celebração do contrato.

Mas, na verdade, houve mais do que isto no decurso do webinar propriamente dito. Por causa da pandemia, teve presenças físicas e online, durante cerca de duas horas, e que se encontra ainda disponível no portal do YouTube da autarquia de Viana do Castelo. E embora a ERC não se tenha debruçado sobre esta questão, o webinar teve a introdução da directora do Jornal de Negócios, Diana Ramos, que falou que o ciclo de conferência contava com “o apoio da Câmara Municipal de Viana do Castelo”, agradecendo o “acolhimento”, e omitindo completamente a existência de um contrato de prestação de serviços e de pagamentos.

Através de uma mensagem transmitida em vídeo, a directora do Jornal de Negócios não foi, aliás, nada parca em elogios ao município, de “uma cidade ligada ao mar e aos princípios da sustentabilidade”, que pagou o evento à Cofina.

Em 9 de Setembro de 2021, Diana Ramos, directora do Jornal de Negócios, participou por vídeo num webinar pago pela autarquia de Viana do Castelo, tecendo um vasto rol de elogios. O contrato foi assinado uma semana depois. A ERC diz estar ferido de nulidade.

Diana Ramos opinou até que “Viana do Castelo está, aliás, a construir um percurso de centralidade na área da inovação e da nova Economia Azul, e que já tem reflexos cá dentro e lá fora”, e que “para esse caminho tem sido essencial a atracção de investimentos e de projectos de empresas estrangeiras na área das energias renováveis marinhas, a criação de uma plataforma multiusos de testes e ensaios com a participação de um conjunto de centros de investigação e desenvolvimento, e a presença de uma fileira industrial relevante na área da construção das embarcações e das plataformas off shore.

Ao concluir, Diana Ramos acrescentou que “este webinar pretende, por isso, destacar o conjunto de activos e dinâmicas que esta cidade [Viana do Castelo] apresenta no domínio da Economia Azul”. O discurso oral de Diana Ramos, um autêntico panegírico ao município que pagou o evento, evidenciava ter sido previamente escrito.

O Estatuto do Jornalista considera incompatível “a apresentação, através de texto, voz ou imagem, de mensagens publicitárias”, algo que se mostra patente no discurso da directora do Jornal de Negócios, ademais sabendo-se da existência do contrato com a entidade que Diana Ramos elogiou. Aliás, o Estatuto de Jornalista também proíbe funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem.

Contudo, a ERC não se debruçou sobre esta matéria, e a directora do Jornal de Negócios não foi listada nos “jornalistas comerciais” identificados pelo regulador dos media para envio à CCPJ para eventuais processos disciplinares.

Filipe Fernandes, jornalista do Jornal de Negócios, foi “pau para toda a obra” em contratos da Cofina. Moderou um seminário em Viana do Castelo e escreveu conteúdos comerciais em cumprimento de, pelo menos, quatro contratos analisados pela ERC.

Menos sorte, em comparação com a sua directora, teve o jornalista Filipe Fernandes. Além de ter sido mestre-de-cerimónias do webinar – que contou, entre outros, com a presença de António Nogueira Leite, presidente do Forum Oceano, que co-organizou o evento, e do presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, António Cunha –, este jornalista ainda assinou textos de um suplemento impresso no Jornal de Negócios em 23 de Setembro. Daí constar como um dos 14 “jornalistas comerciais” identificados pela ERC.

Mas o maior absurdo deste webinar – ou melhor, a falácia junto dos leitores sobre um evento pago à Cofina pela Câmara Municipal de Viana do Castelo – observou-se, porém, na intervenção do então presidente da edilidade. Apesar de José Maria Costa, que agora ocupa a Secretaria de Estado do Mar, saber bem aquilo que se combinara – o pagamento de 13.500 euros à Cofina para a realização do evento –, não teve pejo de dizer o seguinte: “A minha primeira palavra é, naturalmente, de agradecimento ao Forum Oceano e ao Jornal de Negócios por nos darem a oportunidade de participar neste evento”.

Por seu turno, o contrato da Cofina com a autarquia da Albufeira envolveu uma verba bem superior (70.000 euros), mas com contornos que evidenciam uma clara aquisição de serviços de promoção de imagem sob a forma de notícias e utilização de jornalistas. O caderno de encargos não consta no Portal Base nem a ERC o solicitou à Cofina, pelo que apenas se sabe que o contrato serviu para aquisição de um “plano de comunicação, valorização e divulgação da marca Albufeira a nível nacional”, estando com data de 27 de Abril de 2021.

José Maria Costa, actual secretário de Estado do Mar, presidia à autarquia de Viana do Castelo em 2021, quando pagou 13.500 euros à Cofina. Chegou a agradecer publicamente ter sido convidado para o evento (que pagou). ERC diz que contrato é nulo.

Além de detectar que houve notícias escritas pelo jornalista Filipe Fernandes – que, aliás, foi um “pau para toda a obra” da Cofina, porquanto na deliberação da ERC é referenciado como autor de textos comerciais em quatro contratos (Viana do Castelo, Melgaço, Comunidade Intermunicipal do Cávado e Albufeira) –, o regulador verificou que houve notícias sobre Albufeira publicadas, no âmbito deste contrato, entre os dias 8 e 10 de Abril. Ou seja, mais de duas semanas antes da celebração do contrato, daí que o Tribunal de Contas irá agir.

Mas aquilo que mais surpreende, neste caso, acaba por ser o teor das notícias associadas ao contrato, que aparentam ser “normais”, isto é, não há vestígios aparentes (para os leitores) de se tratar de artigos comprados. Com efeito, uma dessas notícias, assinadas por Filipe Fernandes, aborda “a aplicação Albufeira Safe” que pretenderia ser “um instrumento de turismo responsável com todos os cuidados sanitários para visitantes e residentes”. A fonte da notícia era Délio Pescada, chefe de gabinete do presidente da autarquia de Albufeira, a adjudicante do contrato de 70.000 euros pagos à Cofina.

Outra notícia, também assinada por Filipe Fernandes, tratou de “vender o peixe” de uma empresa de venda de peixe de Albufeira, a Nutrifresco, mas num tom perfeitamente jornalístico. Ou melhor dizendo, sendo um produto comercial apresentada como publicidade redigida (por jornalista).

ERC demorou quase um ano a analisar contratos públicos com grupos de media, mas nem sequer analisou os cadernos de encargos.

Estas duas notícias tinham, contudo, ligação íntima a um seminário de três dias, que decorreu em Albufeira, nos dias 8, 9 e 10 de Abril daquele ano, no âmbito do denominado Albufeira 21 Summit. O evento foi transmitido ininterruptamente em directo pelas plataformas da revista Sábado e do Jornal de Negócios. Mas aqui a ERC nada quis ver sobre promiscuidades entre a autarquia de Albufeira e os órgãos de comunicação social da Cofina.

E houve muita. Muita cobertura supostamente noticiosa, sobretudo pela estação de televisão CMTV, como se pode confirmar numa síntese dos serviços noticiosos que consta no site da Cofina Boost Solution. Aí encontra-se referência da parceria com a revista Sábado, então dirigida pelo jornalista Eduardo Dâmaso, mas sem ser feita qualquer menção a pagamento por prestação de serviços.

Aliás, Eduardo Dâmaso, que esteve muito activo na conferência de promoção de Albufeira durante os três dias, nesse vídeo de síntese da cobertura do evento pela CMTV diz mesmo que “qualquer empresa de media tem, obviamente, a obrigação de acompanhar este tipo de discussões que são decisivas para um concelho como Albufeira mas também para o país”. A Cofina tinha então, na verdade, dupla obrigação, uma vez que estava mesmo obrigada contratualmente a honrar os compromissos para receber os 70.000 euros da autarquia algarvia.

CMTV fez cobertura noticiosa de evento pago à Cofina (70.000 euros) pela autarquia de Albufeira. ERC só decretou contrato nulo por violação de normas da contratação pública. O regulador não analisou promiscuidades que envolveram jornalistas da CMTV e até o antigo e actual director da revista Sábado.

Nas sessões do evento, que ainda constam na plataforma do Youtube da Câmara Municipal de Albufeira, visualizadas pelo PÁGINA UM, surge sempre como mestre-de-cerimónias uma jornalista e pivot da CMTV, Daniela Polónia, que esteve intensamente ao serviço da conferência. Mas detectou-se também a participação activa de mais jornalistas da Cofina, e com responsabilidades editoriais. Foram os casos de Eduardo Dâmaso – que, no último dia, numa intervenção de cerca de 15 minutos, teceu variados elogios à autarquia – e de Nuno Tiago Pinto, então chefe de redacção da revista Sábado e seu actual director, que moderou um debate no dia 9.

Nenhum destes três jornalistas foram listados pela ERC como “jornalistas comerciais”, uma vez que não terão escrito nada – como Filipe Fernandes –; só deram corpo e voz na execução de contratos comerciais.

Por fim, o contrato de prestação de serviço entre a Secretaria-Geral do Ministério da Economia com a Cofina tratou-se, na verdade, de uma encomenda para “produção de conteúdos e respectiva publicação no Jornal de Negócios”, através de diversos suplementos denominados “Negócios Iniciativas – A Indústria em Tempos de Pandemia”, tendo o IAPMEI como alegado parceiro.

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Pelo menos uma parte dos textos de execução dos contratos foram assinados pelo director-adjunto do Jornal de Negócios, Celso Filipe, e pelo jornalista António Larguesa, de acordo com a deliberação da ERC.

Embora o regulador não tenha procurado pelo caderno de encargos, não disponível no Portal Base, o contrato no valor de 18.000 euros foi assinado em 1 de Julho de 2020, sendo que os suplementos foram publicados entre 30 de Abril e 21 de Maio, razão pela qual também o Tribunal de Contas terá sido também já chamado a intervir.

Contas feitas, os 15 contratos que correm forte risco de serem considerados nulos pelo Tribunal de Contas atingem um montante global de 568.041 euros.


N. D. Apesar de nesta nossa notícia já se apresentar o acesso a algumas das sete deliberações da ERC sobre contratos públicos com grupos de media  (Global Media, Trust in News, Impresa, SIC, TVI, Cofina e Público) – que, aliás, são públicos no site da ERC –, optou-se por aguardar a publicação de um terceiro artigo de investigação no PÁGINA UM, para então as listar no nosso servidor.

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