A
CARTAS DE AMOR
Em Julho e Agosto de 2023
Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Calminha, que eu sou uma mulher bonita.
Bonita e sedutora, com este meu ar experiente de quem está quase a fazer quarenta anos e não precisa de nenhum homem em casa.
Esta do “ar experiente” pode ser pouco mais do que um mito, mas olhem que é um mito muito bem alimentado. O António José já nos contou, a mim e às minhas amigas de Montréal que lá foram jantar a casa numa festa de despedida, como ele e os coleguinhas do antigo Liceu de Estremoz se sentavam ao alto da escada, do lado de dentro do portão, só mesmo para deitarem olhares sôfregos às mulheres maduras, de cintura fininha e bunda grande e tudo aquilo posto sabiamente em evidência, que iam cruzando o passeio do lado de fora. Babávamo-nos todos, recordou ele entre os nossos risos. Só de imaginar tudo o que elas saberiam. Tudo o que elas gostariam de fazer-nos. Tudo o que elas poderiam ensinar-nos. Ah, recordava o meu marido enquanto acabava de beber mais uma Dos Equis[1] botella way[2]. Que diferente que estar com elas seria de estar com as nossas namoradinhas, só podia.
E eu sei que é assim que estes rústicos estão a olhar para mim agora.
Vai ali a mulher do Cortafogos e mais o cão, e a mulher enche completamente o olho a um gajo, e ele está fora mas vê-se logo que ela não precisa de nenhum homem em casa.
Não preciso de um gajo nem para vigiar as obras, nem para evitar que se atirem a mim. Nem sequer para verificar os materiais em falta, encomendá-los pelo telefone na Casa de Ferragens, mandar vir com eles se descubro a mínima tentativa de me cobrarem dinheiro a mais, despedir um electricista alarve e contratar outro mais decente, e mais um milhar destes pequenos expedientes que, na cabeça deles, competem mas é aos homens, e nunca na vida às mulheres.
E muito menos às mulheres bonitas, de shortinho curto e criativo, e de top apertadinho e sugestivo. É Verão, que diabo. E estamos no campo, meus senhores. Trago o meu capelo escuro caído a cintilar pelas costas abaixo, ou então apanhado numa banana perfeita, com as duas madeixas douradas na franja que fazem parte da minha griffe. Quem vê passar a Maria Alice nunca vai esquecer o sorriso rasgado e os lábios volumosos, a voz de quem nunca tem medo, as sandálias romanas de plataforma alta atadas pela perna acima, o Leão da Rodésia chamado Júnior que vem sempre à trela e que parece entender todos os seus comandos[3], ou a tatuagem no tornozelo que a Guapa esmigalhou e tem agora uma prótese complicadíssima.
Desde os dezoito anos que eu sei que estes homens são todos uns alarves, portanto nada no comportamento deles deveria ser motivo de surpresa. Nessa altura, por mera coincidência, namorei um brasonado qualquer com uma quinta enorme aqui a dois passos e fui vítima dos assédios mais parvos deste mundo pela primeira vez na minha vida. Uns tempos mais tarde, aquando do meu primeiro casamento, e também pela mais inacreditável das meras coincidências, passei em Estremoz a minha noite de núpcias e bastou vir sozinha à rua fumar um cigarro para um transeunte aqui da terra achar necessário vir a correr defender-me de dois atacantes podres de bêbedos que zumbiam à minha volta como melgas, em círculos cada vez mais apertados.
Esse transeunte era o António José, ainda fomos beber umas cervejas juntos depois do incidente numa noite tórrida de um Verão como esta, e foi assim, por total coincidência, que conheci o meu segundo marido: no entretanto, o primeiro, satisfeito o seu prazer e sem querer saber do meu, dormia a sono solto e ressonava como uma locomotiva.
Mais tarde, muito mais tarde, reencontrei o António José nos corredores de Bruxelas; e as minhas imensas e intensas infidelidades dessa semana deram uma ajuda substancial na recta final do meu divórcio, que andava para ali a arrastar inutilmente os pés e a arranjar grandes agruras de parte a parte.
Quando reencontrei Estremoz já feita importantíssima estratega da engenharia electrotécnica, agora já pela mão do António José e com um passado cheio de episódios inenarráveis atrás de mim, a primeira coisa que me arrepiou toda – mas arrepiou mesmo, do fundo da minha alma à superfície da minha pele – foi que nada disto tinha mudado nada. É verdade que existe o famoso Hotel Alentejano, o da meia-pensão por 25 Euros mesmo no Largo do Rossio. A única diferença é que o antigo Alentejano foi vendido a uns estrangeiros que querem lá fazer não sei o quê e acreditam que vão ganhar nisso também uma pipa de massa, e que esses novos proprietários mudaram o hotel para outra esquina da rua, bastante mais agradável e toda ela à sombra durante o Verão, de onde percebemos que de sacar turistas percebem eles. O António José aluga ocasionalmente a dois ou três grupos de camones que vêm com um propósito específico, e os dois Hotel Alentejano, agora já ambos munidos de casas de banho privativas nos quartos e árvores da borracha ou cactos colossais a crescerem nas varandas decorativas dos quartos, enquadradas pelo toque horário dos sinos que dobram a finados – porque, como há muito poucos homens em idade de morrer, o que há de compensação em velhotes, sofra para quase todos os dias.
Ao contrário de Portalegre, ou de Évora, que se encheram de arredores infernais, de aldeamentos novos com prédios altos, e de centros comerciais cheios de curiosidades que destruíram com o que sobrava ainda da sua beleza, Estremoz tem vivido dentro de uma tal inércia que preservou todo o seu romantismo de origem recusando-se a construir infra-estruturas novas. Eu vou visitar tudo outra vez com a mãe do António José, com os braços outra vez carregados de ramos de flores, e não consigo não voltar a ficar comovida.
Esta cidade é linda, linda, linda.
A belíssima casa de família que o nosso casal herdou da família do meu marido, quase escondida pela exuberância da vegetação ao fundo de uma daquelas ruas cheias de laranjeiras de ambos os lados, também é linda. Sempre sonhámos reformar-nos aqui, mas de repente tivemos de apressar tudo para enriquecer mais depressa: ofereceram-lhe uma comissão de serviço de três anos em Bruxelas, onde trabalhará como funcionário da Tradução Simultânea ao serviço das reuniões secretas da União Europeia. É uma longa ausência, mas ambos esperamos ganhar imenso dinheiro com ela. Entretanto, ele poderá vir visitar-me no Natal, nos feriados de Junho, nas férias grandes a que tem direito – e enfim, falando em bom português, sempre que muito bem lhe apetecer.
Isto é a parte mais fácil, porque o que há há mais na vida é efemérides.
Entretanto, deixa-os olharem para mim à vontade. Quanto mais o olhar deles se parecer com um olhar de carneiro-mal-morto porque não sabem fazer outro, mais tenderão a obedecer às directivas do chefe que viveu muito tempo do estrangeiro casado com um pancadão de uma mulher.
Ele é que até parece mesmo que foi de propósito, que deixou a mulher em Estremoz e abalou para Bruxelas.
Isto entende-se?
Leia também o Episódio 2 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia
[1] DOS EQUIS: literalmente, 2X. Marca de cerveja mexicana muito apreciada na América do Norte.
[2] BOTELLA WAY: literalmente, À MANEIRA GARRAFA. Trocadilho mexicano bem-humorado, e hoje muito difundido na América do Norte, significando BEBER PELA GARRAFA.
[3] Claro que entende. Treinei-o para isso mesmo, quando ainda estávamos no Québèc. Desde que cheguei a Estremoz, com o António José já em Bruxelas no gabinete secreto da tradução simultânea, já precisei de dizer duas vezes ao Júnior, sem levantar de todo a voz, “MAU”. Ele salta-lhes às goelas com os dentes todos de fora e o ridgeback todo eriçado, uma coisa linda de ver. Esses dois senhores desapareceram logo escada abaixo. O Júnior passou o resto da tarde a moer-me o juízo para eu ir abrir-lhe o portutão. Se calhar queria ver se ainda conseguia encontrar-lhes o rasto para conseguir chaciná-los.