VISTO DE FORA

O imigrante que não se quer integrar

person holding camera lens

por Tiago Franco // Julho 10, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


De todas as discussões possíveis em torno da morte de Nahel Merzouk, o jovem francês de ascendência argelina baleado nos subúrbios de Paris, há uma que não parece oferecer grandes dúvidas: foi cometido um crime pela polícia.

As imagens deixam pouca margem para discussão e não esteve, em momento algum, em risco a integridade física do atirador, que se limitou a assassinar um miúdo a sangue-frio. 

Podia o polícia ter disparado para os pneus e imobilizado o carro, mas escolheu, naquele momento e a poucos metros de distância, balear uma pessoa desarmada que em momento algum colocou em perigo a vida do agressor.

Esta parte da conversa é importante porque não existe “mas” nesta situação. Não existem atenuantes ou justificações que suportem a acção policial. Nem mesmo os distúrbios e a revolta da população que se seguiram a este assassinato podem, a posteriori, servir para validar as balas no peito de Nahel.

É certo como o destino que, a cada abuso das forças (supostamente) de segurança, se acabe a discutir questões raciais ou de integração de imigrantes. É um tema que me revolta só por si e tende a ficar escatológico, à medida que os dias sob o crime vão avançando.

João Miguel Tavares disse, a propósito deste caso, que a integração de um imigrante depende do país de acolhimento, mas também da vontade que este tem de fazer parte dessa cultura.

Miguel Sousa Tavares, de uma forma muito mais radical, disse que os argelinos em França não se querem integrar, de todo, e que estão lá para destruir a França por dentro (Nahel era de ascendência argelina e marroquina e vários jovens de ascendência árabe juntaram-se aos protestos).

Vamos, antes de mais, meter um ponto de ordem à mesa: para o que aqui se discute, é absolutamente irrelevante saber se Nahel estava bem integrado, se cantava a marselhesa ou se vibrava mais com Mbappé ou Mahrez.

A única coisa que importa, para este caso, é que um jovem de 17 anos, desarmado, foi assassinado pela polícia sem ter feito nada que o justificasse. Ponto final.

Dito isto, como é óbvio, a cada dia de tumultos perguntava-me quando é que viria o tema da “integração”.  É sempre engraçado ouvir a opinião de pessoas que viveram toda a vida no seu país de origem a falar sobre a comunidade A ou B que não se quer integrar no sítio X ou Y.

Reparem que, para início de conversa, discute-se a integração de Nahel como se ele não tivesse nascido em França. Este é sempre o ponto de partida para os ataques raciais e xenófobos. Podemos ir na terceira ou quarta geração de nascidos no país de acolhimento e ainda nos referimos a eles como imigrantes. Talvez fosse bom, para o tema da integração, deixarmos de lhes chamar isso, vá lá, ao fim de duas gerações.

O que eu perguntaria a João Miguel Tavares e a Miguel Sousa Tavares, se pudesse, é se eles pensam que algum imigrante escolhe viver o inferno que é estar à margem da sociedade que o acolheu ou onde nasceu.

Pensarão, quiçá, que alguém prefere viver em guetos, ter mais dificuldade no acesso aos empregos e às melhores escolas? Haverá algum filho de marroquinos, senegaleses, argelinos ou tunisinos, em Franca, que prefira uma vida de segregação ao mundo de oportunidades de que outros dispõem? Perdoar-me-ão, mas, de uma maneira geral, não é assim que a coisa funciona. 

Não importa se há “ódio visceral” (como sugeriu Sousa Tavares) entre franceses e argelinos, por causa da guerra da independência, ou se os árabes seguem outras práticas religiosas. Alguém acredita que um destes miúdos dos subúrbios, onde se amontoam as diferentes comunidades, escolheria entregar pizzas e estar longe da escola se tivesse outras oportunidades e melhores perspectivas de vida?

Sentados no sofá de nossa casa, no bairro onde sempre vivemos, julgamos compreender como funciona a vida de um deslocado. Sim, Nahel era um deslocado no país de nascimento. Tal como muitos outros com ascendência africana que, por norma, não são levados em grande conta até que marquem um “golito” ou defendam qualquer coisa num campeonato do mundo de futebol.

Há muitos anos, nos meus primeiros tempos de estadia na Suécia, tive uma chefe de projecto excepcional. Trabalhava no sistema de airbag da nova geração de “Volvos”, muito antes da corrida ao lítio, e esta pessoa, sempre muito simpática, cordial e incentivadora, foi estabelecendo comigo uma relação profissional que me agradava.

Foi a primeira vez que ouvi sequer um elogio ao desempenho profissional. Nos meus anos de Autoeuropa, aqui pelo burgo, não sabia que as pessoas também podiam ser elogiadas no trabalho.

Não tinha grandes pontos de contacto naquele país e, como perceberão, era bom ir fazendo amizades no trabalho. Até porque não tinha outras por aquelas paragens. Nesta fase da minha vida fazia tudo para me integrar nos hábitos, cultura e tradições do país de acolhimento. 

Com o passar dos meses foi dizendo, essa minha colega, que gostava que eu, e a minha companheira, fôssemos jantar lá a casa com a família dela. Imaginei que se estivesse a criar uma relação para lá das paredes do escritório. Uma vez mais repito, não conhecia ninguém e os tempos passados para lá do horário de trabalho não eram de grande actividade social. Era de longe a parte mais difícil na clássica “integração”.

Lembro-me sempre de um velhote simpático, que me alugava uma casa e me perguntava de quando em vez: “E então, já fizeste amigos suecos? Deduzo que seja difícil. O meu grupo de conhecidos é o mesmo desde a creche. Não entra ninguém novo e quando sai algum, é por que morreu”. Nesta fase eu ainda me ria e pensava que era ele, aquele velhote, o pessimista de serviço.

group of people tossing wine glass

Combinámos a data do jantar e eu fui à loja do Estado (Systembolaget), único sítio onde se vende um tinto digno desse nome, comprar qualquer coisa para não aparecer com as mãos nos bolsos. Na véspera do dia – é bom de ver que os suecos combinam tudo com semanas de antecedência e espontaneidade é coisa que só se vê nos filmes – a minha anfitriã manda-me uma mensagem dizendo que ela e o marido achavam que afinal não era boa ideia jantar. E assim ficou.

Seguimos a relação profissional sem grandes conversas sobre o tema e sabendo que os elogios ou gosto na minha companhia se resumiam ao que, aparentemente, fazia ou deixava de fazer no sistema de airbag.

O produto lá chegou ao mercado, a Volvo continuou a ser um dos fabricantes mais seguros do mundo e eu segui para outro projecto, cruzando-me aqui e ali com aquela personagem e não trocando mais do que um “olá, tudo bem?” de ocasião. 

Situações destas repetiram-se – umas mais chatas, outras mais subtis – até que percebi, ao fim de cinco anos a tentar, que aquela parte da sociedade seria mais difícil para não me sentir só. Foi quando comecei a procurar outros portugueses na cidade, latinos de diferentes países da América do Sul e estrangeiros de outros países europeus, com quem fui estabelecendo relações de amizade ao longo dos anos e com quem consegui formar uma rede social nos 12 anos seguintes.

Nunca vivi num subúrbio mal frequentado de Gotemburgo, nunca andei a queimar nada ou a exigir que cobrissem a pele. Nunca roubei (ok, tirando aquela colecção do Seinfeld), nunca maltratei ninguém, nunca tive qualquer comportamento daqueles clássicos que atribuem, os “opinadores” de sofá, aos que “não se querem integrar”. E, mesmo assim, quando olho para trás, vejo chilenos, portugueses, espanhóis, colombianos, argentinos, ingleses, mexicanos. Não vejo um único sueco. Nada. Zero.

people sitting on chair in front of table with candles and candles

A minha dúvida é, se tivesse nascido num subúrbio e crescido com a cultura de “nós e eles”, teria tentado sequer durante cinco anos fazer parte da sociedade de acolhimento? Provavelmente não. O mais certo era chegar aos 13 ou 14 anos e compreender que já estava à margem da realidade dominante e, inevitavelmente, escolher o caminho onde a discriminação não existe: entre os “meus”.

Tem culpa o Nahel da guerra da independência da Argélia e dos ódios criados, quase 60 anos antes do seu nascimento? Ou da organização dos subúrbios de Paris onde os imigrantes são despejados em guetos? Ou do passado colonial de Franca? Ou do racismo constante dos europeus em relação aos africanos que exploraram durante séculos? Não, não tem culpa de nada disso.

Nahel Merzouk, tal como muitos outros imigrantes que nem o privilégio de serem chamados franceses têm, limitou-se a nascer num daqueles sítios onde a probabilidade de sucesso reduz drasticamente. Está nos livros. As contas estão feitas.

No caso dele, nem chegou a um trabalho mal pago ou uma vida precária. Foi logo baleado na rua por um assassino que nunca, jamais, deveria ter acesso a uma arma de fogo.

O facto de os advogados do polícia já terem angariado mais de um milhão de euros, prova, entre outras coisas, como a sociedade está doente e as prioridades, comprovadamente, trocadas.

Para onde caminhamos, nesta Europa com saudades dos muros?

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.