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CARTAS DE AMOR
Em Julho e Agosto de 2023
Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Calminha, que eu já sei que sou bonita há muitos anos[1].
Quando vou à cidade, sei que me ponho sexy com aquele ar de quem ficou assim por acaso, e que o faço de propósito para impressionar toda a gente[2]. E, além disso, sei que estou toda bronzeadona – primeiro porque sou morena, segundo porque adoro estrear anualmente o que se arranjar de melhor no departamento dos biquinis brasileiros, e terceiro porque gosto de apreciar o que o Verão tem de melhor, o que para mim inclui guiar sem qualquer pressa por paisagens alentejanas cruzadas por estradinhas desertas, e por fim, passadas duas horas desta espécie de trip de ácido, juntar-me às minhas amigas na curtição voraz das festas da Comporta. Às vezes também vou lá só para respirar fundo, nadar para longe, e dormir ao sol. Se esta gente daqui não faz praia, e portanto não fica com este meu halo dourado tão especial, tomem e embrulhem que a culpa não é minha de certeza[3]. E agora, engulam lá os vossos preconceitos todos de uma vez, porque nada disto quer dizer que eu seja uma mulher minimamente dada ao tédio.
Aliás, a minha tatuagem enorme no tornozelo esquerdo, com o Pégaso a levantar voo sobre o campo de batalha onde um punhado de Atenienses acaba de triunfar contra a colossal armada Persa[4] que tencionava invadir a Grécia desembarcando na praia de Maratona[5], é uma boa prova disso. Está lá para disfarçar os ferros todos da prótese.
E, se precisei de uma prótese no tornozelo, foi porque sou uma mulher de acção.
Tinha então dezassete anos. Ninguém entendia como, mas só eu é que conseguia fazer a égua do meu primeiro namorado aqui do sítio, o tal brazonado da Orada que iniciou a sequência de coincidências que me trouxe até ao casarão onde estou agora[6], saltar tão alto, tão largo, e com tanta elegância. Ainda hoje suspeito que o gajo apareceu de repente a derrapar e a buzinar daquela forma estúpida, estávamos nós as duas já a levantar voo por cima do obstáculo, porque tinha inveja do meu deslumbrante potencial equestre, e da forma como toda a população masculina se deslumbrava a contemplá-lo. A Guapa assustou-se, borregou, fez-me cair para o outro lado, e depois caiu ela desamparada para cima de mim, com a pata direita a acertar-me mesmo em cima do tornozelo esquerdo. O que é que eu posso dizer? Claro que o gesso não é a melhor forma de passar o Verão, mas ao menos é uma grande forma de meter conversa. E foi um Verão cheio de autógrafos. O senhor da Orada que se roesse todo de ciumeira alentejana. Bem vistas as coisas, a culpa era dele.
Agora já não tenho dezassete anos há muito tempo.
Ah, mas não há como o tempo para requintar os nossos contornos.
Hoje, quase à beira dos quarenta, sinto-me linda, livre, e feliz da vida, porque o meu segundo marido foi enriquecer-nos para Bruxelas, e eu estou a fazer renascer das cinzas o antigo casarão da família, uma verdadeira mansão que é também um deleite arquitectónico de art déco, que foi desnecessariamente maltratado pelo abandono a partir do dia em que as irmãs mais velhas do António José, aproveitando-se da nossa longa estadia no Québèc, empandeiraram a mãe para um lar e puseram um cadeado grossíssimo no portão.
Quando cá cheguei, já trazia na pasta um ano inteiro de telemeetings e bastante investigação na área para podermos – eu e um dos primos mais novos do António José – formarmos uma SARL, aproveitarmos a proximidade da Ala Leste da casa em relação às escolas e Centros de Saúde, e abrirmos juntos aquilo a que o povo chama, para encurtar razões, uma “loja de computadores”. Só que a nossa loja teria também um cafezinho muito simpático com umas queijadinhas óptimas e umas empadinhas ainda melhores[7], teria assistência pessoal sempre que solicitada e disponível para resolução de problemas no domicílio, e até teria explicações, se alguém precisasse delas. O meu marido havia de ver. Quando cá chegasse na sua primeira visita, também eu e o seu priminho teríamos ganho juntos uma pequena fortuna.
Acontece, no entanto, que mesmo para mulheres como Maria Alice existem sempre imprevistos.
Também, olha que treta. Se nunca me aparecessem uns bons imprevistos pela frente, então eu estaria mumificada – como um faraó do Vale dos Reis, no fundo quase inacessível de uma cripta cheia de jóias[8].
No caso vertente, o imprevisto que leva a esposa de António José a adiar o projecto da “loja de computadores” toda prafrentex é precisar primeiro de reconstruir o casarão, meio arruinado por uma década inteira de abandono. Sem nunca se atrapalhar, a supermulher que faz tudo sozinha vai falar com a Josefa, que conhece desde que conheceu o marido porque é a sempre fiel e muito sábia empregada da família. Numa primeira reunião de estratégia, pede-lhe que junte um grupo de trolhas para um lado, e um grupo de mulheraças para o outro. As missões destes dois grupos, que deitam logo mãos à obra lado a lado com a patroa e com a empregada da família, é reavivarem não só as paredes internas, os vidros, os espelhos, as portas, e os circuitos eléctricos[9], mas também as paredes externas, os canteiros do jardim, o pequeno laranjal que nunca mais foi podado, e todos os sectores cuidadosamente delimitados da horta.
No meio desta horta, com uma longa linha de alfazemas que crescem até à altura do muro que dá para a rua, há um chuveiro alto, de onde jorra em abundância a água fresquíssima do poço adjacente. Este chuveiro foi aqui instalado, mesmo no meio da plantação de melancias, pelo pai de António José, para que a pessoa possa largar a enxada e refrescar-se sempre que quiser em dias de calor imenso, como os deste Verão que assinala a instalação de Maria Alice em Estremoz.
É isso mesmo que Maria Alice começa rapidamente a ter por hábito fazer, apenas em topless e sem tirar as botas de borracha. Inicialmente estes banhos de deusa guerreira têm lugar sobretudo ao fim do dia, quando o restauro já avançou mais alguns passos e até já há flores que começam a despontar aqui e além[10]. No entanto, à medida que as obras avançam, a confiança se estreita, o calor aperta, e tudo convida a mais uns minutos de prazer, o topless com botas de borracha começa a repetir-se a diferentes horas da tarde.
Quando as melancias já estão a ficar maduras e deliciosas, Maria Alice aproveita estas pausas para arrancar mais uma da terra, lavar bem a sua casca na água do chuveiro, cortar umas grandes talhadas com a ponta e mola que trouxe do Mercado e agora anda sempre consigo metida na presilha dos calções, distribuir aquela delícia pelo pessoal que ande ali a trabalhar nesse dia, e ir ela própria comer a sua parte com a água fria a escorrer-lhe em cima.
O muro que separa a horta do passeio da rua não é assim tão alto como isso, e as alfazemas que o acompanham por dentro foram podadas por forma a acompanhar os seus recortes em círculo.
A notícia só podia correr depressa.
Estremoz em peso é sacudido por um frisson como nunca houve outro antes.
O Júnior já nunca sai de junto da dona. Sempre foi um animal calmo, simpático, e silencioso, como é característico dos Leões da Rodésia[11]. Mas agora alguma coisa mudou de figura. O cão começou a mostrar os dentes.
Leia também o Episódio 1 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia
[1] Não é vaidade. É honestidade. Maria Alice ouve piropos desde os catorze anos, querem que pense o quê de si própria?
[2] Incluindo, até, as miúdas que vêm a sair da escola. É verdade, aos oito anos já estão a pensar “quando for grande quero ser como aquela gaja,” o que, evidentemente, só lhes faz bem.
[3] Maria Alice não é uma mulher presunçosa. É, apenas, uma mulher realista. Mesmo trancada dentro de si própria, consegue perfeitamente ver-se de fora. E ninguém pode acusá-la de ver claramente o efeito que exerce sobre os outros, sobretudo enquanto o marido está longe.
[4] É nestas pequenas referências que se repara que Maria Alice é uma mulher culta. Até conhece o conceito platónico de eternidade, em que o Pégaso, com as suas enormes asas brancas, puxa para cima das nuvens, até à vizinhança do Olimpo, um carro dourado com os heróis caídos em batalha.
[5] Até aqui é tudo verdade. Só a parte do soldado que correu os 42 quilómetros que separam Maratona de Atenas para anunciar a boa nova, gritou vitória bem alto na praça central, e depois morreu, tal como contada por Plutarco no século III é que é um mito. Pensando bem: alguém morre só de correr 42 quilómetros?
[6] Ver Primeiro Episódio de CARTAS DE AMOR, “ESTREMOZ SUSPIRA”. Houve, de facto, uma longa cadeia de coincidências que trouxe Maria Alice repetidamente de volta a Estremoz a partir da adolescência. E, como toda a gente sabe, não há coincidências. Esta mulher bonita anda a ser sistematicamente trazida até Estremoz por uma qualquer razão que ainda nos escapa.
[7] Há duas delícias gastronómicas em Estremoz que são sempre melhores do que em qualquer outro ponto do País: as queijadas de requeijão e as empadas de frango.
[8] Uma vez mais, Maria Alice deixa entrever a sua cultura. Ou talvez não. No caso vertente, talvez esteja só a dizer-nos que viu todos os filmes da série INDIANA JONES.
[9] Competências dos trolhas, claro – e não é que Maria Alice não pudesse dirigi-los, mas como adora actividades de outdoors e o priminho do marido adora tudo o que seja esburacar paredes e fazer passar fios de um lado para o outro, ela escolhe supervisionar o jardim e a horta, que são a competência óbvia das mulheres.
[10] Ela não é propriamente exibicionista; apenas criou certos hábitos no Québèq e gosta deles.
[11] Quando não estão a caçar leões, evidentemente. O que agora, alias, já nunca acontece. Antes de mais nada, deixou de haver Rodésia. E, sobretudo, é estritamente proibido caçar leões.