A Entidade Reguladora para a Comunicação Social, um órgão criado pela Constituição da República Portuguesa para garantir a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, deseja ter poderes de Censura em pleno século XXI. Pelo menos, essa é a intenção manifestada pelos membros do Conselho Regulador que propõem que a nova lei da Imprensa permita à ERC restringir a circulação de publicações electrónicas da autoria de jornalistas se estas forem consideradas lesivas para a saúde pública, segurança pública ou consumidores, mesmo sem se saber quem define tal. Esse bloqueio far-se-á sem intervenção judicial, a partir dos servidores que alojam os sites noticiosos, e num prazo máximo de 48 horas. Além disso, as publicações censuradas receberão um “rótulo” para alertar os leitores. Esta proposta surge enquanto se debate ainda na união Europeia o polémico Media Freedom Act, que mostra ser afinal um diploma legal que visa condicionar a liberdade de imprensa, actividade que passará a ser supervisionada por instituições cada vez mais afastadas das Constituições dos países.
Uma proposta de alteração da Lei da Imprensa, feita pela actual liderança da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), prevê a aplicação de censura de índole administrativa e política sobre conteúdos da imprensa digital que alegadamente “lesem ou ameacem” a saúde pública, a segurança pública e os consumidores.
Através de uma deliberação aprovada no passado dia 12, os actuais três membros do Conselho Regulador – que aguardam a sua substituição por uma nova equipa ainda não totalmente constituída – fazem diversas propostas no sentido de clarificar os critérios que presidem à classificação de publicações jornalísticas e não-jornalísticas, um assunto fundamental sobretudo na era digital.
Mas se essa clarificação se mostrava importante – até para evitar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista extravasasse as suas competências, questionando (só) alguns órgãos de comunicação social sobre as suas actividades durante o processo de acreditação de jornalistas –, a proposta da ERC vai muito mais longe. E acaba por instituir um modelo draconiano de censura administrativa e política em publicações jornalísticas digitais sobre determinadas matérias sem qualquer intervenção prévia do poder judicial. Lembra a Censura do Estado Novo.
De acordo com a deliberação a que o PÁGINA UM teve acesso, o número 7 do artigo 5º-B da proposta de projecto que visa a alteração da Lei de Imprensa – assinada por Francisco Azevedo e Silva, Fátima Resende e João Pedro Figueiredo –, “a ERC pode restringir a circulação de publicações eletrónicas sob jurisdição do Estado português que lesem ou ameacem gravemente qualquer dos valores previstos” na Directiva comunitária sobre comércio electrónico, transposta para a legislação portuguesa em 2004. Nesse diploma, que se aplica apenas ao comércio electrónico prestado à distância – e nada tem a ver com imprensa –, os valores a salvaguardar são a saúde pública, a segurança pública (nomeadamente na vertente da segurança e defesa nacionais) e os consumidores, incluindo os investidores.
A proposta da ERC vai no sentido de lhe ser concedidos poderes para impor aos prestadores intermediários de serviços, isto é, às empresas que alojem periódicos da imprensa digital, “o bloqueio do acesso às publicações em causa, através de procedimento que assegure que a restrição se limita ao que é necessário e proporcionado”. Os prestadores intermediários têm um “prazo de 48 horas” a partir da notificação pela ERC para simplesmente obedecer. E mais: “os utilizadores são informados do motivo das restrições”, podendo essa determinação apenas ser suspensa através de “recurso judicial”.
Em termos práticos, a avançar esta proposta da ERC, o regulador poderá mandar “apagar”, sem sequer aviso prévio, qualquer conteúdo considerado lesivo, passando um rótulo imediato de “desinformação” ao órgão de comunicação social digital, mesmo se o artigo em causa for escrito por um jornalista. Além de violar gravosamente a Constituição da República Portuguesa quanto ao direito à liberdade de imprensa, que “não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”, esta eventual nova competência do poder da ERC evidencia questões preocupantes.
Por um lado, em princípio, concederá ao regulador – ou mesmo ao Governo ou à Assembleia da República, que indica os membros da ERC – o direito de definir uma cartilha (prévia ou arbitrária) sobre os limites e conteúdos em matéria de saúde pública, de segurança e de consumo, condicionando os órgãos de comunicação social e os jornalistas. Ou seja, uma censura prévia, se os jornais digitais incorporarem essas “directrizes”, ou uma censura posterior, se não as acatarem.
Por outro lado, esta proposta discriminaria os órgãos de comunicação social em função do tipo de suporte comunicacional, uma vez que a possibilidade de censura aplicar-se-ia apenas a publicações electrónicas. Contudo, no limite, mesmo jornais com duplo suporte – como o Expresso ou o Público – poderão ver conteúdos “suspensos” pela ERC na versão digital, embora sem abranger esses mesmos conteúdos se publicados em papel.
João Palmeiro, presidente da Associação Portuguesa da Impresa (API) – que foi um dos interlocutores da ERC para a elaboração deste projecto de alteração da Lei da Imprensa – não acredita que esta ideia passe, para já, na Assembleia da República, porque obrigaria a alterações na Constituição e nos direitos fundamentais da liberdade da imprensa. Contudo, enquadra esta proposta nas negociações nos corredores burocráticos da União Europeia no âmbito do Media Freedom Act.
Este polémico documento, como salientava recentemente o Le Monde, foi apresentado como “uma promessa aos jornalistas” para fortalecer a independência editorial, a monitorização da concentração dos media e garantir “fortes salvaguardas contra o uso de spyware contra os media, jornalistas e suas famílias”.
Porém, nas negociações, os últimos sinais têm mostrado que, afinal, o diploma visa um controlo dos jornalistas, apresentando “sérios riscos aos princípios democráticos fundamentais e aos direitos fundamentais da União Europeia, principalmente a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e a protecção dos jornalistas”, conforme sustenta uma carta aberta divulgada em finais de Junho por diversas individualidades e organizações, entre as quais os Repórteres sem Fronteiras.
Para João Palmeiro, o objectivo inicial foi limitar que fossem as empresas tecnológicas – como o Google, o YouTube e o Facebook, entre outras – a condicionar a divulgação de diversos conteúdos, mas as negociações desenvolveram-se no sentido da criação de uma entidade reguladora supranacional, ao nível da União Europeia, que depois concederá essa atribuição, em cada país, a um regulador nacional.
“No caso português, será a ERC, mas isso implicaria a necessidade de uma alteração constitucional, uma vez que a ERC tem funções atribuídas pela Constituição Portuguesa e responde apenas perante a Assembleia da República”, refere o presidente da API, que defende uma melhor clarificação sobre o alcance e a intervenção do Media Freedom Act na actividade jornalística e na imprensa, em geral.