ERC deixa incólume, "até ao momento", jornalismo a soldo

Apagão: Cofina limpa registos comprometedores com entrevistas e reportagens na CMTV pagas por autarquias

por Pedro Almeida Vieira // Julho 20, 2023


Categoria: Imprensa

minuto/s restantes

Absoluto e intencional. Na última semana foram removidos todos os trechos dos telejornais da CMTV que, no canal do Youtube da Cofina Boost Solutions, mostravam as polémicas emissões especiais dedicadas a 10 municípios que decidiram pagar entre 20 mil e 25 mil euros para “aparecerem” na televisão. Esta foi a forma expedita da empresa de media tentar “limpar” provas da comercialização de reportagem e entrevistas realizadas por jornalistas da CMTV como contrapartida pela “prestação de serviços” em contratos públicos. A Cofina terá recebido 200 mil euros de 10 autarquias, mas transgrediu normas da Lei da Televisão, da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista. Mas, para haver penalidades, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social terá de intervir, algo que, diz o regulador ao PÁGINA UM, não aconteceu, “até ao momento”.


A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) não viu ainda motivos para tomar qualquer medidas ou diligência para apurar as gravíssimas violações à Lei da Televisão, à Lei da Imprensa e ao Estatuto do Jornalista na execução dos contratos de prestação de serviços entre 10 municípios e a Cofina que culminou na emissão de programas noticiosos na CMTV onde as autarquias acabaram a definir os alinhamentos de reportagens e de entrevistas. Tudo com a participação de jornalistas.

Mas, entretanto, um longo best of dos noticiários pagos pelos municípios, incluindo as entrevistas a autarcas conduzidas pelos jornalistas Francisco Penim (CP 7364) e Sofia Piçarra (CP 6024), que serviram de mestres-de-cerimónia, e que estiveram até à passada semana no canal do YouTube da Cofina Boost Solutions, o departamento comercial desta empresa de media, foi ostensivamente removido. No total, a Cofina retirou do seu canal daquela rede social pelo menos 39 vídeos com trechos de diversos blocos informativos, nomeadamente do Jornal Portugal, Grande Jornal, Directo Notícias, Jornal das 6, Jornal das 7 e Grande Jornal, todos com conteúdos pagos produzidos por jornalistas acreditados da CMTV.

Pedro Mourinho, director de Novos Formatos da CMTV, no passado dia 8 de Julho, passando a emissão para Albufeira, onde Francisco Penim fez de mestre-de-cerimónias durante a prestação de serviços. Este e muitos outros vídeos que estavam na semana passada no canal de Youtube da Cofina Boost Solutions foram removidos.

Na semana passada, o PÁGINA UM fizera, aliás, um levantamento exaustivo desses noticiários, elencando dia e hora em que nove jornalistas da CMTV exerceram actividade que consubstancia execução de contratos comerciais, incluindo reportagem abonatórias sobre os municípios adjudicantes e entrevistas a autarcas e técnicos municipais. Todos foram removidos e os links indicam agora que “o vídeo já não está disponível”.

Além de Francisco Penim e Sofia Piçarra, fizeram apontamentos de reportagem sobre os municípios pagantes os jornalistas Ana Inês Baptista (CP 8332), Aureliana Gomes (CP 5357), Mário Freire (CP 3723), José Lameiras (CP 7664), Isabel Jordão (CP 616) e a jornalista estagiária Débora Couceiro (TPE 470). Também surge, como jornalista, Ana Isabel Fonseca, embora não haja registo de possuir actualmente carteira profissional válida. Por norma, estas emissões eram coordenadas em estúdio por outros jornalistas, como foi o caso de Pedro Mourinho, curiosamente com a função de Director Novos Formatos da CMTV.

Apesar destas evidências, a ERC apenas diz, passada uma semana dos factos revelados pelo PÁGINA UM, “que, até ao momento, não foi aberto procedimento relativamente aos contratos entre a Cofina e as autarquias mencionados”. Não foi adiantado o motivo nem se o caso cairá no esquecimento, tanto mais que a Cofina já apagou essas evidências públicas do canal do Youtube. Em todo o caso, como entidade fiscalizadora, a ERC pode exigir o envio dos noticiários que serviram para cumprir contratos comerciais com autarquias. O trabalho do PÁGINA UM facilitará o trabalho do regulador, se decidir não deixar incólume esta situação, uma vez que se registaram os dias e horas das reportagens e entrevistas feitas no âmbito da prestação de serviços por jornalistas aos 10 municípios.

Pesquisando hoje no canal da Cofina Boost Solutions confirma-se o “apagão” dos noticiários da emissão de 8 de Julho, que contou com a participação activa de Sofia Piçarra, Francisco Penim e Débora Couceiro. AS ERC pode, contudo, pedir as emissões à CMTV se desejar mesmo ter o papel determinado pela Constituição na regulação dos media.

Recorde-se que a propósito, ou com a justificação de comemorar os 10 anos de emissão da CMTV, a direcção de marketing da Cofina sondou autarquias pelo país para garantir apoio financeiro para emissões a partir da sede do concelho ou de outro local. A estratégia não é inédita em programas de entretenimento, mas já é proibida em programas de informação, mesmo se patrocinados. Quanto aos jornalistas, está vedado o desempenho de funções de apresentação de mensagens publicitárias, incluindo promoção, bem como funções de marketing, incluindo execução de estratégias comerciais.

Nos últimos três meses, com um modelo similar, a CMTV realizou emissões especiais de entretenimento e de programas de informação – tendo invariavelmente Francisco Penim e Sofia Piçarra como mestres-de-cerimónia – nos municípios de Portimão (24 de Abril), Leiria (1 de Maio), Braga (17 de Maio), Beja (25 de Maio), Vila do Conde (mais propriamente em Caxinas, em 31 de Maio), Ourém (20 de Junho), Évora (25 de Junho), Coimbra (4 de Julho), Albufeira (8 de Julho) e Marco de Canavezes (13 de Julho) . Em todos terão sido assinados contratos de prestação de serviços com um preço de 20.000 euros, cada, com excepção de Coimbra e de Leiria que pagaram 25.000 euros. Saliente-se, porém, que alguns não foram ainda inseridos no Portal Base. Hoje, o PÁGINA tentou fazer uma actualização, mas o servidor do Portal Base tem estado inoperacional para pesquisas.

Em todo o caso, entre os contratos já publicados no Portal Base (Marco de Canavezes, Ourém, Coimbra, Beja e Leiria), consultados e gravados pelo PÁGINA UM, ressaltam sobretudos as cláusulas detalhadas nos casos em que também estão publicados os cadernos de encargos. E é aí que deixa de haver margem para dúvidas sobre a promiscuidade e mesmo ilegalidade dos contatos: constam expressamente cláusulas que mostram que informação transmitida pelos noticiários da CMTV foram condicionados, e aceites pela direcção editorial, por uma entidade externa ao canal de televisão a troco de dinheiro. E mesmo que não houvesse dinheiro envolvido. Situações que violam, de forma marcante, a Lei da Imprensa, colocando também a questão se tal se verifica com entidades privadas cujos contratos não são públicos.

Os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os mestre-de-cerimónias das 10 emissões, elogiando os municípios e entrevistando autarcas e outras pessoas indicadas pelas Câmaras Municipais, que pagaram os programas de informação, onde ficaram explicitadas as horas dos directos.

Por exemplo, no caso da emissão da passada semana em Marco de Canavezes, de acordo com o caderno de encargos, a CMTV comprometeu-se a fazer um alinhamento do programa de entretenimento Manhã CM, entre as 9 horas e as 11 horas, para encaixar “conteúdos dedicados ao território” daquele município. Neste programa foram já emitidas três reportagens, incluindo entrevistas, assinadas pelas jornalistas Ana Inês Baptista e Aureliana Gomes, bem como uma conversa com a presidente da edilidade, Cristina Vieira, que pagou todo o evento.

Já nos espaços informativos, iniciados às 11 horas, com o Jornal de Portugal, a CMTV comprometeu-se a fazer seis directos, com “pivots sénior” – Francisco Penim, que chegou a ser director de programas da SIC e também da própria CMTV – também no Grande Jornal da Tarde, na Rua Segura, no Directo CM, no Jornal às 7 e no Grande Jornal da Noite. No acordo comercial ficou estabelecido horário em que os jornalistas têm de entrar.

Nessa emissão, como em outras, conforme o PÁGINA UM já confirmou, o tom dos jornalistas é sempre encomiástico. Por exemplo, na sua entrada no noticiário das 11h30, Francisco Penim falou da “vista espectacular” a partir do Baloiço de Soalhães, na serra da Aboboreira, antes de entrevistar Gorete Babo, uma técnica superior da autarquia. De acordo com o caderno de encargos, a CMTV tinha de fazer um directo entre as 11 e as 13 horas. Depois disso, houve mais directos e entrevistas durante a tarde, incluindo a dois vereadores locais, Nuno Pinto e Pedro Pinto.

Cerca de duas dezenas de autarcas foram entrevistados em programas de informação das CMTV. Todos tiveram de pagar para “aparecer”. A entrevista com o presidente da autarquia de Albufeira, José Carlos Rolo, que pagou 20 mil euros para também aparecer no noticiário, foi agora apagado do canal de YouTube da Cofina Boost Solutions.

Pela leitura de outros contratos com cadernos de encargos fica-se também a saber que foram as autarquias que indicaram as pessoas a serem ouvidas pelos programas da CMTV, ou seja, não foram nem o director de programas nem o director de informação. Isso mesmo se observa no caderno de encargos do contrato com a Câmara Municipal de Leiria, onde se refere que “caberá ao Município de Leiria fazer os convites a individualidades/ empresas a fazerem-se representar no programa e proporem à produção.”

Além disto, as autarquias pagaram e também suportaram a logística das emissões e o sustento (comida e estadia) de 17 profissionais da CMTV, incluindo jornalistas e técnicos, durante dois dias. Em alguns casos, foram concedidas contrapartidas publicitárias, talvez com o intuito de justificar, eventualmente junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que a cobertura noticiosa não foi paga.  

Em suma, as 10 autarquias substituíram-se à própria CMTV como produtores, a troco de dinheiro.

Não se diga, porém, que a CMTV tenha sido “forçada” a este tipo de contrato, uma vez que, pela leitura do caderno de encargos com o município de Ourém, terá sido a própria Cofina a seduzir as autarquias acenando-lhes com as benesses. Num e-mail enviado em 31 de Março por João Santana, director comercial da Cofina, ao presidente da autarquia de Ourém, propõe-se, “no seguimento da nossa conversa telefónica”, as condições para se conseguir “uma solução que assegure a prossecução da relação de parceria que entendemos existir entre a CM de Ourém e a Cofina”.

Mensagem do director da Cofina enviada à autarquia de Ourém combinando as condições contratuais, onde ficou claro que o município interferiria no alinhamento da informação e mesmo das pessoas a serem entrevistadas.

João Santana, que envia a comunicação com conhecimento de dois operacionais da Cofina Media, diz que a CMTV pretende, a pretexto dos seus 10 anos de existência, “dar visibilidade a 10 concelhos, divulgando localmente o que de melhor se faz nos pilares SOCIAL, AMBIENTAL, ECONOMIA, EDUCAÇÃO, CULTURA, SAÚDE” [sic], acrescentando que “esta é a forma de estar próximo de quem faz e de quem merece o protagonismo”.

Sobretudo, acrescente-se, também por quem esteja disponível, com dinheiros públicos, a “comparticipar a execução deste dia especial na CMTV”, para o qual o director comercial da Cofina solicita “um apoio de 20.000€, investimento esse que nos permitirá suportar uma parte dos custos das emissões ao longo do dia a partir da cidade de Ourém.”

O despudor com que os negócios da Cofina Media foram feitos, e depois executados por jornalistas da CMTV ao longo das emissões já transmitidas – com discursos constantemente elogiosos que tornam anúncios publicitários como algo pouco ousado –, é tamanho, que a própria Cofina colocou no seu canal do YouTube uma exaustiva sequência com os “best of” até dos programas de informação no âmbito dos contratos de prestação de serviços

Assim, a título de exemplos, no dia 25 de Maio, dedicado a Beja, o contato permitiu a emissão de três reportagens do jornalista Francisco Penim – duas das quais envolveram entrevistas com responsáveis da autarquia, incluindo Marisa Saturnino, vereadora da Câmara Municipal de Beja – e uma da jornalista Sofia Piçarra.

O contrato com o município de Vila do Conde, em 31 de Maio, envolveu sete directos em programas de informação, incluindo reportagens e entrevistas, nomeadamente com o presidente da autarquia, Victor Costa, a vice-presidente, Sara Margarida Lobão, dois vereadores e até a secretária de Estado das Pescas, Teresa Coelho. A cobertura “jornalística” deste “especial” esteve a cargo dos jornalistas Francisco Penim, Sofia Piçarra e Fátima Vilaça.

No dia 20 de Junho, na emissão especial paga pela autarquia de Ourém, houve direito a 10 peças “informativas”, incluindo entrevistas ao presidente da edilidade, Luís Albuquerque, à vice-presidente, Isabel Costa, a dois vereadores e uma técnica municipal. Além dos dois habituais jornalistas nestas emissões “especiais”, cobriu o evento a jornalista Isabel Jordão.

Cláusulas técnicas do caderno de encargos do contratos entre a Cofina e o município de Leiria, onde consta que caberia à autarquia fazer os convites a quem seria entrevistado.

Em Évora, numa emissão exclusiva no dia 25 de Junho, foi mais do mesmo. Foram entrevistados em diferentes “peças”, o presidente da autarquia, Carlos Pinto de Sá, o vice-presidente, Alexandre Varela, um historiador do município, Gustavo Val-Flores, e ainda Elsa Oliveira, técnica municipal da Divisão de Educação e Intervenção Social. Aqui, o jornalista José Lameiras juntou-se à dupla Piçarra-Penim, autênticos mestre-de-cerimónias e relações públicas, na cobertura da emissão em Évora.

Quanto a Coimbra, “estrela” da emissão especial de 4 de Julho, quase não houve quem não falasse na vereação. Nos oito directos, deu para entrevistar José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal, Francisco Veiga, vice-presidente, mais quatro vereadores e dois representantes de duas divisões da Câmara. O jornalista Mário Freire completou o trio de jornalistas que executou o contrato da emissão especial paga (25.000 euros) pela Câmara Municipal de Coimbra.

No dia 8 de Julho, na emissão a partir de Albufeira, contam-se no canal do Youtube da Cofina oito directos e reportagens que incluíram uma entrevista ao presidente da autarquia, José Carlos Rôlo, emitida no Grande Jornal, pouco depois das 21 horas. Débora Couceiro foi a jornalista que se juntou à dupla habitual desta emissão para executar o contrato com o município de Albufeira.

Depois da notícia da passada semana, o PÁGINA UM contactou, além da ERC, o director da CMTV, Carlos Rodrigues, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, presidida por Licínia Girão, e também o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, liderado por João Paulo Meneses. Somente esta última entidade reagiu, mas falando de “cebolas”, quando o PÁGINA UM tinha perguntado por “alhos”.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.