VISTO DE FORA

Ronaldo e a bol(h)a

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por Tiago Franco // Julho 20, 2023


Categoria: Opinião

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Sempre que se abre a boca para falar de Ronaldo é preciso compreender que vamos ofender alguém. Há o grupo de indefectíveis, onde se inclui o meu filho, que me obriga a ver jogos do campeonato saudita; e os outros, que vão lendo a realidade como ela é.

O ponto de partida para mim, quando penso em Cristiano Ronaldo, é no extraordinário atleta, melhor futebolista português de sempre e, provavelmente, a pessoa que mais deu a conhecer o nosso país pelo Globo. Reconheço, sem grandes problemas, que pessoas que não faziam a mínima ideia onde ficava Portugal, foram ao mapa ver por causa de Ronaldo. Portanto, até ao nível dos conhecimentos de Geografia, até de cada adepto escondido na Micronésia, o nosso madeirense colaborou.

Ainda assim, depois de década e meia de glória, começa a ser penoso ver esta transformação de ídolo planetário para o “Gajo de Alfama” (dos tempos em que o Ricardo Araújo Pereira tinha piada). As recentes declarações de Ronaldo, puxando para si o mérito de abrir o caminho das Arábias para mais jogadores de renome, qual Vasco da Gama dos petrodólares, soam um pouco mal.

Fizeram-me lembrar aqueles tempos de terror em que Jorge Jesus, envergando o Manto Sagrado, nos envergonhava a cada conferência de imprensa com as suas bazófias a perder de vista. Certo dia, numa palestra na Faculdade de Motricidade Humana, Jesus, o Poeta da Reboleira, disse que queimara muita pestana para inventar uma Ciência. Assim mesmo, inventar uma Ciência.

Eu aprecio homens da Ciência, convenhamos. Até porque sem as suas descobertas dificilmente eu teria as bases que trazem o pão cá para casa. Mas, como diria o nosso Costa, vamlá a ver, decidir se os laterais fazem o corredor e os extremos vão por dentro ou, em alternativa, jogamos com um meio-campo a três e dois extremos puros, não é a mesma coisa que descobrir a cura para o cancro. Ou sequer, vá lá, desenvolver uma Via Verde que poupa umas horas de fila na segunda ponte do Feijó. Aliás, neste caso, foram portugueses que inventaram aquilo. Homens da verdadeira Ciência.

Bem sei que países pouco desenvolvidos fazem do futebol um desígnio nacional. São programas de debate diários em todos os canais informativos sobre o que aconteceu, o que está a acontecer e o que vai acontecer à vida dos artistas da bola. Quando há jogo debate-se o penalti e quando não há fala-se da transferência e dos rumores. Diariamente. São 12 meses por ano com paragem no Natal para podemos ver as fotos dos jogadores a comer bacalhau.

Também eu sofro com a bola, especialmente quando ela desliza na Catedral, e não me quero por isso excluir da parolice nacional em torno da caixa de Pandora de Ronaldo. Dir-me-ão que a um milionário todo o disparate é permitido. Se Elon Musk, tido por muitos como um génio, pode dizer asneiras em barda, por que não poderá Ronaldo, um milionário com baixa escolaridade, fazer o mesmo? De facto, pode, mas não deixa de ser deprimente.

Ronaldo deixou de jogar futebol, um jogo de equipa, há uns bons anos, provavelmente antes sequer de chegar à Juventus, e começou então a praticar uma modalidade individual chamada “quebrar recordes”.

Pelo caminho, ia reclamando com quem não o ajudava a chegar lá e culpando os restantes 10 em cada insucesso. Continua no seu direito, mas, visto daqui, foi quando comecei a olhar mais para o lado. Saber envelhecer no mundo das estrelas planetárias não deve ser fácil, acredito que não; ainda assim, sempre imaginei Cristiano Ronaldo a sair de cena pela porta grande e sem se arrastar nos relvados, como faz agora.

Cristiano Ronaldo decidiu desafiar o tempo e continuar pela única porta que se abriu: a da ditadura saudita, e da que teimosamente, na seleção nacional, não se fechou.

Note-se que não faço parte do coro de puritanos que acha que um futebolista não deve validar uma ditadura. Era o que mais faltava. Anda o famoso “Ocidente” a fazer da Arábia Saudita um parceiro privilegiado há décadas, a fechar os olhos aos crimes perpetrados no seu território em nome dos barris de petróleo e esperava-se que um atleta, a quem se oferece uma fortuna incalculável, fosse recusar uma mudança para o deserto? Sabe lá o Ronaldo a História da Arábia Saudita…

O Macron, presidente francês, sabe certamente e, mesmo assim, disse alto e bom som, num encontro de líderes a propósito das sanções à Rússia, que tinham que pedir aos sauditas que aumentassem a produção. Portanto, deixemo-nos de moralismos bacocos.

Nós validamos, há muito, todas as ditaduras que são boas para o negócio. E tal como as elites políticas, Ronaldo foi fazer pela vida e entrar num circo a troco de dinheiro. Repito: está no seu direito. Mas tentar convencer toda a gente, um ano depois, que o campeonato saudita é muito bom, ou que abriu o caminho para outras estrelas, é apenas triste. Aquilo que abriu caminho foram as fortunas que os xeques sauditas, que exploram e lucram com os recursos do país, resolveram distribuir um pouco por todo o lado.

Jogadores em fim de carreira ou ainda com muitos anos nas pernas foram aliciados, numa tentativa de trazer o país para a alta roda futebolística. Um pouco como o que chineses tentaram fazer há cerca de 10 anos, com a construção de uma Superliga, que levava alguns dos bons talentos da Europa, mas modelo ao qual se colocou, entretanto, um travão nos gastos por ser insustentável.   

Depois do Mundial do Qatar, outra ditadura amiga – os sauditas – tentam, através do futebol, dar uma nova imagem do país. Ronaldo alinhou, e agora são vários os nomes famosos que se juntarão a ilustres desconhecidos.

Entre eles, Ruben Neves, internacional português, foi claro e objectivo nas suas declarações: saiu da Premier League, onde era um ídolo no Wolverhampton, porque o dinheiro ganho na Arábia Saudita permitiria dar à família uma vida diferente e, provavelmente, garantir o conforto da geração seguinte. Tudo bem, tudo certo. Nada de conversas sobre o “projecto” ou a “Liga Saudita vai ultrapassar a Turquia e a Holanda”, como nos informou Ronaldo, o homem que abre caminhos.

Para finalizar a palestra, o nosso descobridor, ainda disse que a Liga Italiana também estava morta quando ele foi para lá e que não voltaria para a Europa onde o futebol se tornara muito fraco. Nem Zlatan Ibrahimovic, dono e senhor da maior arrogância que se conhece neste mercado, produz disparates destes. A Liga “morta” colocou três clubes nas meias-finais da Liga dos Campeões no ano em que Ronaldo saiu de lá. E o futebol fraco europeu brindou, pelas camisolas do Celta de Vigo, um empate de 5-0 ao Al-Nassr, um pouco depois destas declarações.

Não sei se o estimado leitor já viu algum jogo do campeonato saudita, espero que não, mas é mais ou menos como aquelas futeboladas que fazemos aos domingos com o pessoal amigo onde aparece sempre um, que em novo, chegou a jogar nos juniores do Belenenses…

Ronaldo não volta para a Europa, porque não há quem pague o que ele quer, e nenhuma das equipas de topo, onde ele acha que ainda teria lugar, o quer por perto.

A continuar por este caminho, sem aceitar o tempo que a todos consome, ainda nos vai fazer esquecer aquele rapaz sem medo que fazia todo o corredor em Old Trafford, e nos encantava, nos tempos de Alex Ferguson.

É uma pena. Para nós, os adeptos, claro.

Na verdade, nada que o afecte, lá na bolha onde vive.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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