cartas de amor: episódio 03

Maria Alice descobre uma carta em babydoll: Estremoz nem sonha

white arrow through red heart road signage

por Clara Pinto Correia // Julho 21, 2023


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

A

CARTAS DE AMOR

Em Julho e Agosto de 2023

Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas

Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


Levanta o queixo, Maria Alice.

A ideia dos miúdos foi porreira, e a verdade é que já estás a receber mironadas muito mais pessoais e curiosas quando te passeias pelas ruas com o Júnior, ou quando distribuis panfletos da PANGEIA[1] nas esplanadas do Rossio. O teu ar profissional é um dos teus melhores atributos[2]. Agora arrimas-lhe por cima com verdadeiros sapatinhos de trabalho de meio-salto[3], enfrentas os quarenta graus à sombra desta terra como se nada fosse, tiras todo o cabelo da cara num rabo-de-cavalo bem estudado que não deixa cair-te nos olhos nem dois dedos de franja nem uma gotinha de suor, espetas-lhes com um sorriso rasgado que desta vez encadernaste a bâton escarlate, e já está[4]. E quem é que se lembrou de mais esta de vestires uma t-shirt com o decote cortado até ao fundo do colo, com o logotipo da firma, onde todas as setas apontam para o único continente da origem, bem destacado sobre o peito esquerdo, enquanto o teu Júnior se apresenta ao público com o mesmo logo na coleira e na trela? Ah, essa é outra grande ideia dos putos. Um modelito daquelas duas miúdas de Badajoz amigas do priminho que de net não pescam nada mas são muito boas em estilo e corte, o que nos interessa aos serviços.

Estão a ver? Já está a interessar.

É um modelito que derrete logo o gelo.

Se é que alguma vez existiu algum gelo para derreter aqui em Estremoz.

Woman with Face Make-up Holding Flowers

Gelo, assim mesmo gelo, isso realmente é mais uma característica da América do Norte.

— Ó Senhora. Eu posso fazer festas no seu canito?

— Claro que podes, amorosa. Como é que te chamas?

— Bia.

— Oi Bia, ele é o Júnior.

— E isso que ele tem nos costados, é quê?

— Na terra dele chamavam-lhe o Ridgeback. É uma espécie de uma crista que todos os cães desta raça têm. Foram criados pelos Boers para caçarem leões na antiga Rodésia, por isso chamam-lhes os Leões da Rodésia. São muito calminhos, muito amiguinhos, muito bonitos, mas na caça ao leão levantam aqui o ridgeback e então valha-nos Deus. Andas à escola[5], Bia?

— Mais ou menos.

— Então leva um panfleto da nossa nova loja bué fish, que é a PANGEIA e abre para a semana. Ajudamos toda a gente, imprimimos em papel e em tecido, e até para eventos ou para festas de anos, ajudamos a criar logotipos, prestamos serviços de internet ao domicílio, fazemos descontos especiais para actividades de ONGs e autarquias; e, caso seja preciso, até damos explicações a custo zero. Ah, e claro, tirámos a licença, portanto podemos fazer baby-sitting e deixamos fumar e entrar cães[6].

Maria Alice não é parva. Sabe perfeitamente que toda esta informação está a ser desperdiçada na menina do grande convívio dos ciganos, ali mesmo na esplanada da FORMOSA, que acaba de dizer-lhe que só vai à escola mais ou menos[7]. Mas a questão é que falou suficientemente alto para toda a gente que foi refugiar-se naquela sombra poder ouvi-la. É sexta-feira, são dez e meia da manhã, e até o vereador da cultura e dos eventos está ali mesmo a dois passos. Entrega-lhe um panfleto, faz-lhe um dos seus sorrisos rasgados, repete o gesto por todas as mesas, combina logo ali umas explicações de geologia para um adolescente do décimo primeiro ano que anda às voltas com a deriva dos continentes sem conseguir desatar bem o embrulho[8], deixa uma pilha no balcão, soma e segue. Atrás dela, no seu rasto sabiamente perfumado a ANGEL[9], ouve-se ainda o eco,

— … Júnior…

— … ela sabe, ela sabe…

— … a mulher do António José…

— .. Leão da Rodésia..

— … Estremoz só tem a ganhar…

— … enfim, Pangeia, está muito bem visto…

— … O Moisés que se cuide… [10]

rhodesian ridgeback, running dog, flying dog

Maria Alice acaricia o cão atrás das orelhas enquanto respira fundo. Decidiu que, a seguir, vai sentar-se ali n’ O ALENTEJANO, mostrar bem tanto as pernas como o Júnior, e meter conversa com os velhotes sobre os serviços ao domicílio da PANGEIA.

Foi uma grande semana de trabalho, esta que fecha hoje.

Como o tempo voa, amigos.

Esta é a semana em que Maria Alice e o primo mais novo de António José concluem finalmente o registo da sua sociedade, recebem o financiamento que pediram para poderem avançar com as suas ideias, ficam endividados até à raiz dos cabelos mas não têm medo de nada, decidem que em breve poderão abrir portas, escolhem para aquela grande aventura o nome de PANGEIA porque é isso mesmo que a internet faz, chamam todos os amigos hackers do priminho para acertarem quem é que faz o quê, também comparecem duas miúdas de Badajoz que tratarão dos modelitos, ela vem como dantes, só de jeans e T-shirt e cara lavada, todos a tratam carinhosamente por kota[11], e corre tudo tão bem que acabam a fumar charros, a fazer brindes, e a rir às gargalhadas.

Mas agora é preciso vender bem o produto antes de ele estrear.

Nem que mais não seja, porque ninguém pode ver a PANGEIA vazia.

E é isto mesmo que implica toda aquela publicidade.

Ela nunca iria tão longe de sua própria iniciativa.

As ideias daquela espécie de cartoon ao vivo são ideias dos putos.

E é que são todas boas ideias.

Orgulho, Maria Alice, muito orgulho. Está na cara que eles vêem em ti uma grande Libertadora do Carisma Feminino. Género, a Catwoman do Batman. É bom, não é?

Maria Alice, sempre muito elegante nas suas toilettes de roupa justinha e com Júnior à trela, usa-se a si própria para efeitos publicitários, fria e deliberadamente. A partir de agora, é também para fins publicitários, sem nunca despir as T-shirts com o logotipo, que usa durante as horas de maior canícula o seu chuveiro na horta. À noite, pelo contrário, veste o babydoll, agarra nos cigarros que parecem ganzas, põe os óculos de leitura com a correntezinha dourada, prepara uma bebida, deixa a garrafa do vodka[12] e a taça do gelo em cima da bancada, e vai trabalhar até tarde nos escritórios da loja que abrirá em  breve. Sabe muito bem que, em todos estes cenários, há sempre alguém a ver. Basta o Júnior rosnar, que ela não esconde o seu sorriso. Mais um ponto para a PANGEIA. Na manhã seguinte, enquanto toma os seus primeiros cafés na cozinha, ouve a velha Josefa, cada vez mais fiel devota desta impressionante Grande Libertadora dos Modos de Nós-Mulheres, contar-lhe todos os mexericos da véspera até ao mais ínfimo pormenor.

Até já mete uma parte em que as miúdas começam a ir à loja de roupa de cama, ali à esquina da que vem do gás à do passeio do Rossio que vai para o Arco da Nossa Senhora[13], exigindo babydolls assim e assado. Ai por cima também traz, assim, um mini-robe transparente? Ai Deus, mas então encomende também o robe, senhora.  Em quais cores é que tem, além do Turquesa? E com mais renda, não tem?

Glasses with Vodka and Bowl of Olives

Na realidade, Maria Alice tem andado com o ego imensamente gratificado. Não confessaria a ninguém que não fosse a Josefa, mas as suas relações com o marido há muito tempo que se tornaram frias e materialistas. Quantas vezes é que ele já voltou das suas longas viagens de vender o Bill Gates por todo o Québèc para largar as duas Louis Vuittons cheias de roupa suja dentro da porta, passar meia hora no duche, passar outra meia hora a abonecar-se todo ao espelho, montar-se a correr na scooter brilhante para ir ter com os amigos ao clube de golfe e tell all de roda de uns bons drinks e umas boas risadas, ir com eles às Buffalo Wings da bomba da Mobil do outro lado da cidade, e depois, à noite, gritar,

— Ó, caralho, Maria, eu não posso estar práqui a foder com um cadáver!

Oh, aquela mulher reluzente já nem sabe quantas vezes acordou das suas lindas réveries dos vinte anos para dar por si empandeirada para os subúrbios do Québèc, casada com um alentejano básico que não sentiu nunca qualquer atracção pela ideia do Linux, e muito menos quis saber de toda a diferença proposta pelo Steve Jobbs. Quando o conheceu ele era cabo dos forcados dali de Estremoz, gostava de copos e de sarilhos, botava o baixo nos corais, desbastava os poldros vindos das campinas que chegavam aos dois anos sem nunca terem mordido um freio, partia os ossos e sorria, e tratava todas as mulheres por minha querida. E ela, nascida e criada em Moçambique, com a vida de estudante passada em Lisboa, divertia-se à grande e apaixonou-se mesmo.

Foi só apanhar-se casado e emigrado, que aquela graça especial passou-lhe logo toda a correr.

Faz bem, então não faz.

Cartoon ou filme, Catwoman ou Wonderwoman não interessa: é mesmo doce, aquilo de voltar a ser quem foi.

Nessa noite, a Bela Adormecida decidiu que até faz uma directa se for caso disso. O vodka de mirtilos pousado na bancada veio directamente da Rússia[14]. O babydoll todo rendilhado que vai estrear tem a cor exacta dos frutinhos vermelhos do fundo da garrafa. Como o priminho lhe disse que use também as redes sociais para efeitos publicitários, Maria Alice, que para ser franca odeia esse mundo, lá abre o seu Facebook e o seu Instagram, disposta a remodelá-los de alto a baixo.

A primeira coisa que faz é apagar todas as mensagens antigas, que, na sua esmagadora maioria, nunca leu.

Mas o que é isto, quem é este Alexandre de Noronha que passava as noites a ver-me dançar coladeras em Cabo-Verde? E que escreve tão bem, numa mensagem tão longa e tão bonita que parece mesmo uma carta, daquelas que já ninguém escreve?

Ah pois é.

Pois é.

Maria Alice está pronta como um figo maduro.

E, no meio de toda a quinquilharia, acaba de esbarrar na mensagem de um gajo qualquer que não conhece.

Acontece que fica logo com vontade de conhecê-lo.

Será que há mesmo horas de sorte?

Será que estou tão mocada que perdi o critério?

Anda cá, Júnior.

Alexandre de Noronha?


Leia também o Episódio 1, o Episódio 2 e o Episódio 4 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia


[1] Tudo bem, o conceito hoje em dia pode ser polémico, mas também, lá por isso, hoje em dia tudo é polémico, e todos os continentes estarem unidos num só é exactamente o que faz a internet. É ou não é? PANGEIA: no início, todos os continentes estavam unidos num só. É ou não é o que faz a internet? Unir todos os continentes num só. Ah pois é. Pois é.

[2] A ideia de chamar PANGEIA à loja foi da Maria Alice, evidentemente. Depois ainda passou uma boa meia hora a explicar aos putos o que era a Pangeia e o que foi que lhe aconteceu. Fartaram-se de rir, mas isso foi mais porque quando inventaram o nome já estavam todos mocados.

[3] Arrimar por cima: expressão alentejana colorida e vivaça que dispensa explicações.

[4] Mas vocês, realmente – vocês acham que no Verão aquilo era como, enquanto eu vivia no Québèc? A gente sufocava e vinha cinza dos fogos florestais por todos os lados. O que nos valia eram os chuveiros na hortas.

[5] Maria Alice aprendeu com o linguajar do marido este truque de aproximação regional: aqui em Estremoz não se diz ir à escola, diz-se andar à escola. Por exemplo: António José vai à Farmácia, e cumprimenta a Tita com dois beijinhos. E depois diz-lhe, com um ar dolente e saudoso, Aaah, Maria, sabes. A Tita andou comigo à escola.

[6] Só mesmo uma pessoa com mais de uma década de América do Norte em cima é que chegava a Estremoz e se lembrava desta do baby-sitting, mas pronto. Vamos ver se pega.

[7] NOTA BENE: convém não esquecer esta referência à grande população cigana de Estremoz, que virá em breve a ter algum peso no rumo dos eventos. O resultado directo do seu peso populacional invulgar é que, quando vamos a ver, parece-nos mesmo que metade dos homens de Estremoz são do CHEGA!

[8] Desatar o embrulho: outra expressão colorida e auto-explicativa, que já se usou mais no Português Provinciano e ainda subsiste, orgulhosamente, aqui no coração do Alentejo.

[9] Thierry Mugler. Escolhido de propósito para esta vistosa mise-en-scène. Deixa atrás de si um rasto delicioso e inconfundível.

[10] Referência a Moisés Alcaria, legítimo proprietário da net-shop local em que se fundamentou a PANGEIA.

[11] TODOS não, senão vejamos: estando presentes duas miúdas espanholas, o mais expectável é que tratem Maria Alice por tia.

[12] É muito raro aquele vodka ser mesmo vodka. Para nunca perder o fio à meada, Maria Alice tem mais por hábito passar a noite a beber água. Mas parece vodka. E fica igualmente bom com água tónica.

[13] Difícil de dividir em orações. Mas genuíno.

[14] OK, e desta vez é mesmo vodka. E, se calhar, os cigarros que parecem charros são mesmo charros. Conforme veremos, neste caso a questão é que ninguém aguenta estar completamente sóbrio enquanto remodela de alto a baixo o seu próprio Facebook.

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