Título
Sombras do Império: Belém – Projetos, Hesitações e Inércia, 1941-1972
Autor
JOÃO PAULO MARTINS (Org.)
Editora
Tinta da China (Fevereiro de 2023)
Cotação
14/20
Recensão
No seguimento da exposição com o mesmo nome, no Padrão dos Descobrimentos, entre 2 de Maio de 2022 e 30 de Janeiro de 2023, este livro surge como uma compilação essencial de uma equipa multidisciplinar que focou a sua investigação em Belém no contexto paradigmático das acções (ou inacções e inquietações de projecto) após a Exposição do Mundo Português de 1940.
O primeiro artigo que nos é apresentado pertence à pena de Pedro Rito Nobre, arquitecto e investigador, que, com uma forma de expressão leve e directa, nos apresenta o necessário contexto da Exposição de 1940 e os planos de urbanização associados a esta malha urbana. A paginação, porém, pode dificultar a comunicação – algo plasmado ao longo de toda a edição – sendo que, embora elegante no seu grafismo e de uma forma bela se regularize numa continuidade plástica a apresentação do espólio fotográfico e documental – esta opção compromete a leitura de alguns desenhos e até da lógica das legendas (caso da página 26, em que a própria legenda da planta refere o uso do sistema “vermelhos e amarelos” para indicação dos elementos a demolir ou construir, não existindo porém essas cores nos desenhos, em sacrifício pela uniformidade gráfica).
Para o público fora das disciplinas de edificação e planeamento, a descrição de eixos de implantação e acções de projecto e obra arriscam provocar um grau de opacidade considerável, porquanto um longo parágrafo explicativo do que consta na planta poderá conter jargão não tão acessível. Ainda assim, é muitas vezes necessário assumir o seu público alvo e talvez não apaparicar todos os destinatários apenas para aumentar o alcance, e arriscar, por seu turno, desprestigiar o conteúdo e as suas nuances.
É anunciado, na proporção correcta, o modo como as perspectivas que orientavam as decisões urbanísticas, neste caso de estudo, não assentavam com a mesma intensidade no actual culto historicista de preservação integral da cidade (diria eu e até alguns outros investigadores, por vezes de forma fachadista ou disneyficada).
O acervo fotográfico e documental é absolutamente notável, cuidadosamente curado e apresentado de forma a enlevar o leitor e, portanto, apesar da gíria académica empregue na redacção, dir-se-ia até ser possível usufruir do livro abdicando do corpo do texto, tal é o impacto que a recolha releva.
“Quando afinal as luzes de mil cores deixarem de incidir sôbre os pavilhões, quais são os candieiros que ficam acessos na nossa freguesia?” p. 20, citando Ecos de Belém, 10 de Julho de 1940, p. I
Como este autor contribui na sua reflexão, após uma demonstração clara das aventuras e desventuras dos projectos e seus autores que tentavam criar novos mundos, “tão vasto plano para tão pouca concretização” (p. 43) é sem dúvida a melhor síntese desta apresentação.
Segue-se o artigo de Joana Brites, historiadora de arte, investigadora e professora universitária, onde novamente a leitura em colunas – em que os subcapítulos interrompem as mesmas dentro da mesma página – dificulta a mesma. De ressalvar também que na página 27 do autor anterior e na página 59 desta autora, encontramos uma redundância de uma cartografia; não obstante, é excelente a contextualização histórica sobre os conteúdos ideológicos e programáticos das intervenções apresentadas para os projectos desta época, mesmo à luz do panorama internacional.
Não podemos deixar de exaltar a reflexão da página 69, nas considerações finais do artigo, sobre as relações de poder plasmadas no estudo da “não concretização” – neste caso, lusitana – não só das intenções da época em apreço, como mesmo actualmente.
O artigo do organizador João Paulo Martins, arquitecto e professor universitário, tem um título absolutamente brilhante pelo seu carácter ilustrativo: “Espectros, fantasmas e outras assombrações (...)”.
A anatomia temporal do projecto do Palácio do Ultramar, sempre acompanhado pelos desenhos brilhantes de Cristino da Silva permite-nos vivenciar uma narrativa muito interessante, assim como demonstrar as dinâmicas do “pequeno” poder em Portugal (página 95), ou as secas respostas do poder político (página 96).
Na página 101 surge timidamente um modelo digital do projecto em análise, executado por Marta Orszt, infelizmente sem o destaque que poderia colmatar as lacunas de comunicação que já mencionámos. Em seguida, os restantes anteprojectos ao longo da década de 60 são-nos apresentados e, de novo, na página 111, uma vez mais o azedume político a empatar o avanço de uma visão. Para remate mais feliz, o Museu da Marinha garante-nos o alívio de, após esta saga de rezingas que impedem projectos, podermos observar obra erigida.
O artigo seguinte pertence a Sebastião Carmo-Pereira, arquitecto paisagista, novamente com a companhia dum acervo de imagens e desenhos fantásticos. Ficamos a conhecer com muito interesse a luta dos planos de Belém até à Ermida de São Jerónimo, neste caso na sua dimensão paisagista e, como sempre, com o modo peculiar como aparentemente, em Portugal, não se gosta de árvores, e citando Ribeiro Telles na entrevista com Urbano Tavares Rodrigues:
“A concentração da população nas cidades é um facto que se perde no tempo. A ruralidade criou e durante séculos manteve a cidade. Esta não era mais do que um elemento pontual no espaço rural onde se processava um complexo sistema de trocas. A relação entre a paisagem humanizada, a Natureza mais ou menos selvagem e a urbe era íntima. (...)” (página 145)
Por fim, mas sem demérito pela sua posição, o artigo de Natasha Revez, historiadora de arte e investigadora, traça a crónica de costumes mais divertida do livro, com ironias no subtexto (ou então mea culpa se vislumbradas foram por predisposição mais sardónica pessoal).
Sobre o Padrão dos Descobrimentos (curiosamente motivo de polémica recente), sobre a sua génese, sobre o seu orçamento começar em 9 mil contos e, mediante impugnação do primeiro concurso, subir para 12 mil; sobre as irregularidades do concurso e “projectos de cartaz” para se chegar até a abdicar do anonimato na segunda fase; sobre as alterações climáticas com o Infante a cair ao Tejo (página 157); e, de novo, a inépcia.
Entretanto, a diferença entre o investimento em Sagres e em Lisboa, em que “mais um projecto «naufragou em ignotos baixios ante um terrível e inesperado cabo Não»” (página 161) com a devida homenagem a Teotónio Pereira e ao seu artigo “Não haverá ‘Mar Novo’” (talvez estes últimos parágrafos e imagens que o acompanham seja de observação essencial para os responsáveis autárquicos das encomendas de estatutária contemporânea em Portugal... talvez revejam os seus erros nuns pontos e, ao mesmo tempo, ironicamente constatem que até o atavismo do regime conseguiu – quando conseguia – produzir obras de melhor orgulho estético do que os suportes de pombos que vêm a ser erigidos ultimamente).
“Da exposição ao livro”, a apresentação em jeito de prefácio do organizador do livro é, na nossa humilde opinião, o remate perfeito a esta recensão crítica de um conteúdo de pertinência essencial:
“(...) ficam evidentes os confrontos entre protagonistas individuais – políticos, arquitetos, paisagistas... – a cujas diferentes formações e culturas disciplinares deram suporte a abordagens distintas e objetivos não coincidentes. Cumplicidades e disputas entre gerações ou meramente pessoais, raramente assumidas ou completamente explicitadas, percorrem as trocas de argumentos que a documentação administrativa regista. Nos jornais, a escassez de comentadores independentes baliza os limites do debate público.
(...) Não será surpreendente reconhecermos então (como hoje, afinal) a incapacidade generalizada para o exercício do diálogo, capaz de conduzir soluções esclarecidas, convincentes e partilhadas, consensos negociados, e não apenas conquistados ou, simplesmente, impostos.” (página 9)