Pode uma pequena ou grande empresa não pagar impostos ou taxas ao Estado anos a fio sem ser incomodada? Em princípio, não. Mas a Trust in News – a empresa de media que detém a Visão, a Exame e o Jornal de Letras, entre outros títulos – parece deter o “Santo Graal dos caloteiros”: com um capital social de apenas 10 mil euros, desde que se criou deixou de pagar grande parte (ou a totalidade) de impostos (e talvez também de contribuições à Segurança Social) e nem sequer consta da lista de devedoras ao Estado. O calote já vai em 11,4 milhões de euros, e só no ano passado subiu 3,2 milhões. O Ministério da Segurança Social cala-se e o Ministério das Finanças escuda-se no sigilo fiscal. A Trust in News mostra-se incontactável, ficando-se assim sem saber, por agora, quais as artes mágicas para um grupo de media funcionar com tamanha dívida ao Estado e com evidentes sinais de contabilidade criativa. Esta é a primeira notícia de um dossier de investigação.
Nota: Por “alerta” de pessoa com legitimidade, e reconhecendo a eventualidade de o uso de fotografias divulgadas livremente nas redes sociais poder ser considerado uma violação dos direitos autorais mesmo se de figuras públicas, o PÁGINA UM decidiu retirar algumas fotografias e substituí-las por uma imagem alusiva à transparência.
Na aparência, ninguém se apercebeu no Governo, mas a Trust in News – a empresa proprietária da revista Visão e de outras publicações como a Exame, a Caras e o Jornal de Letras, adquiridas à Impresa no início de 2018 – apresenta já, alegremente, uma dívida de 11,4 milhões ao Estado. A sua cobrança, a atender à situação financeira da empresa, mostra-se cada vez mais complexa, porque anda a subir vertiginosamente nos últimos quatro anos, conforme apontam as demonstrações financeiras analisadas pelo PÁGINA UM.
Só no ano passado, o calote ao Estado pela Trust in News aumentou 3,2 milhões de euros, o que dá mais de 12 mil euros em cada dia, mas os “esquecimentos” das obrigações fiscais (e eventualmente de contribuições à Segurança Social) da empresa unipessoal de Luís Delgado têm sido contínuos. De acordo com o balanço de 2018, o primeiro ano de actividade editorial, a Trust in News tinha “apenas” uma dívida ao Estado (e a entes públicos) de 942.820 euros, eventualmente ainda uma “herança” do negócio com o Grupo Impresa Pinto Balsemão.
Em 2019, a dívida ao Estado subiu para quase 1,6 milhões de euros, e a partir de 2020 foi o descalabro. Luís Delgado conseguiu, contudo, o prodígio de não ser incomodado pela quase sempre inflexível máquina coerciva do Estado na cobrança de impostos e taxas, acumulando no último triénio, paulatinamente, mais de 3 milhões de euros em dívidas ao Estado em cada um dos anos.
O montante da astronómica dívida, que representa já 42% do passivo, não é assumida nem identificada quer pelo Ministério das Finanças quer pelo Ministério da Segurança Social. Este último, liderado por Ana Mendes Godinho, nem sequer respondeu ao PÁGINA UM. Quanto ao Ministério de Fernando Medina, embora tenham sido colocadas diversas questões específicas, o gabinete de imprensa decidiu apenas enviar uma frase, pedindo que deveria ser atribuída apenas à Autoridade Tributária: “A AT não se pronuncia sobre a situação tributária de contribuintes específicos, incluindo a tributação de operações concretas, pois estão protegidas pelo dever de sigilo fiscal, previsto no artigo 64º da Lei Geral Tributária”.
Mas esse sigilo fiscal não é absoluto. No artigo invocado pelo gabinete de Fernando Medina, refere-se que “não contende com o dever de confidencialidade a divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada, designadamente listas hierarquizadas em função do montante em dívida, desde que já tenha decorrido qualquer dos prazos legalmente previstos para a prestação de garantia ou tenha sido decidida a sua dispensa”.
Ora, o PÁGINA UM tem consultado as listas de devedores tanto da Autoridade Tributária e Aduaneira como da Segurança Social, não aparecendo aí a Trust in News em nenhum dos escalões. A situação é extremamente estranha sobretudo porque, por exemplo, em 2021 a Trust in News até informou uma entidade pública de ter acabado o exercício fiscal do ano anterior com uma dívida de 5,1 milhões de euros à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Mais estranho ainda é o facto de as publicações da Trust in News, como a revista Visão e o Jornal de Letras, assinarem com regularidade contratos de prestação de serviços ou de publicidade com entidades públicas. Somente com a situação fiscal e de segurança social regularizada se pode legalmente receber pagamentos de uma entidade pública. Recorde-se também que em Maio de 2020, o Governo pagou 406.088,99 euros à Trust in News por serviços de publicidade antecipada no âmbito dos apoios à comunicação social por causa da pandemia da covid-19.
A eventualidade de existência de um tratamento de favor à Trust in News por parte do Governo não merece qualquer comentário do Ministério das Finanças, mas certo é que a situação económica e financeira da dona da revista Visão – que durante a pandemia foi um dos grandes apoiantes da estratégia oficial – é assustadora.
A Trust in News – que tem apenas um capital social de 10 mil euros (semelhante à empresa do PÁGINA UM) – somava já, no final do ano passado, um passivo de quase 27,2 milhões de euros, um aumento de 48% face ao ano de 2018. Essa subida brutal do passivo (cerca de 8,9 milhões de euros) em apenas quatro anos de existência é inferior ao aumento de dívida ao Estado em igual período (cerca de 10,5 milhões), mas, em todo o caso, o endividamento a terceiros é absurdo face aos capitais próprios (pouco mais de 33 mil euros).
Nas contas de 2022, a dona da Visão diz também ter uma dívida de médio e longo prazo de quase 3,5 milhões de euros ao Novo Banco e uma de curto prazo de 752 mil euros ao Millennium BCP, além de um contrato de factoring com a mesma instituição bancária de quase 1,2 milhões de euros.
A existência de um passivo elevado não seria necessariamente mau, mas neste caso é por duas razões. Primeiro, porque as dívidas ao Estado não são propriamente “produtivas” – ou seja, não é um empréstimo para suportar activos geradores de receitas. Segundo, porque, do outro lado, o passivo tem, como contraparte, activos de valor real muito duvidoso.
Com efeito, analisando os balanços da Trust in News desde a sua existência, uma das rubricas mais importantes do activo são os activos intangíveis – ou seja, no caso de uma empresa de media, são sobretudo as marcas –, que a contabilidade de Luís Delgado atribui um valor de quase 11 milhões de euros. Basicamente, têm uma correspondência próxima da venda pela Impresa do portfólio das revistas há cinco ano (10,2 milhões de euros). Mas, na verdade, se o Estado penhorasse esses activos intangíveis para os vender no mercado – ou, pior ainda, se a Trust in News falisse –, o valor real seria praticamente irrelevante. Em termos práticos, os credores não recuperariam quase nada por uma alienação desses activos intangíveis.
Mais preocupante ainda é o aumento da enigmática rubrica “Outras contas a receber” no balanço da Trust in News, que estão separadas da rubrica de Clientes. Esta rubrica – que basicamente é dinheiro “empatado”, porque em princípio refere-se a serviços facturados mas ainda sem pagamento recebido – tem estado a crescer a olhos vistos. Em 2018 era de apenas 627 mil euros, subiu para 1,7 milhões em 2019, depois para 4,8 milhões no ano seguinte, e em 2021 situava-se já nos 7,6 milhões de euros. No final de 2022, esta rubrica já contabilizava quase 11,5 milhões de euros, ultrapassando os activos intangíveis. Estas duas rubricas – que em caso de falência podem resultar numa mão-cheia de nada – representavam, no final do ano passado, 82% do do total do activo. Em 2018 constituíam 63%.
Recorde-se que antes de vender o portfolio das revistas a Luís Delgado, oficialmente por 10,2 milhões de euros, a Impresa viu-se obrigada a assumir finalmente imparidades (ou seja, de uma forma simplificada, perdas por uma avaliação anterior excessiva) no valor de 22 milhões de euros. Como resultado, nesse ano (2017) de reconhecimento de imparidades, a Impresa apresentou um prejuízo recorde de quase 21,5 milhões de euros.
A somar a estes indicadores financeiros – acompanhados de uma redução significativa das vendas das revistas, que desceram de 17,5 milhões de euros em 2018 para 11,8 milhões de euros no ano passado – está o curioso facto de a Trust in News ter tido sempre lucros “à pele” em todos os anos de actividade.
Exceptuando 2017 – na fase de constituição e antes da formalização da compra das revistas à Impresa –, a empresa de Luís Delgado teve sempre lucros entre 10 mil e 20 mil euros nos anos de 2018, 2019 e 2020, baixou para 27 euros em 2021 e no ano passado apresentou um resultado líquido positivo de 1.061 euros. Em seis anos de exercícios fiscais, desde 2017 até 2022, a Trust in News conta com resultados positivos acumulados de pouco mais de 23 mil euros. Mas tudo isto graças ao brutal calote de 11,4 milhões de euros ao Estado. Como vai pagar – se é que Luís Delgado vai pagar –, ninguém tem, por agora, uma explicação.
O PÁGINA UM tentou por diversas vezes contactar a Trust in News, mas nunca obteve resposta. No site da empresa – que, ironicamente, controla 17 títulos da imprensa –, o único número de contacto telefónico que ali surge é o de um call center de atendimento a clientes (assinaturas de revistas), que somente após alguma insistência indicou um número da gerência (218705000).
Desde quinta-feira, o PÁGINA UM tentou esse contacto, sendo invariavelmente atendido por uma gravação com a seguinte mensagem: “Bem-vindo à Trust in News. A sua chamada encontra-se em fila de espera. Por favor, não desligue. Obrigado”. Depois de já ter aguardado, numa das chamadas, até 20 minutos, na última tentativa desligou-se, sem sucesso, ao fim de 10 minutos a ouvir-se a lengalenga com o bem-vindo e o pedido para se manter em linha. Nem sempre as chamadas foram efectuadas com o jornalista sentado.
N.D. Pelas 02:22 horas de 27 de Julho foi corrigida a referência à situação de Mafalda Anjos como publisher das revistas da Trust in News. Essa função foi desempenhada entre Janeiro de 2018 e Dezembro de 2022. Mafalda Anjos mantém-se agora apenas com directora das revistas Visão, Visão Saúde, Visão Biografia e A Nossa Prima, conforme consta da sua página no LinkedIn.