A organização de uma conferência de dois dias para celebrar o primeiro aniversário da secção de Ambiente do jornal Público esteve assente num contrato de prestação de serviços, onde se estipulou não apenas a escrita de notícias e outros conteúdos como a possibilidade de uma empresa municipal do Porto poder avaliar o desempenho com base em oito critérios. Se o Público tiver entre 86 e 100 pontos no Índice de Qualidade do Fornecedor será “Aprovado” e considerado de “elevada confiança”. Não deve ser difícil: basta (continuar a) portar-se bem.
O Portal Base continua a espraiar, em todo o esplendor, a mercantilização da imprensa portuguesa, mas um contrato ontem divulgado naquela plataforma da contratação pública faz tudo ascender até níveis de bizarria jamais vistos: o jornal Público predispôs-se, através do estipulado no caderno de encargos de um contrato de prestação de serviços com a Empresa Municipal de Ambiente do Porto (Porto Ambiente), a ser “objeto de avaliação de desempenho” com critérios como qualidade, prazo, requisitos de facturação, flexibilidade, disponibilidade de contacto, capacidade de resolução de problemas, assumpção de código de conduta e promoção de requisitos sustentáveis.
O caderno de encargos do denominado “procedimento pré-contratual de ajuste directo, segundo o regime geral, para a participação da Porto Ambiente na Conferência Internacional Cidade Azul”, acompanha um contrato assinado em Maio, mas somente esta segunda-feira tornado público.
Em termos concretos, o contrato de prestação de serviços foi a forma de a autarquia do Porto apoiar uma conferência do Público para celebrar o primeiro aniversário do projecto editorial Azul, um suplemento supostamente jornalístico mas associado a polémicos contratos de prestação de serviços, conforme já revelado pelo PÁGINA UM. Mas, em vez de ser um patrocínio ou apoio com contrapartidas meramente publicitárias, a Câmara Municipal do Porto quis mais.
E assim, a empresa municipal Porto Ambiente pagou 15.000 euros para se associar, de forma dissimulada, à conferência organizada nos passados dias 11 e 12 de Maio, no Pavilhão Rosa Mota, mas com contrapartidas sob a forma de notícias. Com efeito, nos “requisitos técnicos” do caderno de encargos ficou estabelecido que o Público, além de diversas acções de promoção da autarquia do Porto, organizaria a conferência e teria a responsabilidade pela cobertura da conferência em vídeo e textos.
No caderno de encargos ficou previsto “1 (um) conteúdo alusivo à Porto Ambiente de forma institucional e 1 (um) conteúdo alusivo ao Pacto do Porto para o Clima”, além da “inclusão de artigos no suplemento encartado do jornal Público, sobre projetos da Porto Ambiente – Pacto do Porto para o Clima, bioresíduos e sensibilização” e ainda de uma “visita à ilha de compostagem em Paranhos”.
Embora neste último caso, o texto tenha sido publicado na ambígua secção Estúdio P, mas sem referência a ser publicidade da Porto Ambiente, a cobertura do evento, pago com dinheiros municipais, foi feito na secção Azul pela jornalista Aline Flor. Na sessão de abertura estiveram presentes o então director do Público, Manuel Carvalho – que não fez referência ao apoio financeiro, como contrapartida de prestação de serviços, por parte da Câmara Municipal do Porto – e o presidente desta edilidade, Rui Moreira, o financiador, que não foi assim identificado. O autarca teve seis minutos de intervenção, sem referência ao contrato de prestação de serviços.
Na página da conferência, com a lista dos oradores, surge a referência à Porto Ambiente como co-organizadora apenas com um minúsculo logótipo, mas nenhuma referência é feita em duas notícias assinadas pela jornalista Aline Flor, tanto na do primeiro dia, como na do segundo dia, onde se destaca a presença do Presidente da República. No entanto, o “branding” estava implícito na associação entre a secção Azul, do Público, e a cidade do Porto, uma vez que a conferência foi baptizada de Cidade Azul.
Porém, cinco dias depois, a 17 de Maio, o Público colocaria, como um artigo noticioso normal, um texto da jornalista estagiária Maria José Coelho, mas editado pela jornalista Ana Fernandes, onde se elogiou o trabalho da empresa municipal Porto Ambiente na reciclagem de resíduos durante as festas académicas na cidade.
Contudo, onde efectivamente se mostra a bizarrice deste acordo comercial é na cláusula 7ª sobre a “avaliação de desempenho do Contraente Privado”, isto é, do Público, cujo resultado “será divulgado anualmente”, e do qual resultará um “Índice de Qualidade do Fornecedor”, utilizando os critérios ponderados. E, aparentemente, a Porto Ambiente exige elevada excelência.
Com efeito, para o Público ser “Aprovado”, precisa de uma classificação entre 86 e 100 pontos, de modo a ser considerado um “fornecedor de elevada confiança”, com um “risco de falha diminuto com base num histórico de desempenho isento ou quase isento de falhas”, Entre uma pontuação de 71 e 85, há lugar a um raspanete, com referência a “Sugestões de Melhoria”. Se o Público tiver esta classificação será considerado um “fornecedor de confiança”, com um “risco de falha baixo com base num histórico de desempenho regular”.
Já se tiver menos de 70 pontos, então o Público ficará “Reprovado”, sendo considerado um “fornecedor de risco”, uma vez que o “risco de falha é elevado com base num histórico de desempenho irregular que não oferece confiança no cumprimento das obrigações”.
O contrato, que teve como gestora por parte da Porto Ambiente, a sua coordenadora de Comunicação e Imagem, tem outras cláusulas pouco ortodoxas para a linha editorial de um jornal, como seja a necessidade de reuniões com representantes da empresa municipal “sempre que necessário”, e através de uma “convocatória escrita” e como uma “agenda prévia contendo os assuntos a debater”.
Por outro lado, o Público ficou com o dever de “guardar sigilo sobre toda a informação e documentação, técnica e não técnica, comercial ou outra, relativa à Porto Ambiente, de que possa ter conhecimento ao abrigo ou em relação à execução do contrato”, excepto aquela que já for pública.