Vidro: crónica dos materiais
Os primeiros sinais de magia dos homens (ouves os sinais?) aconteceram com uma fogueira (claro, o fogo, sempre o fogo) na praia, muitos mil anos antes de nós (eu hoje sou eu) sermos nós próprios, quando porventura éramos até outras pessoas noutros sítios ou, simplesmente, éter ou átomos à deriva noutra galáxia (o que é a alma?).
Acendendo uma fogueira na areia, com conchas que o mar nos trouxe (ouviste o mar dentro delas?), com o calor enorme e exactamente necessário a exercer a pressão desejada, nasceu a transparência. Nasceu o vidro (que magia!)
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Não está lá mas está. Deixa ver mas impede de passar. Que fortuna! (Será?)
Com o tempo as nossas cavernas, construídas, puderam abrir os olhos (são o espelho da tua alma?), arregalar o horizonte, sem risco de tanto frio gélido, ou que a tempestade nos engolisse as coisas (somos as nossas coisas?). Janelas nasceram com o vidro, onde antes apenas existiam vigias. O rosto fortificado das pedras que envolviam os nossos abrigos deixaram de ser esquimós e puderam engolir o mundo (mas quem está a ver também pode ser visto…)
– Isto não tem luz nenhuma! Eu quero mais janelas! E maiores! Quero muitas janelas! Era assim que eu faria a minha casa!
Mulheres e crianças, presas dentro de casas gaiola, querem muitas janelas. E muito grandes (podes ver mas não podes passar). As paredes escancararam-se ao longo do tempo. Em vez de olhos, passaram a ter bocarras abertas, penduradas entre vomitar a privacidade de quem as habita e o engolir um mundo de luzes que as rodeia.
(Miquido…)
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Montras. E janelas (e postigos). Passamos de pássaros em gaiolas a peixes em aquários.
A minha casa é o Porto e tem ombros de granito, as janelas vão do chão ao tecto à medida da minha anca com a tua, para eu poder passar por elas e fugir sem ter de abrir a porta. Que estais a fazer à minha casa? O fogo vem aí?
Os vidros estilhaçaram assim as nossas vidas. Deram-nos vãos com película de água do mar cristalizada. Deram-nos lentes de óculos, binóculos, telescópios, máquinas fotográficas. Deram-nos ecrãs. Todos os ecrãs deste mundo para onde fomos agora viver, a habitar o reino de vidro frio onde encosto a cabeça para respirar melhor se o pânico me avassalar (deixa ver mas não deixa passar).
Deram-nos copos, garrafas (um resguardo de chuveiro que desliza). Faróis. Lâmpadas (para encontrar o caminho e espantar os demónios). A luz! A luz! (Lusitânia.)
Já viste tudo onde encontras vidro? Mas cuidado com a repetida dor crónica: do plástico que finge ser vidro como finge ser metal, também anda por aí!
(Miquida…)
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Podemos escrever mensagens no vidro. Ou pelo menos enrolar pergaminhos numa garrafa que baloiça nas ondas do mar, meu querido, minha querida, roubar palavras aqui e ali, transparentes a borbulhar na água.
E, se eu me quiser enroscar ao teu lado e sentir aquele arrepio que une o pescoço ao ombro, quando se sente lá a respiração, prometo que o bafo vai ficar na janela para te deixar mensagens de amor que se apaguem num segundo.
Um do lado de fora, outro do lado de dentro, o vidro deixa ver mas não deixa passar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.