A
CARTAS DE AMOR
Em Julho e Agosto de 2023
Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Uma vez mais, como rapidamente se tornou hábito, a noite vai alta e Júnior dorme a sono solto. Maria Alice limitou-se a lavar a cara, massajá-la com um sérum resplandecente, e cobri-la de um creme de noite que devolve à pele o éclat natural dos vinte anos. Em vez do babydoll, enverga agora um pijaminha de cetim riscado azul e branco, com o fio de ouro herdado da avó a cintilar-lhe ao pescoço, em pendant com as argolas pequenas e grossas que aparecem e desaparecem entre as ondas dos seus longos cabelos castanhos. Quase escondidos por baixo da franja, emoldurados pelas pestanas escuras e curvas, os seus olhos cor de mel parecem dardos.
Alexandre de Noronha voltou a escrever-lhe.
“Querida Bloody Mary:
“(não sei se ainda se lembra desta nossa alcunha – mas eu nunca consegui esquecê-la – nem quis – e que outro homem português quereria?):
“Querida Bloody Mary – por favor – não se lembre só de Cabo Verde – meu Deus – recebi a sua mensagem.
“Talvez eu já não seja crente – mas recuperei – de súbito – toda a vontade de acreditar daqueles meus dezoito anos passados ainda nas lutas redentoras da JUC[1].
“(de súbito acreditei – até – que a beleza do grande brilho alaranjado do pequeno quarto minguante[2] diante da minha janela era – deveras – um sinal para mim)
“E a mulher que dançava coladeras toda a noite – onde estará agora – a ver esta mesma lua – ou será que já cá não está – ou que deixou de olhar para o céu?”
Esta é a segunda mensagem que parece uma carta do tal gajo que se lhe vai tornando cada vez menos desconhecido.
Está tudo a acontecer muito depressa.
Só de ler a primeira mensagem deste mesmo gajo, Maria Alice abraça o Júnior com toda a força, ruboriza-se com o vulcão interior das jovens virgens, dá um longo golo no seu vodka russo de mirtilos quase esquecido sobre a bancada, depois enche-o de gelo, agita-o, e dá-lhe outro golo – e, finalmente, dado o calor sugestivo da noite e a evidência imperativa de que entretanto fumou mesmo um charro, decide nem se despir e tomar um duche frio na casa de banho, longe dos olhares de todos os espreita-muros que a procuram ver no chuveiro. Depois serve-se abundantemente de chá e torradas no sossego da cozinha, bebe quase um litro de água fresca, sente tonturas, entrega-se por momentos à frescura do lençol, e só volta a acordar pelas cinco e meia da manhã, com a chilreada das andorinhas na sua janela e o primeiro aroma a café que lhe indica que Josefa já está acordada.
Veste os shorts sem bainha e a T-shirt decotada da PANGEIA, vai tirar o seu primeiro expresso ainda descalça que é como gosta de andar em casa[3], troca meia dúzia de piadas maliciosas com a velha empregada que traz pão quente e morangos da rua, leva uma taça deles e outra garrafa de água para o escritório, e volta a olhar para as mensagens do Facebook.
A mensagem daquele gajo ainda lá está.
Tal e qual como ela se lembrava, o gajo escreve muito bem, e nunca usa abreviaturas. É verdade. A mensagem parece mais uma carta, agora que já ninguém escreve cartas. Mais ainda – agora que já ninguém ama – aquela carta parece mesmo uma carta de amor.
O primeiro instinto da esposa de António José é mudar radicalmente a sua apresentação do Facebook, que na realidade foi o que ali a levou, e de caminho fez com que descobrisse aquele homem de quem só consegue lembrar-se muito vagamente, como quem se lembra de uma outra vida, uma vida que já teve mas que já deixou de ter. Apaga o seu perfil excessivamente profissional, remetendo a parte do que sabe fazer na internet, e em que tipo de programações, para a área dos grafismos. Começa todos os capítulos com diferentes fotos da PANGEIA onde o seu rosto, o seu corpo, as suas mãos, o seu cão – alguma coisa que lhe diga respeito esteja devidamente favorizada. Por baixo das diferentes entradas sobre serviços da loja, que dá por si a escrever a cem à hora com uma graça e um constante tom de teaser que pensava já ter perdido, insere mapas de Estremoz com as ruas que vão lá ter sabiamente destacadas. Sim, malta, sorri ela para consigo. Acreditem que não sou só muito boa – sou, também, muito boa nisto.
Obrigado pela inspiração, Alexandre[4] que ainda só existes no nevoeiro.
Agora trata-se de escolher a foto com que – doravante – se apresentará ao público.
É interessante como o seu pensamento está a começar a encher-se de travessões. Ah, pois – é o gajo que os usa. E o gajo menciona coladeras em Cabo-Verde. Deve ter sido há eternidades, mas ela regressou lá muitas vezes. Tem um contrato de formação electrónica com o Governo da Praia, e prefere ir sozinha para se gozar bem da simpatia dos formandos, da doçura das praias, da consistência das lagostas, das horas perdidas das noites de dança, e sendo assim, porque não…
A sua apresentação passou agora a ser uma foto recente e altamente galante de si própria, tirada em grande plano, nas areias do Tarrafal, em maillot verde-água de sereia, escuríssima, sozinha, com o Júnior sentado ao seu lado e a água ainda a escorrer-lhe na pele.
Depois respondeu ao gajo.
O gajo respondeu logo.
Foi essa carta que a deixou tão alvoroçada na noite anterior.
Com essa carta, com aquela alcunha dos seus últimos tempos de solteira, veio-lhe a recordação visual inesperada, a romper as brumas da memória num imenso sobressalto, dos olhos azuis do jovem historiador que estava a retraçar vestígios da pirataria holandesa em Cabo Verde quando ela lá foi fazer o seu primeiro levantamento das necessidades informáticas locais com uma ONG de peritos canadianos que em breve a arrastariam consigo para o Québèc já casada com o António José. É verdade, ele chamou-lhe Bloody Mary por causa do seu porte altivo.
“Porque sabes, miúda – as pessoas têm uma péssima opinião da Maria Tudor – só sabem dizer que ela matou centenas de milhar de ingleses nos seus delírios religiosos – mas estão sempre a esquecer o fundamental – essa mulher foi – para todos os efeitos – a Primeira Rainha de Inglaterra.”
“Então sabes explicar toda a sua loucura?”
“Ela nunca conseguir ter filhos.”
“Eu também nunca vou conseguir. Tenho uma doença. Mas não vou mandar matar milhares de pessoas por causa disso.”
“Está bem – mas ouve – ela era Rainha e tinha que deixar Herdeiros – é diferente.”
“Não explica nada.”
“Pois não – mas sabes – o seu verdadeiro drama – é que ela foi – mesmo – mas é que mesmo – muitíssimo mal amada.”
“É isso que me desejas?”
“Claro que não – miúda – pudesse eu amar-te – verias.”
“Isso é muito fácil de dizer, sabendo tu que vou casar-me para o mês que vem.”
E depois desatavam os dois a rir. Muito baixinho, para não chamar a atenção de ninguém.
De súbito – ao ler a alcunha de Bloody Mary que mais ninguém conheceu – Maria Alice recorda-se – também ela – da JUC e das suas lutas redentoras – tal como o Alexandre lhas contara – noite dentro – e ela só não se lembrava era do Noronha[5], de resto agora está a reviver tudo. Lembra-se de quando dançava – com outros – mas só para ele. E – sobretudo – de quando saíam todos da sopa de lagosta – mas – ninguém notava – os canadianos não são assim muito espertos – eles os dois não iam dormir. Iam antes para qualquer rochedo – conversar de grandes sonhos para futuros que talvez ainda estivessem em aberto – entre risos brandos e partilhas crescentes de pontas de cigarro que brilhavam no escuro a espaços.
E chega de travessões, please.
Quem adorava escrever com travessões era o Alexandre, não era eu.
Eu até lhe perguntei se ele era mesmo historiador, ou se a sua verdadeira vocação era ser escritor.
Ele disse que eu era fresca, agarrou-me em peso, e atirou-me ao mar.
Ah pois foi, não custou nada, o nosso rochedo, nessa noite, era mesmo à beira do mar.
E eu preguei-lhe um grande susto porque fui a nadar por baixo de água até ao hotel.
O que nós nos ríamos.
Falavam durante essas noites quentes numa fluência doce, pontuada por toques de mãos suaves e frescos, encostos da cabeça de um no ombro do outro, e beijos cada vez mais intencionais à despedida, sabendo que essa despedida não implicava necessariamente que iam dormir. Iam antes ouvir cantar os galos, recolher aos respectivos quartos, tomar um grande duche, apreciar bem o primeiro de imensos cafés, mudar de roupa, descer à sala, e saborear as delícias do pequeno-almoço quando trancavam os olhares no primeiro sorriso com o primeiro aceno do dia, porque logo a seguir iam trabalhar. Maria Alice recorda-se agora, com maravilhosa clareza, de que nenhum deles se sentiu cansado durante toda a semana. Porque – enfim, conceda-se – quem é que vai experimentar cansaço durante uma semana inteira do que só pode ser – deveras – o mais delicioso cortejamento que há?
A esposa de Manuel José, que estará ausente durante todo o Verão, respira fundo outra vez.
Está a respirar fundo cada vez mais vezes.
Relê esta segunda mensagem de contido alvoroço depois de ter escrito ao gajo uma nota breve, ainda muito calma mas já irresistivelmente cheia de esperança, a devolver a primeira mensagem dele. Aquela tal mensagem em que Alexandre de Noronha vinha obviamente sondar as águas, mas que já era em si mesma tão bonita, tão longa, tão bem escrita – malditos travessões – tão caída em desuso – enfim – e talvez isto explique o trompe l’oeil de parecer apaixonada – mas é verdade, é uma carta tão digamos que enfática que – bom, que – que parece mesmo uma carta de amor.
Nessa primeira e rutilante[6] carta[7], o gajo diz que a conheceu há uns bons vinte anos na Cidade da Praia, que fez tudo para conseguir sentar-se ao lado dela ao jantar e acabou a subornar o Secretário de Estado do Livro e das Bibliotecas de Cabo-Verde que sacudiu a cabeça com um sorriso matreiro e sussurrou, brandamente,
“Nha crecheu…”
Logo no primeiro trocar de palavras, e a propósito dos piratas, e do Francis Drake, e de outras histórias de reis e de rainhas, gabou-lhe o porte majestoso, piscou-lhe o olho e chamou-lhe Bloody Mary. Perante a sua surpresa, prometeu-lhe que explicava depois. A coisa estremeceu quando ela lhe pediu um cigarro, porque ele estava exactamente nessa altura a deixar de fumar. Levantou-se para ir comprar cigarros dentro do restaurante, a compra foi demorada como tudo era então demorado em Cabo Verde, e quando voltou já todos os conferencistas tinham partido para a discoteca ao ar livre onde nessa noite tocavam OS TUBARÕES. À primeira coladera, quando ele ia tentar a sua sorte, veio de lá um crioulo de olhos verdes, todo matulão e bem-parecido, que a arrebatou consigo e pareceu não querer mais largá-la – mas ele começou a perceber, pelos olhares penetrantes que ela lhe ia lançando, que a sua Bloody Mary dançava só para si.
E que bem que dançava, Santo Deus.
Todos a queriam por par, mas era só para Alexandre que ela sorria.
Até que, para total assombro dos canadianos, chegou a Cesária Évora – enorme, descalça, de cerveja na mão, sem precisar de microfone. E, logo à primeira morna, foi a sua Bloody Mary quem veio buscá-lo e o arrastou para dentro do terreiro.
Eu sei que passou imenso tempo, remata Alexandre de Noronha na sua primeira mensagem.
Talvez ela tenha esquecido tudo – mas ele nunca esqueceu nada.
E acrescenta, como que com pudor, que está a escrever-lhe porque, talvez, agora que se divorciou…
… bem, é evidente que ela não vai nem ler – quanto mais responder; mas foi bem escrever-lhe, e lembrar-se[8], adeus.
Leia também o Episódio 1, o Episódio 2 e o Episódio 3 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia
[1] A JUC era a Juventude Universitária Católica, onde se percebe que este gajo pontificou em tempos idos. E as suas “lutas” eram então “redentoras” porque, sendo anteriores ao 25 de Abril, propunham um modelo de sociedade pacífica e equalitária não totalmente grata ao Regime. Ah, sim – Maria Alice, que entretanto esqueceu tudo, agora lembra-se como se fosse ontem.
[2] Este gajo compõe um estilo. Ninguém o obriga a ter – também – um bom gosto à prova de tudo que possa fazer dele – deveras – um grande escritor.
[3] Já percebeu que andar descalça estimula quem a rodeia. Além disso, os seus pés merecem muito descanso, dado que andam sempre na rua em saltos altos.
[4] “de Noronha”? Credo, deve ter anel de brazão e tudo, para isso já me bastou o outro, o Conde.
[5] “Noronha, era? Bem, naquela altura ainda ninguém em Portugal tinha apelido, e os canadianos muito menos.”
[6] Determinante adequava-se melhor ao sentido, mas rutilante adequa-se muito melhor ao momento; aliás ao mútuo momento, uma vez que Maria Alice responde, mas quem começou foi o gajo.
[7] Ficou estabelecido, por muito que ainda não mutuamente mencionado: não era uma mensagem, era uma carta.
[8] Subtraímos os travessões, mas nota-se que o gajo ainda precisa de marcar os seus lugares para conseguir expressar-se.