Foi, finalmente, publicada uma nova Lei da Saúde Mental.
Apesar de toda a fragilidade do texto, que fica longe de resolver uma situação degradante, de imediato surgiram as mais diferenciadas reacções.
O que é surpreendente já que, se pensarmos por uns minutos, iremos concluir que o bom senso, e algum sentido humanitário, seria mais que suficiente para uma concordância generalizada sobre o modo de encarar o problema dos doentes mentais acusados de cometerem crimes.
Se um cidadão prevarica terá que, obviamente, ser levado a Tribunal.
Caso haja a suspeita de que, por doença mental, não é responsável pelo seu acto, os juízes, depois de consultados os peritos médicos, deverão determinar se é imputável ou inimputável.
Por outras palavras, se tinha, ou não, a faculdade de perceber a gravidade do delito que cometera.
Se o Tribunal concluir que é imputável, ou seja, que tinha perfeita consciência do seu crime, deve condená-lo e enviá-lo, em cumprimento de pena, para o Estabelecimento Prisional mais apropriado.
Se, pelo contrário, o considerar inimputável, concluindo que o crime foi cometido sem que o cidadão tivesse consciência do seu acto, deve entregá-lo, de imediato, aos cuidados médicos de modo a que possa ser internado num Hospital apropriado à sua doença.
A partir desse momento só os médicos devem ser responsáveis pelo futuro do doente.
A explicação é simples: se for imputável deverá ser considerado criminoso, se for inimputável deve ser considerado doente.
E o lugar de internamento de doentes deverá ser um hospital (nestes casos um hospital psiquiátrico) e não uma cadeia.
Até porque, em casos de extrema gravidade, ele poderá continuar internado, em ambiente hospitalar, rodeado de enfermeiros e médicos que lhe poderão garantir a dignidade e os cuidados devidos a todos os cidadãos, até ser considerado curado.
Mesmo que isso signifique até ao fim da sua vida.
Só desse modo a Sociedade ficará salvaguardada de alguém perigoso.
Algo impossível de acontecer se optarem pela reclusão já que não poderá, neste caso, ultrapassar a pena máxima de vinte e cinco anos, que a Lei estipula, devendo ser libertado ao fim desse período, independentemente do perigo que a sua libertação possa causar, quer para os outros cidadãos quer para ele próprio, já que pode ser vítima de alguém que se defenda das suas investidas, de modo mais agressivo.
A solução lógica, portanto, é que o autor de um qualquer crime, por grave que seja, sendo imputável deva ficar sob a responsabilidade dos Tribunais mas, sendo inimputável, deverá passar, de imediato, para a responsabilidade do Ministério da Saúde.
Prender alguém pelo “crime” de ser doente é que é contra tudo o que um Estado Democrático pode aceitar.
No entanto, o que acontecia e a Lei agora aprovada mantém, era a hipótese de um inimputável ficar “internado” numa cadeia.
A única alteração, com as novas regras, é o facto de não poder continuar em reclusão depois de terminar o tempo da sua pena e até ser considerado curado.
Desde logo porque não se percebia porque é que teria de ser um Magistrado a decidir se um Inimputável poderia ser considerado curado, ao ponto de reintegrar a Sociedade, ou não.
Até agora o documento que tornava isso possível era um mandato de libertação assinado por um Juiz.
Parece óbvio que essa decisão deveria ser um documento de alta, assinada por médicos, e sob a responsabilidade única destes.
Argumentam, alguns, que o Juiz, antes de decidir, ouvia peritos médicos.
Porém, das duas um: ou o parecer dos médicos era vinculativo, e então não se percebe o papel do Juiz já que, neste caso, teria de obedecer aqueles, ou era simplesmente consultivo, e então há que perceber porque é que a opinião do Juiz, num caso de saúde, podia ser mais determinante do que a dos médicos.
Esta Lei, que anula a hipótese de prisão perpétua para reclusos doentes, vai permitir, contudo, que as nossas cadeias continuem a ter, nas suas celas, dezenas de doentes, inimputáveis.
Embora, a partir de agora, não se possa prolongar o tempo de prisão a que tiverem sido condenados em julgamento.
E aí a questão torna a colocar-se: se o condenado era inimputável, nos momentos do crime e em que foi julgado, como pode ser possível que haja uma qualquer condenação?
Logo, não seria este o momento certo para a Lei obrigar à transferência de todos estes cidadãos para hospitais psiquiátricos, passando a ficar exclusivamente sob a dependência do Ministério da Saúde e não de Tribunais?
A realidade é que os reclusos são os cidadãos mais excluídos da nossa sociedade e que os inimputáveis são os mais desprotegidos entre aqueles.
Uma tristeza.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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