EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Bordalo II, o bordel dos ajustes directos e o papel do Estado no apoio à Arte

a woman sitting on top of a stone statue

por Pedro Almeida Vieira // Julho 30, 2023


Categoria: Opinião

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Na passada sexta-feira, a pretexto do protesto de Bordalo II no altar da Jornada Mundial da Juventude, o PÁGINA UM decidiu analisar com melhor detalhe o desempenho deste artista no fascinante mundo das adjudicações por ajuste directo de artistas. O tema, aliás, já tinha sido abordado, de forma mais superficial, num artigo aquando da polémica da escultura em homenagem a António Guterres pela autarquia de Vizela. Nessa altura, em Março passado, consultando o Portal Base, constatámos a existência de contratos por ajuste directos associados a esculturas na ordem dos 1,3 milhões de euros por todo o país.

Bem sei que Bordalo II tem uma legião de fãs, e que a sua intervenção de protesto lhe granjeou elogios da imprensa e dos seus admiradores. E, por isso, como reacção ao artigo do PÁGINA UM sobre os 27 contratos por ajuste directos e uma facturação de 3,4 milhões de euros no último triénio, choveram algumas críticas ao nosso trabalho. São bem-vindas, mas falharam o alvo. O objectivo foi destacar sobretudo a questão sensível dos ajustes directos e como podem minar a própria credibilidade e independência de um artista, quando esta é uma forma sistemática de financiamento.

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Mas para falar deste tema recuemos para o ano de 2019 e para um caso paradigmático. Nesse ano, a autarquia da Póvoa do Varzim decidiu adjudicar a Siza Vieira por 550.000 euros o projecto de arquitectura do Fórum Cultural Eça de Queirós. Tudo por ajuste directo, claro. Mas o Tribunal de Contas, após uma legítima queixa, decidiu considerar nulo esse contrato, obrigando o município a abrir um concurso público.

Ninguém, em seu perfeito juízo, põe em causa o talento de Siza Vieira – que além-fronteiras expande o nome de Portugal na Arte da Arquitectura –, mas também ninguém deveria duvidar sobre qual papel do Estado e da Administração Pública. Na Arte, presumo, não será por certo aquilo que a Câmara Municipal desejava.

Nunca se deveria confundir preferências circunstanciais de responsáveis políticos e da Administração Pública com as funções do Estado na gestão de dinheiros públicos, sobretudo no que respeita à Arte, e ainda mais em relação à Arte não-efémera. Os apoios à Arte e aos artistas jamais deveriam privilegiar alguém em particular, independentemente do seu valor intrínseco ou potencial. O Estado ao apoiar quase em exclusivo alguém que já é bom, através de ajustes directos, está a desapoiar em simultâneo alguém que poderia também ser bom, ou até melhor.

a woman sitting on top of a stone statue

Pode-se dizer que os artistas “famosos” já não precisam do Estado para nada; e que, por vezes, é o contrário; quantas vezes não vemos políticos colarem-se e desejarem ver os artistas colarem-se à sua ideologia e às suas campanhas eleitoriais. Pelam-se por isso. E sabemos também que há artistas que aceitam as contínuas benesses do Estado, acabando por se tornarem reféns (por vezes com fama e proveito) de uma concepção de “Arte do Regime”. Mas aí, terminado o efeito, será a própria qualidade das suas Artes que, mais tarde ou mais cedo (mesmo depois das suas existências), será posta em causa. Será que era bom ou foi bom por causa dos amparos políticos? – eis a magna questão.

Voltemos ainda ao caso de Siza Vieira, para depois seguirmos para Bordalo II. Como então bem se escreveu em 2019 no acórdão do Tribunal de Contas, na base da ilegalidade do ajuste directo em benefício ao mais famoso arquitecto português vivo, para a concepção estética de um edifício público, não estava apenas uma questão de restrição da concorrência – o que não deve jamais suceder, ainda mais em Arte –, mas também “um outro efeito nefasto na fixação do preço base do procedimento, uma vez que este foi determinado ‘tout court’ pelo único concorrente convidado”. E isto, acrescentam os juízes, “é censurável por representar a total ausência de espírito crítico” da autarquia.

Na verdade, a Arte constitui um elemento vital da nossa identidade e da expressão cultural, que nos conecta, nos inspira e nos desafia a olhar o Mundo sob diferentes perspectivas. Por isso, a criatividade deve ser, assim, fomentada e encorajada para que novos talentos, que queiram quebrar barreiras, possam emergir e contribuir para a riqueza artística de um país. Daí o problema das escolhas imediatas e directas. Toda a Arte escolhida por uma entidade pública sem critérios, nem abertura absoluta a candidatos, não é Arte; é Frete.

woman in black pants and orange jacket standing beside wall with graffiti

Se há função mais fundamental de um Estado moderno e democrático na sua afirmação é no apoio à Arte – muito depois da força das Armas, porque esta, além de violenta, pertence a Governos que são efémeros. Ao longo dos séculos, os Estados (ou poderosos das Cortes) escolheram os seus ungidos, por vezes por inegável mérito, mas agora, em sociedades modernas, democráticas, exige-se mais do que deixar ao livre-arbítrio de responsáveis políticos ou de burocratas a escolha de quem deve receber apoios para a Arte, seja a Escultura, a Arquitectura ou a Literatura.

A prática de escolhas individuais e a imposição de uma linha estética pelo Estado ou por entidades públicas seguem caminhos perigosos, e não apenas pela parte financeira. A Arte é plural e multifacetada, reflecte a diversidade da nossa sociedade – e, portanto, impor uma estética de regime restringe a liberdade criativa e sufoca outras vozes artísticas. Por isso, convenhamos, que ver um artista como Bordalo II – que deseja impor-se como uma voz dissidente e com concepções diferentes no uso de materiais como discurso estético e social – a beneficiar de 27 contratos por ajuste directo não se “ajusta” bem à sua mensagem. Não cola. Não há cola consistente para segurar as suas críticas ao sistema. Soam a falso.

Sempre se pode dizer que a disruptiva Arte de Bordalo II – como sucedeu com Joana Vasconcelos há uns anos, e como ocorre com alguns artistas mais “regionais”, que coleccionam esculturas encomendadas amiúde para provincianas rotundas – se diferencia e que se autonomizou. E que se valorizou muito acima dos apoios financeiros do Estado e entes públicos. Pode mesmo defender-se, no caso concreto de Bordalo II, que, vendo a evolução da facturação da sua Mundofrenético, ele não precisaria dos contratos por ajuste directo para singrar. Pura falácia.

Os 27 contratos por ajuste directo – obtidos todos sem concorrência – consagraram-no e constituíram um cartão-de-visita para encomendas privadas. Quantos mais artistas plásticos da sua escola conseguem ostentar tamanho portfolio público financiado com dinheiros públicos? Os contratos por ajuste directo continuam, para ele, a ser um excelente portfólio.

Mas, dir-se-á também, em sua defesa, que se não houvesse qualidade, não haveria privados que lhe pegassem e pagassem – e, portanto, não estaria ele a facturar agora mais de um milhão de euros por ano. Concedo, mas tenho outra pergunta, então: quantos outros Bordalos, daqueles que poderiam mostrar-se, mostrar a sua Arte, não conseguiram o seu milhão em encomendas privadas apenas porque, podendo haver 27 concursos públicos, se optou sempre por ajustes directos em benefício exclusivo do Bordalo II?   

Os contratos por ajuste directo, quaisquer que sejam, deviam ser uma excepção. Ainda mais na Arte, cuja concepção deve ter em conta a estética. Não se compreende assim como uma concentração de recursos e de favorecimentos em contratos por ajuste direto possam garantir que todos os artistas, independentemente de sua origem ou conexões, tenham espaço para se expressar e criar.

empty tunnel pathway with graffiti walls

Um Estado moderno e democrático, na sua função de promoção da Arte e dos artistas, deveria “apenas”, e já é muito, defender e praticar o apoio à diversidade, sem limites de participação, sem agendas ideológicas, sem possibilidades sequer de beneficiar quem lança tapetes críticos num altar ou prejudicar alguém que lança tapetes críticos num altar. E isso conseguir-se-ia somente com a obrigatoriedade de concursos públicos, sem contratos por ajuste directo. E até para benefício dos próprios artistas, como Bordalo II.

Mas isto sou eu, que tenho uma costela esteta, a falar, que consideraria mais enriquecedor perder alguns 27 contratos por causa da “concorrência” do que ganhá-los todos por falta de comparência imposta pelo “árbitro”, ou seja, pelo Estado e entes públicos que assim procedem quando decidem afastar a “concorrência”.

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