A
CARTAS DE AMOR
Em Julho e Agosto de 2023
Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Em Estremoz há centenas de variações sobre o tema,
Pelo que vão todos para a esplanada da Casa das Bifanas à hora mais quente do dia,
Comparar fantasias em altos berros,
E rir tanto, tanto, tanto, que o Júnior acaba por sair dali a correr para ir chamar os bombeiros,
Enquanto o pessoal se enfrasca ininterruptamente num Dilúvio enorme e gelado de imperiais, tulipas, canecas, umas pretas, outras brancas, e algumas até de garrafa média e mini adversa ao uso do copo,
Sendo que, além das bifanas, toda a gente deita abaixo queijos, azeitonas, tremoços, fatias grossas de pão caseiro com manteiga, falando e rindo cada vez mais alto,
E ficando, inevitavelmente, cada vez mais suado.
“Com que então daí a um mês ias casar-te com o nosso cabo dos forcados, e no entretanto passaste uma semana inteira a dançar coladeras com os cabo-verdeanos, hm, Maria Alice? Deixe estar que a menina é fresca. Eheheh, ó minha rica filha. Quem não te conheça que te compre.”
“Com esta mulher é que nunca haverá dúvida de que ela se casou mesmo por amor, então, ó Carrapato. Por interesse podes crer que não foi de certeza. É que interesse… Deus me livre, meus amigos… interesse é que o Tozé do Estevinha[1] não tem nenhum!”
“Eh, pessoal! Embora atirar a mulher do gordo sem interesse nenhum para dentro daquele lago da pedreira?”
Maria Alice, novamente com os cabelos ondulados soltos ao longo das costas, presos atrás das orelhas com travessas de madrepérola para se verem bem os piercings arrojados que foi fazer na antevéspera ao artista local, que não lhe levou nada em troca de ela lhe prometer passar a ser o seu modelo, está com o ar saudável das pessoas bronzeadas pelos ares do campo. Tem os olhos brilhantes como dois duplicados perfeitos daquele sol escaldante do meio-dia. Veste um topzinho mínimo de licra, a combinar com uns shortinhos de ganga vermelha apertados sobre as ancas, deixando ver bem a tatuagem do umbigo, onde o Pégaso voa cada vez mais alto no céu e Pheidippides vem a correr no caminho para Atenas, onde anunciará aos gregos a sua grande vitória sobre os persas na batalha acabada de travar na praia de Maratona.
E não morrerá, mas a invenção dos mitos não vem agora ao caso.
O que vem ao caso é notar que, em apenas um mês, Maria Alice e o seu Júnior já ganharam um tal ascendente sobre as pessoas de Estremoz que basta ela sorrir, endireitar-se na cadeira, acender um cigarro e chegar-se para a frente. Calam-se logo todos. A Mulher-Maravilha vai falar.
“Vocês só podem estar a gozar comigo, certo?” interpela-os ela com a tal pose majestática que fez o Alexandre Aristocrata chamar-lhe Bloody Mary, já lá vão mais de vinte anos. “Que eu me lembre, foi só eu falar do sonho que tive esta noite, em que o avião onde ia o meu gajo se descontrolava e depois explodia sem deixar sobreviventes quando estava a tentar aterrar na Polónia. Oh. Vocês desculpem, mas falar-vos deste meu sonho foi um autêntico tiro no porta-aviões. Começou logo toda a gente a falar dos seus sonhos em que ninguém tem a culpa de nada mas a verdade é que o companheiro morre num desastre, e é a coisa mais linda que há, liberdade, ah, liberdade! E agora atiram-me só a mim ao lago da pedreira? Peço muita desculpa, mas se o castigo pelos nossos sonhos com este género de acidentes é o lago da pedreira, então toda a gente tira a roupinha, toda a gente bebe uns copos, toda a gente fuma umas ganzas, e toda a gente, mas é que mesmo toda a gente que aqui está, salta para dentro do lago da pedreira!”
Esta proposta de programa levanta uma ovação trepidante de gritos, risos, e aplausos, ao mesmo tempo que toda a gente desata a pedir mojitos, caipirinhas, vodkas com campari[2], campari com sumo de laranja natural[3], margaritas, e muitos pratinhos de camarão cozido para acompanhar. Armou-se ali uma tal festa que nem os bombeiros que o cão foi buscar têm pressa de voltar à base, nem os automobilistas que passam resistem a buzinar com todo o ardor. Júnior esqueceu momentâneamente a sua dignidade de Leão de Rodésia e anda de mesa em mesa a sentar-se, a dar a pata, e fazer uns chorinhos amorosos, para ver se, em troca, ganha pelo menos uma cabeça de camarão. E ganha várias.
Entretanto, Maria Alice pediu a um dos meninos bonitos que se afadigam entre a massa festiva, sempre de camisa branca impecável e de costas muito direitas, um copo de Loios branco gelado. Em sinal da sua deferência, o propietário veio trazer-lhe uma meia garrafa que só abre mesmo à sua frente, rodeia com um guardanapo branco, e serve em gestos requintados para encher metade do copo elegante que trouxe para a mesa. É esguio, de pé alto, com o vidro animado por algumas bolhas irregulares, colorido em tons de azul debotado e rosa velho. Depois coloca a garrafa dentro de um balde transbordante de gelo e feito de um vidro veneziano exactamente igual ao copo nas cores e na textura. Classe.
Logo ao primeiro golo, Maria Alice dá-se conta de que o dono da Casa das Bifanas não lhe trouxe o Loios que ela pediu. Trouxe-lhe antes o seu grande favorito entre todos os grandes vinhos de Estremoz, uma preciosidade dificílima de encontrar e obviamente muito mais cara que o Loios, chamada Amnésia. Um daqueles prodígios de hidromel que nos fazem acreditar imediatamente que é óbvio que Deus existe, mesmo que anteriormente tivéssemos por algum caso[4] chegado ao ponto de perder a fé.
“Ó Princesa, mas para tomar banho na pedreira temos mesmo que estar nuas? Com estes gajos todos a ver?”
“Sim! Toda a gente nua! Queremos ver tudo aquilo a que temos direito!”
“Ó Mariazinha, mas eu já tive três filhos, e ainda por cima um foi de cesariana que deixa uma cicatriz enorme, e pior ainda, amamentei-os eu a todos até já não ter leite. Não tenho propriamente assim um corpo…”
“Tens! Queremos ver o teu corpo! Queremos ver a realidade! A pedreira não é nenhuma passagem de modelos! Ou toda a gente se despe ou não vamos!”
“Ai eu cá não sei se vou.”
“Então não vai ninguém!”
“E quem é que leva o vinho?”
“Toda a gente! E umas fatias de pata-negra! E uns figos! E umas nozes! Não interessa! É o que houver, mais muito vinho!”
“Então e os charros?”
“Da ganza trato eu,” diz Maria Alice calmamente, na sua voz bem timbrada, capaz de se fazer ouvir acima de todas as outras sem qualquer esforço.
Faz-se logo um grande silêncio.
A maioria dos foliões esteve até àquele momento convencida de que os charros não passavam de uma figura de estilo. Em Estremoz, as grandes bebedeiras são absolutamente normais. Já as grandes mocas…
A mulher de António José tira uma caixinha de metal antigo de dentro do saco[5]. Abre a caixinha, e tira um charro lá de dentro. Faz estalar o cinzeiro, acende-o, dá-lhe uma passa, e entrega-o à amiga sentada do seu lado esquerdo. Sempre sem dizer nada, tira outro charro da caixinha, acende-o com outro estalo do isqueiro[6], e passa-o ao homenzarrão sentado do seu lado direito. Finalmente, com um último estalo do cinzeiro, acende um charro para si, e todo o material de fabrico desaparece de novo dentro do saco.
“Escusam de perguntar,” diz-lhes ela docemente. “Eu nunca direi uma palavra a este respeito. Tenho que proteger a minha fonte.”
Das mesas à sua volta começam a soltar-se gargalhadinhas cúmplices, e de repente está toda a gente a pedir aos meninos bonitos que lhes tragam o menú, porque, embora já sejam quatro da tarde, de repente estão a morrer de fome e querem almoçar ali assim mesmo de garfo e faca – umas boas plumas de porco preto com migas de alho, um bom Tiago Cabaço Tinto, um bom pudim de ovos, vários cafés com um copo de Aguardente Velha ao lado.
Depois hão de fazer uma boa sesta.
Depois, por fim, há de cair a noite.
Quando o sino da torre da Igreja da São Francisco, que se ouve em quase toda a cidade, anunciar a meia-noite, vão meter-se nos carros, dar boleia uns aos outros, e rumar ao caminho de terra quase invisível, quase secreto, que serpenteia entre pastagens e blocos gigantescos de mármore, até chegar ao cercado que tem três sobreiros muito antigos junto ao portão. Esse portão força-se facilmente, assim como o terreno, onde já nem sequer há caminho, também se percorre facilmente. Ao fim de dez minutos aparecem os afloramentos enormes de granito de uma exploração que ficou a meio. Inverno após Inverno, acumulou-se tanta água na bacia central que se formou ali uma verdadeira piscina. Já quase não há Lua. O céu cintila a toda a volta de estrelas enormes e mapas de poeira cósmica.
“No Canadá e nos Estados Unidos chama-se a isto skinny dipping,” diz Maria Alice enquanto vai passando à volta mais uns quantos charros. “No Verão, eu, e duas amigas, e um técnico do meu departamento muito porreirinho, íamos para uma cascata na encosta da montanha por trás das nossas casas… aquele calor todo, nem uma aragem… e depois aquela água gelada, mesmo contra a nossa pele… não houve assim muitas coisas boas na minha vida no Québèc, mas esses banhos de noite, na cascata, todos nus, pedrados, sem pressa…”
Alguém a interrompe, já de copo de vinho na mão.
“Então mas ias pôr-te nua à frente de outro gajo… e deixavas o teu marido em casa?”
Maria Alice nem responde. Num ímpeto de raiva, despe a túnica, liberta-se dos calções, e mergulha de cabeça para dentro do lago da pedreira. Fecha os olhos, deixa-se flutuar, e começa logo a sentir-se melhor.
Inspirados pelo seu exemplo, os outros também estão agora a tirar a roupa e a saltar para dentro do lago, a gargalhar, a sorrir, a trocar beijos imprevistos, a explorar a pele uns dos outros, a experimentar a felicidade.
Maria Alice mal dá por eles. Tudo nela partiu para muito longe. Está a antever a semana do fim de Setembro em que Alexandre virá visitá-la, e em que ela, sem deixar escapar qualquer aviso, há de trazer algum pata-negra, uma boa garrafa de Amnésia tinto, uns quantos charros prontos a acender com o zippo que já mais ninguém tem, mostrar-lhe a piscina da pedreira durante a noite, despir a roupa toda sem dizer nada, mergulhar em grande estilo, e esperar por ele dentro de água, com um sorriso matreiro e convidativo.
Imagina tudo o que poderão fazer juntos quando, por fim, ele se encher de brios e vier ter com ela àquelas águas doces e tépidas, cheias de Cálcio e outros minerais revigorantes. E como o tempo deixará de passar para que possam os dois fruir de prazeres sem fim enquanto o Júnior dorme sobre as rochas, plácido, satisfeito, ele próprio entregue a sonhos felizes porque nunca antes tinha visto a sua dona tão feliz.
E será assim até cantarem os galos.
Daí a uma hora, tomado o duche, saboreado o pequeno-almoço, gozada a luz cambiante do nascer do dia e sentido de novo aquele encanto especial de testemunhar o primeiro voo das andorinhas, adormecerão muito abraçados debaixo do conforto do lençol e da mantinha, até que a Josefa entreabra a porta do quarto, toda sorridente, para lhe perguntar o que vai ser para o almoço.
“Sobraram algumas daquelas gambas fritas que tu fizeste ontem?”, sussurra Alexandre do fundo do sono.
Não pode ser.
Que conversa é esta da visita dele durante uma semana no fim de Setembro?
Que estupidez, nenhum deles falou ao outro de nenhuma visita.
Ai, foda-se.
“Pessoal, vocês desculpem mas eu ainda tenho que trabalhar esta noite. Eu e o Júnior vamos andando, OK? Vocês esperem que cantem os galos. E façam-me o favor de serem muito felizes.”
“Tu também, Princesa.”
Maria Alice já tinha trepado de laje em laje até ao cimo da piscina. De repente parou, virou-se de novo para os foliões, olhou-os a todos com demora, e sentou-se na pedra.
“Queridos Amigos, eu posso pedir-vos um favor? Um verdadeiro favor, que para mim é extremamente importante?”
“Sim!”, gritou, lá de baixo, o coro dos foliões.
“Então, por favor, não me tratem por Mariazinha, nem por Alicinha. Isso podia ser qualquer pessoa. E também não me tratem por Princesa, porque isso é mesmo foleiro. Faz-me lembrar o ADEUS, PRINCESA, aquele romance de não sei quem que saiu quando eu era miúda, e era sobre os dramas das miúdas da minha idade aqui no Alentejo, e aquilo era horrível, e a miúda que era a princesa desse romance era uma autêntica desgraçada. Posso ser uma rainha, em vez de ser uma Princesa?”
“Podes!”, gritou o coro numa grande animação.
“Então chamem-me Bloody Mary. Era a alcunha da Maria Tudor de Inglaterra, porque ela mandou matar centenas de milhar de pessoas inocentes do seu país apenas porque elas não queriam converter-se ao catolicismo. Mas sabem, isto é muito importante: esta mulher, com mais ou menos defeitos, foi a primeira rainha de Inglaterra!”
“Olha as coisas que tu sabes,” comentou uma voz avinhada.
“Foi um namorado que eu tive antes do António José que me contou isto tudo. Era historiador. E sabem, ele foi, verdadeiramente, o grande amor da minha vida. Destacaram-no para Timor, e então tornou-se tudo impossível. Nunca mais o vi. Mas tenho saudades dele todos os dias.”
Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3 e o Episódio 4 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia
[1] Indica que Tozé (note-se que só os homens ousam contrair assim o seu majestático “António José”) é filho de um senhor que tinha por apelido, ou mais provavelmente por alcunha, “O Estevinha”. É uma forma discreta de os seus antigos colegas de escola se distanciarem dele, porque se estivessem todos completamente à vontade guiariam antes o indicativo parental pelo nome da mãe, como por exemplo, “o Tozé da dos barros
[2] Cocktail introduzido em Estremoz pelos hábitos canadianos de Maria Alice.
[3] Idem. Sublinhe-se que, nesta variação, o sumo de laranja tem mesmo que ser natural. Quem detesta bebidas doces com toda a sua alma pode sempre usar antes sumo de toranja. E, em ambos os casos, muito gelo.
[4] “Por algum caso” é outra expressão local, especialmente saborosa quando usada em situações de discórdia. “Mas tu julgas que eu sou tua criada, por algum caso?”. Funciona mesmo bem.
[5] A tampa tem uma gravura em alto-relevo da deusa Diana perseguindo um veado, e a cruzar um dos cantos está inscrita uma marca de rapé. Seria impossível guardar ali cigarros. Classe.
[6] Repara-se agora que este isqueiro é um autêntico zippo vintage, muito lustroso e perfeitamente funcional. Classe.