Só desde Julho foram realizados 106 contratos públicos urgentes para a realização da Jornada Mundial da Juventude. Praticamente tudo por ajuste directo, muitos sem redução a escrito. Neste forrobodó sem controlo – em cada 10 contratos, há nove sem concorrência ou esta é muito limitada – encontra-se de tudo um pouco. A conta conhecida, através do Portal Base, em contratos que fazem referência ao evento da Igreja Católica já superou os 35 milhões, mas deve subir nas próximas semanas. O PÁGINA UM faz o raio-X, por agora possível, do apoio público de um Estado laico à Igreja Católica, e onde se vislumbram muitos pecados e pecadilhos. Se Deus não dorme – e será porventura o único que sabe como foram congeminados muitos destes contratos –, veremos nos próximos tempos se o Tribunal de Contas anda ou não a dormir.
Uma chuva de contratos sobretudo a partir de Julho, e quase todos por ajuste directo, estão a fazer elevar a factura pública da Jornada Mundial da Juventude. A conta já vai em 35.497.562 euros, mas continuam a chegar nas últimas semanas dezenas de contratos de última hora, sobretudo para pequenas (mas por vezes bastante onerosas) obras, gastos logísticos e acções de promoção.
De acordo com um exaustivo levantamento do PÁGINA UM aos contratos públicos – ou seja, sem contabilizar os gastos da Igreja Católica –, até agora as facturas destas despesas públicas – pagas, na verdade, pelos contribuintes – foram canalizadas, para efeitos de pagamento, para o município de Lisboa – quase 17,2 milhões de euros, que inclui também as despesas da sociedade de reabilitação Lisboa Ocidental e a EGEAC –, para o Governo e instituições da Administração Pública – 10,4 milhões de euros, sobretudo por despesas arcadas pelo orçamento da Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros –, para o município de Loures (quase 5,2 milhões de euros) e para o município de Oeiras (2,1 milhões de euros).
Muito mais atrás, mas com valores ainda relevantes, encontram-se os municípios de Almada (252 mil euros) e de Cascais (210 mil euros). Contabilizando todos os contratos declaradamente associados à Jornada, encontram-se 19 entidades, incluindo alguns municípios geograficamente afastados da Grande Lisboa (ou de Fátima), mas que quiseram dar apoio aos peregrinos, como foram os casos das autarquias de Vila do Conde, Felgueiras e Resende.
Embora ainda estejam a faltar, por certo, muitos contratos de última hora, o PÁGINA UM já conseguiu identificar, desde 2021, um total de 175 adjudicações relacionadas com os eventos que trouxeram o Papa Francisco e uma multidão de jovens a Portugal durante esta semana. E se até ao final do ano passado grande parte das despesas se referiam a empreitadas de obras públicas – que já totalizam 16,9 milhões de euros –, nos últimos meses os contratos para aquisição ou locação de bens móveis e de prestação de serviços começaram a prevalecer, e são agora largamente maioritários, quer em número, quer em valor.
Apesar da decisão de se realizar a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa ter sido tomada pela Igreja Católica em 27 de Janeiro de 2019 – e que se deveria realizar inicialmente em 2022, mas foi adiada por causa da pandemia –, só uma pequena parte dos gastos até agora apurados se realizaram antes do presente ano.
De acordo com os dados do Portal Base, das 175 adjudicações, apenas duas foram estabelecidas ainda em 2021 e mais 14 ao longo de 2022. Mesmo as 159 adjudicações realizadas este ano concentraram-se sobretudo a partir de Maio: 18 nesse mês, mais 19 em Junho e 101 em Julho. Até em Agosto foram assumidos contratos, quando já decorria a Jornada. Contam-se já cinco.
As adjudicações mais antigas, e mais caras, estão sobretudo relacionadas com obras públicas, mas nem todas as de maior dimensão são anteriores ao presente ano. De entre os sete contratos com valor superior a um milhão, cinco foram assinados este ano. Os restantes dois foram assinados em Abril e em Dezembro de 2022: o primeiro para a reabilitação do aterro sanitário de Beirolas no Parque Tejo-Trancão, com um valor de quase 7 milhões de euros, entregue à empresa Oliveiras S.A. por concurso limitado por prévia qualificação; o segundo para a empreitada de execução da cobertura do altar-palco, com um custo de 1,06 milhões de euros, entregue à mesma empresa mas já por ajuste directo. Ambas eram da responsabilidade da empresa municipal Lisboa Ocidental.
Se isto se deveu a falta de planeamento, uma coisa é certa: facilitou a vida aos gestores públicos, porque a norma passou a ser, pela urgência, o ajuste directo a empresas que, enfim, ninguém sabe bem como e quais os critérios das escolhas.
Um dos contratos mais polémicos foi o da construção do altar-palco no Parque Tejo-Trancão, entregue inicialmente por ajuste directo à Mota Engil em Janeiro deste ano por 4,24 milhões de euros. O preço seria reajustado para os 2,98 milhões, mas independentemente disso ainda houve três contratos de valor superior, um dos quais também por ajuste directo.
De facto, além da recuperação dos terrenos do antigo aterro de Beirolas – que, na verdade, era uma lixeira, encerrada nos anos 90 por causa da Expo 98 –, no pódio das adjudicações mais caras encontra-se o fornecimento, montagem e operacionalização de sistemas de áudio e vídeo, iluminação ambiente, e respetivo abastecimento de energia, um contrato no valor de 5,96 milhões de euros à Pixel Light pela Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros por contrato público; e os trabalhos de preparação dos terrenos na zona ribeirinha da Bobadela à Alves Ribeiro, por um ajuste directo da autarquia de Loures no valor de quase 4,29 milhões de euros. Estes contratos foram assinados em Fevereiro e Março deste ano, respectivamente.
Se nos 12 contratos com valores acima de meio milhão de euros, os ajustes directos já são a maioria – oito contra três concursos públicos e um concurso limitado por prévia qualificação –, o desequilíbrio aumenta ainda mais em contratos de menor valor. Desequilibrado é uma força de expressão: por exemplo, dos 25 contratos que envolveram um custo para os contribuintes entre 100 mil e 500 mil euros, todos – repita-se, todos – foram por ajuste directo.
Encontrar um concurso público – ou seja, em que a concorrência é livre – nos contratos associados à Jornada Mundial da Juventude é quase como procurar agulha em palheiro: só há seis. Dos restantes 169, encontram-se 11 que tiveram consulta prévia – ou seja, são endereçados convites a empresas, geralmente três para que apresentem propostas –, uma por concurso limitado por prévia qualificação e, contas feitas, 157 por ajuste directo. Em suma, mais de 97% dos contratos não tiveram ou tiveram uma concorrência limitada. Numa parte substancial dos casos, muitos dos contratos por ajuste directo (que totalizam 90% das adjudicações) nem sequer foram reduzidos a escrito.
Em todo o caso, como alguns dos contratos de maior dimensão foram lançados por concurso público, o peso relativo dos contratos por ajuste ditecto em termos de montante desce para os 55,3% (cerca de 19,6 milhões de euros), ficando bem acima dos montantes despendidos para adjudicações por concurso público (23,7 milhões de euros, ou seja, 23,7% do total), por concurso limitado por prévia qualificação (7,0 milhões, ou seja, 19,7%) e por consulta prévia (448 mil euros, ou seja, 1,3%).
De entre as entidades com volumes de negócios mais apreciáveis no âmbito da Jornada Mundial da Juventude, há duas que se destacam por não quererem saber de burocracias para nada na hora de entregar dinheiros públicos: as autarquias de Almada e de Oeiras.
A primeira, presidida pela socialista Inês Medeiros, fez nove contratos por ajuste directo no valor total de quase 252 mil euros. A segunda autarquia, liderada por Isaltino Morais, ainda usou mais vezes e com maiores encargos públicos este expediente: foram 14 contratos por ajuste directo que totalizam, para já, cerca de 1,45 milhões de euros. E diz-se “para já”, porque é provável que existam mais a serem publicados nos próximos dias no Portal Base, um vez que todos os contratos são muito recentes – o último é do dia 2 deste mês – e as entidades públicas têm, por regra, 20 dias para os publicitar. Se incluir o contrato da empresa municipal Parque Tejo, no valor de 650 mil euros, então contabilizam-se 15 contratos por ajuste directo que atingem 2,1 milhões de euros.
Outras entidades não conseguem o pleno em ajustes directos por muito pouco. É o caso do município de Loures: dos 21 contratos no âmbito da Jornada Mundial da Juventude, apenas houve dois que não foram por ajuste directo, que envolveram contratos da ordem dos 145 mil euros. Os outros 19 contratos totalizaram, por ajuste directo, cerca de 5 milhões de euros. Ou seja, mais de 97% do montante gasto foi em contratos por ajuste directo.
O município de Lisboa, liderado por Carlos Moedas, também adora ajustes directos. Directamente dos cofres municipais – exceptuando-se assim os gastos da Lisboa Ocidental e da EGEAC –, a autarquia da capital fez 23 contratos, e só um não foi por ajuste directo.
A excepção, merecedora de referência, foi o contrato com a empresa Estúdio Nave, assinado em Dezembro passado no montante de 29.450 euros para “aquisição da prestação de serviços para elaboração de projeto de desenvolvimento gráfico e maquetização, comunicação e city dressing para comunicação da Jornada”. Em todo o caso, a Estúdio Nave teve concorrência limitada: conseguiu a adjudicação por consulta prévia. Assim, globalmente, 97,6% dos gastos da autarquia da capital foram por ajuste directo.
No meio disto, a entidade com melhor comportamento, mas apenas na aparência, acabou por ser a Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, responsável por 32 contratos no âmbito da Jornada Mundial da Juventude. Se olharmos para o volume de negócios, verifica-se que dos 10,3 milhões de euros gastos, apenas 1,9 milhões (18%) foram por ajuste directo, sendo que os restantes 8,9 milhões de euros foram em adjudicações por concurso público.
Mas este segundo montante refere-se apenas três contratos de maior montante – o já referido da Pixel Light (quase 6 milhões de euros) e dois relacionados com saneamento e higiene, envolvendo o Grupo Vendap (quase 1,29 milhões de euros) e a Avistacidade (1,15 milhões de euros). De resto, todos os de valor inferior foram por ajuste directo, mesmo cinco com montantes entre 100 mil e 500 mil euros, onde se destaca uma obra feita pela empresa Oliveiras.
Aliás, esta empresa da Batalha foi, na análise feita pelo PÁGINA UM, que elencamos, a mais beneficiada pela Jornada Mundial da Juventude: os quatro contratos – três por ajuste directo e um por concurso limitado por prévia qualificação – concederam-lhe uma facturação de quase 8.589.654 euros.
O pódio é ainda ocupado pela Pixel Light, com 5.962.300 euros, e pela empresa de construção Alves Ribeiro, com 4.379.844 euros. Com contratos a superarem um milhão de euros encontram-se ainda a Mota Engil (2,98 milhões de euros), o Grupo Vendap (quase 1,4 milhões de euros) e a Avistacidade.
Acima dos 500 mil euros encontram-se mais cinco empresas: Everything is New (684.500 euros), Unikonstrói (649.510 euros), Engexpor (627.200 euros), Irmarfer (596.000 euros) e Sinalcabo (542.272 euros). Por sinal, todas conseguiram o respectivo contrato sem concorrência: tudo por ajuste directo.
Com montantes acima dos 100 mil euros encontram-se mais 25 empresas, todas com contratos por ajuste directo. Entre os 50 mil e os 100 mil euros estão 22 empresas e um indivíduo, Gonçalo Sanches Salgueiro, um militante do CDS. Abaixo dos 50 mil euros encontram-se mais 84 empresas e indivíduos para a prestação e aquisição dos mais variados bens e serviços. Praticamente tudo por ajuste directo, incluindo até a aquisição de 106 cabos de madeira para esfregonas à Afonso Rodrigues Unipessoal por 121,9 euros pela autarquia de Almada. Remetendo expressamente para o âmbito da Jornada Mundial da Juventude, este foi um dos dois únicos contratos que constam no Portal Base com um montante inferior a 3.000 euros. Estes dois, enfim, justificadamente por ajuste directo.
Praticamente todos os contratos abaixo dos 50 mil euros foram por ajuste ditecto, entregue a pessoas conhecidas dos gestores públicos e autarcas. Na verdade, por concurso público, de entre os seis que se encontram, apenas três estão abaixo de um milhão de euros, e esses três foram todos ajudicados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, talvez para salvar a “honra do convento”.
Mas isso deveria colocar uma questão: se a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa decidiu abrir concurso público para adjudicações de pequeno montante – um de apenas 386 euros, outro de 3.500 euros e outro ainda de 7.345 euros –, com os contratos a serem assinados em 13 de Julho deste ano, então qual foi a necessidade de a esmagadora maioria das entidades públicas terem decidido quase invariavelmente por ajustes directos, ainda mais quando estavam em causa montantes muitíssimo superiores.
Para consultar a lista ordenada por montante dos beneficiados por contratos públicos, no âmbito da Jornada Mundial da Juventude publicados no Portal Base até 6 de Agosto de 2023, descarregue AQUI.