João Palmeiro, ex-presidente da Associação Portuguesa de Imprensa

Na imprensa ‘há gente a perder muito dinheiro’

por Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares // Agosto 9, 2023


Categoria: Entrevista P1

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Nome incontornável da História das últimas três décadas da Imprensa em Portugal, João Palmeiro conhece o sector da comunicação social como a palma das mãos. Em vésperas de deixar a presidência da Associação Portuguesa de Imprensa, que representa 200 empresas de comunicação social cerca de 450 publicações, concedeu uma entrevista de fundo ao PÁGINA UM. O seu vasto currículo e experiência nacional e internacional, onde se destaca a liderança do Fundo ‘Digital Innovation Media’ da Google, permitem-lhe um conhecimento ímpar das potencialidades mas também fragilidades de um sector em contínua crise. Nesta primeira parte da longa entrevista ao PÁGINA UM, no seu último mês como presidente da API, Palmeiro mostra um olhar crítico à regulação dos media, tanto em relação ao funcionamento da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como face ao previsto regulamento europeu para os media, que está a ser finalizado. Mas a transparência das empresas de media, e o seu financiamento, bem como a problemática das fake news são temas que também aborda, sem fugir a qualquer questão.


Numa associação de imprensa, que abrange tantos sectores e diferentes plataformas de várias dimensões, como se consegue conciliar este, chamemos-lhe assim, “saco de gatos”? Ou não estamos perante um “saco de gatos”?

Primeiro, este é um sector altamente regulado, e isso ajuda a responder a algumas das questões, reconhecendo que, de outra maneira, seria praticamente ingerível. Se olharmos para os dados da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), existem cerca de 1.700 empresas inscritas como editores de imprensa. Dessas, existem 70 ou 80 que se chamam televisão de qualquer coisa, e, depois temos uns 50 que são uma espécie de serviços de programas. E, quando eu digo que este é um sector altamente regulado, quero dizer uma coisa que as pessoas se esquecem, muitas vezes: a liberdade de imprensa assenta nessa regulação. Por exemplo, a televisão não só é regulada, como é finita. Ou seja, não pode fazer televisão quem quer. Só faz televisão quem cumpre determinados parâmetros, quer em termos empresariais. Uma empresa deste sector é obrigada a ter 2,5 milhões de euros de capital social. E tem de haver disponibilidade por parte do Estado de dizer que existe uma ou mais frequências vagas, tem de se fazer um concurso onde aparecem outros concorrentes, e depois tem de se ganhar fazendo várias promessas de naturezas diferentes, desde informativa, cultural ou de entretenimento. Tal como a Constituição Portuguesa a descreve, a liberdade de imprensa é, assim, extraordinariamente difícil de ser reconhecida. Naquilo que estamos hoje a falar como imprensa – que é tudo o resto que não depende um alvará para ser utilizado –, esse é outro mundo todo, das cerca de duas mil empresas, da liberdade de se fazer uma empresa para editar qualquer coisa. Sendo que o editar pode ser digital, pode ser uma plataforma.

João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

De facto, é um sector muito regulado, porque temos a Lei da Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Constituição. Temos, de facto, muitas leis. Mas, quando falamos da ERC ou da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), estas entidades têm instrumentos suficientes para dar garantias de que aquilo que está a ser-lhe transmitido é isento do ponto de vista da informação?

São coisas diferentes. A CCPJ é uma entidade que está entre uma Ordem e uma direcção-geral. Não é uma Ordem, porque a actividade jornalística não é autónoma, ou seja, um jornalista não tem uma autonomia igual à de um médico, que diz: “não faço”, ou “não digo”.

E devia ter essa autonomia?

Na minha opinião, não pode ter. A autonomia do jornalista reside no estatuto editorial, e quem tem o direito de estabelecer o estatuto editorial, e de o alterar, é o proprietário da publicação, que pode não ser jornalista. Portanto, há aqui uma disfunção que, por vezes, se torna esquizofrénica, entre quem tem o direito de dizer qual é o enfoque, e de que maneira as peças devem ser preparadas, e de quem faz as notícias, e a liberdade para o fazer.

Fazendo então um paralelismo com a Ordem dos Médicos: sabemos que um médico do Serviço Nacional de Saúde (SNS), ou mesmo do sector privado, tem uma autonomia. E a própria OM tem ingerência na gestão do sector da Saúde. Mas há uma legis artis que um médico tem de seguir, e se não o fizer é responsabilizado. Esse modelo não poderia aplicar-se também aos jornalistas?

A primeira coisa que temos de perceber é que uma Ordem é uma associação profissional. A CCPJ não é uma associação profissional. E essa associação profissional [Ordem dos Médicos] resulta de uma decisão muito antiga, corporativa, do Estado Novo. Achou que, para não se meter em questões que tinham a ver com certas profissões, das quais precisava para sobreviver e continuar a implantar os seus pontos de vista. Assim, entregou a essas entidades profissionais a regulação das suas actividades. E a regulação dessa actividade começou, e ainda se mantém hoje em dia, na determinação de quem pode ensinar, quem pode fazer cursos, e como podem aceder. É, de facto, uma regulação total da profissão, mesmo sobre o elemento que estava a dizer: a autonomia ou a liberdade de um médico em ter a sua própria consciência.

João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

Sim, mas, por exemplo, um pediatra, dentro destas regras da liberdade e da legis artis, não pode de repente decidir fazer uma operação ao coração.

Não, não, esses são os casos mais simples de resolver, porque a questão que está aqui, na imprensa, é sobre o acto de publicar. Pessoalmente, defendo – e a minha tese de doutoramento debruça-se nisso – o conceito de acto jornalístico. Fui à procura da definição, e comparei o acto jornalístico com o acto médico, e com o acto jurídico. E há uma diferença fundamental: enquanto o acto médico é sobre mim ou sobre si, quando vamos ao médico, já o acto jornalístico não vive só por si, integra-se num conjunto, numa publicação, num noticiário de rádio ou de televisão, ou num blogue. Ou seja, só por si, uma notícia não vale. A notícia só vale integrada num fluxo, seja do semanário, diário, o que nós quisermos. Faz parte de um fluxo. Esse fluxo tem um referencial, que é um título ou o “bilhete de identidade” da publicação, e tem um suporte e um enquadramento, que é o estatuto editorial. Um jornalista tem toda a liberdade e autonomia, igual à do médico ou do advogado, mas só até ao momento em que diz: “isto está pronto para publicar”.

Ou seja, a publicação não depende do jornalista…

A publicação, o direito de publicar, até legalmente, já não lhe compete. Por isso é que há um problema, que não querem discutir nem debater – mas que eu passo a vida a chamar a atenção: quando o jornalista trabalha numa redação, para um editor, e depois chega ao fim do dia a casa e é editor do seu próprio blogue. O que é que pode acontecer? É uma de duas coisas. Eu tenho discutido muito isto com o Sindicato [dos Jornalistas]. No princípio, o Sindicato não gostava de discutir. Hoje já estamos mais abertos. O jornalista pode escrever no seu blogue sobre o mesmo tema que escreveu no jornal de manhã, ou coisas diametralmente opostas ou diferentes, porque é aquilo que ele acha. Só que de manhã não as pôde escrever, porque não cabiam dentro do estatuto editorial da publicação. Ou, fez uma entrevista e usou no jornal 30% dessa entrevista, e depois agarra nos outros 70% e coloca-os no seu blogue. A questão é: quando ele se apresentou perante si ou perante mim para a entrevista, disse: “eu sou o Manuel, jornalista, ponto”, ou disse “eu sou o jornalista que tem o blogue ‘Coitadinha da Ceguinha’”, ou disse “eu sou o Manuel jornalista que venho do Diário de Penacova? É isso completamente diferente para mim, que dou a entrevista, porque eu estou a colocar o jornalista, não só na sua capacidade de pessoa que faz notícias, mas também num sistema de difusão e de divulgação que está aferido a um estatuto editorial. E é tudo isso que o estatuto editorial representa.

João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

E como fica a CCPJ no meio disso?

A CCPJ foi a solução menos má, que foi possível encontrar, para a evolução do sistema anterior – que as pessoas já não se lembram –, que era o Sindicato dos Jornalistas. Era o Sindicato dos Jornalistas que passava as carteiras profissionais, porque no sistema corporativo, os sindicatos passavam as carteiras profissionais das corporações a que pertenciam [durante o Estado Novo]. E estavam incluídas numa espécie de um conselho da corporação, que, no nosso caso, era a Corporação de Cultura e Artes gráficas. E esse Conselho da Corporação tinha representantes de impressores, artistas, cançonetistas… Também tinham uma carteira profissional. A carteira profissional destes todos, que estavam nesta corporação, como os outros que estavam nas outras corporações, eram, por lei, passadas pelos sindicatos.

Isso mudou…

Quando o sistema corporativo acabou, os sindicatos – entre os quais o Sindicato dos Jornalistas –, continuou a passar normalmente as carteiras. Simplesmente, neste sector houve uma alteração que não houve nos outros sectores. Tivemos uma Lei de Imprensa e a Constituição, depois, que veio dar a esta actividade uma protecção especial, e às carteiras um significado e uma responsabilidade na sociedade completamente diferente das outras. Em muitos casos, as carteiras das outras actividades serviam para as pessoas dizerem que estavam vacinadas; para se servir à mesa tinha de se ter uma carteira profissional para se dizer que se tinha feito a BCG [vacina do Bacilo Calmette–Guérin], era o que as carteiras diziam. Não podiam dizer muito mais do que isso. E esta evolução, que as pessoas naturalmente se esquecem, fez com que, quando Portugal entrou na União Europeia, tudo isto tivesse de ser reformulado. Mesmo assim, a actividade dos jornalistas ficou esquecida. Lembrem-se, por favor, que a Caixa de Previdência e Abono de Família dos Jornalistas foi a última a terminar. Era como se os jornalistas estivessem fora da normal relação laboral.

Consta que aí, o seu fim, teve a ver também com interesses dos grupos de media, porque a Caixa era financiado por uma pequena parcela da publicidade…

Era também financiada por uma pequena parcela de publicidade, sim, que tinha a ver, sobretudo, com os anúncios nos jornais diários dos cinemas, e de outras coisas assim do género. Mas se houve algum interesse privado, não foi esse de certeza. [O adiamento na decisão de extinguir a Caixa, que ocorreu em 2012] terá sido uma boa vontade de respeito pela última presidente da Caixa dos Jornalistas, e terá sido isso que foi muito importante, com certeza, na época…

Está a falar da mãe do primeiro-ministro [Maria Antónia Palla]?

Se calhar, estou a falar da mãe do ministro da Justiça [António Costa], na altura…

Mas a Caixa até tinha excedente…

Sim. Aquilo que aconteceu foi uma coisa muito simples: a grande função social e de apoio que a Caixa dava foi substituída pela Casa da Imprensa, que teve um período muito difícil. Mas é muito interessante, porque é com o fim da Caixa de Previdência que a Casa da Imprensa se vê obrigada a tornar-se num verdadeiro apoio de solidariedade para os jornalistas: E hoje é uma instituição… Aliás, aqui na Associação Portuguesa de Imprensa temos um protocolo com a Casa da Imprensa, e todos os editores e suas famílias e seus empregados, sejam jornalistas ou não, beneficiam de todos os apoios que a Casa da Imprensa concede.

Regressemos à CCPJ…

A CCPJ é uma cooperação bipartida, mas em que o Estado não tem hoje nenhuma intervenção. Houve, durante alguns anos, a obrigação do seu presidente ser um juiz indicado pelo Conselho Superior da Magistratura. Agora, os quatro elementos que representam os editores são obrigatoriamente jornalistas. E há outros quatro que são eleitos pelos jornalistas.

João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

Mas antes podiam ter carteira profissional, mas nem todos os que eram indicados pelas empresas do sector tinham de ser jornalistas, podiam ser colaboradores ou equiparados.

De acordo com a lei, as carteiras profissionais, desde que válidas, são todas iguais. E isto é uma matéria que está em cima da mesa: Mas isso é a minha opinião, pessoal, que não é trazida para aqui. Mas todas as carteiras que são emitidas pela CCPJ valem exactamente a mesma coisa.

Falemos agora da ERC. Por vezes, é criticada por ter uma postura demasiado hostil para com a imprensa; outras vezes por ser demasiado benevolente.

Primeiro, não podemos olhar para a ERC sem olhar para aquilo que veio antes. A ideia da [concepção] da ERC era que fosse disruptiva em relação ao modelo da Alta Autoridade [para a Comunicação Social], que era um modelo de representatividade: os editores nomeavam duas pessoas, o Sindicato nomeava duas pessoas e os partidos políticos com assento na Assembleia da República nomeavam, cada um deles, um representante. E, depois, no fim disto tudo, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) nomeava um juiz para presidir. Reparem: os juízes nomeados para aqui foram quase sempre juízes que vieram dos tribunais administrativos. Porquê? Porque, do ponto de vista do CSM, estas entidades são entidades administrativas independentes. Não são entidades para dirimir questões como a liberdade da imprensa, que não tem nada a ver com a Administração; são regras que têm a ver com direitos, liberdades e garantias, portanto, com a Constituição. Qual é a parte do direito administrativo que estão nestas entidades? São os registos e toda essa parte. E, portanto, nisso, essas entidades, melhor ou pior, sempre funcionaram.

João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

Mas há um outro lado importante, o da regulação.

Como eu costumo dizer, há um pecado original, que temos de ir vê-lo, lá atrás. E o “lá atrás” é: estas entidades são a consequência da nacionalização da maior parte dos meios de comunicação social em Portugal em 1975. A seguir ao 11 de Março de 1975, houve uma nacionalização geral, da qual só escapou a imprensa regional, para além de um ou outro de âmbito nacional. Tirando isso, houve uma nacionalização total. Esta primeira matriz, da qual a maioria das empresas grandes em Portugal faziam parte, daquilo que era a coisa pública, eram geridas pelo Código Administrativo. Mas, na verdade, não eram, porque uma coisa que as pessoas nunca se lembram é do Contrato Colectivo de Trabalho dos jornalistas, em 1978-1980. Era igual, na estrutura, ao Contrato Colectivo de trabalho que foi feito para a Administração Pública. A mesma coisa, o mesmo tipo de carreiras e de jornalistas, de primeira, de segunda, de terceira. Onde é que vocês encontram isso? Na Administração Pública, onde há um técnico de primeira e de segunda. Portanto, é a mesma lógica. Os contratos colectivos que não eram de jornalistas, mas que eram dos outros trabalhadores, chegavam a ter 80 categorias diferentes, porque era o cozinheiro de primeira, de segunda, de terceira, o motorista de pesados… Há 10 anos tivemos de acabar com isso tudo, porque não fazia sentido, não tinha nada a ver connosco.

Houve que mudar isso.

Temos de ver que, nessa altura, o Conselho de Comunicação Social – que é o avô ou o bisavô destas entidades – convivia com o Conselho de Imprensa, que era uma entidade de autorregulação do sector, e convivia com uma coisa que eram os Conselhos de Informação, uma espécie daquilo que é, agora, o Conselho de Opinião da RTP e da RDP. E havia um Conselho de Informação para a imprensa, que tratava dos jornais do Estado, um para rádio e outro para a televisão. E, se formos ver o funcionamento e a matriz do funcionamento destas entidades, vai tudo parar ao Direito Administrativo. Em 2005 e 2006 – primeiro com o Governo do Durão Barroso e, depois, do Santana Lopes, quando era ministro o Nuno Morais Sarmento –, fez-se uma primeira tentativa de um novo tipo de contrato de concessão para a rádio e para a televisão, em consequência da directiva AVMS [Audiovisual Media Services], do sistema audiovisual e dos serviços multimédia. Por causa dessa directiva tiveram de fazer alterações na Lei da Rádio e da Televisão, e ao fazer essas alterações, tinham de atribuir à então Alta Autoridade para a Comunicação Social competências que, com a estrutura que detinha, dificilmente conseguiria cumprir. Então, foi criada a ERC na base de os ‘regulados’ não terem nada a ver com a regulação; estão fora. Abandona-se o sistema anterior, a representatividade dos sindicatos e das associações empresariais. Esses ficam de fora. E reduz-se a representatividade dos partidos com assento na AR a quatro representantes. E, depois, esses representantes deviam cooptar, entre si, uma quinta pessoa, que era o presidente. Este foi um sistema que derivava de estudos avançados na Europa sobre o que devia ser a regulação, e como se deveria organizar – não especialmente deste sector, mas em geral. Aplicado num país que tinha detrás toda esta tradição, resultou que, no fundo, os reguladores foram, uma vez mais, vistos como funcionários para executar tarefas administrativas.

De qualquer modo, a ERC já existe há muitos anos. É efectivamente um regulador sem os regulados, e tem sobretudo um peso político-partidário muito forte…

A que se junta uma outra coisa, que é um sistema de financiamento completamente idiota. Idiota é a palavra. É idiota, porque é um sistema de financiamento tríplice, que faz com que os únicos que pagam, verdadeiramente, são os regulados. E que faz com que – voltamos à matriz administrativa –, muitas vezes, a ERC está mais preocupada em sobreviver, arranjando maneira de aplicar as taxas; e nós aqui percebemos isso…

PAV: Está a falar também das multas?

Não, primeiro fazer receber as taxas, e depois as multas. Percebemos isso quando temos aqui entidades reguladas com reclamações sobre: “ah, estão-me a dizer que o título que eu estou a imprimir agora é amarelo e antes era azul”. Ou: “Ah, e que o título no telemóvel sai mais apertado do que aquilo que está lá no não-sei-quê”. Mas em que mundo é que nós estamos? Mas isto é o Direito Administrativo a funcionar, é a deriva administrativa, com a falta de dinheiro. Porque o único sistema que funciona, de facto, no financiamento da ERC, são as taxas que pagam os regulados. A parte do Orçamento do Estado está sempre sujeita a tranches e a duodécimos, e até antes da troika já era assim. E há a outra parte da ANACOM, que está sempre guardada pelo ministro das Finanças. Na verdade, a maior influência político-partidária que existe em relação à ERC é no financiamento, porque é onde o político Governo tem, de facto, uma arma para encostar à parede a independência e a autonomia das pessoas que estão no Conselho Regulador. Se não têm para pagar aos seus funcionários, o que é que lá estão a fazer? A ERC nunca foi capaz de estabelecer os mercados preferenciais, porque não consegue pagar os estudos indispensáveis para estabelecer os mercados preferenciais. Ao não os estabelecer, tudo o que tem a ver com questões de posição dominante, de concentrar muita publicidade, etc., pode ser o que eles dizem; como pode ser o contrário.

Aliás, há pouco tempo, a ERC fez uma análise sobre a distribuição dos montantes da publicidade institucional do Estado no âmbito da pandemia, e chegou uma vez mais à conclusão de que os órgãos de comunicação social regionais estavam a ser preteridos em relação aos nacionais, e de que as televisões estavam a receber mais do que deviam. Mas detectam isso, e depois não acontece nada. As situações repetem-se passado uns tempos, não é?

Existe um relatório que fizemos aqui na Associação, nessa altura, para a ERC, que permitia que pudesse ter dito coisas muito concretas e precisas… Poderia ter tomado uma iniciativa no sentido de melhorar a lei da publicidade institucional do Estado. Não o faz porquê? A ERC não faz supervisão.

Ainda sobre a ERC. Faz sentido haver uma Lei da Transparência dos Media, com um portal gerido pela ERC, e depois haver a possibilidade de pedir confidencialidade dos dados financeiros e económicos?

Quando era presidente da Confederação de Meios, quando foi a transição para a TDT [Televisão Digital Terrestre], fui nomeado, pelas três televisões, o negociador da TDT com a ANACOM. E, a certa altura, na história do concurso – que foi ganho na altura pela PT para os sistemas radiantes para a TDT, etc., –punham-se algumas questões sobre os preços, e sobre a forma como a própria PT queria tratar de elementos que achávamos que eram fundamentais para o negócio, como as boxes e outras coisas do género. E fizemos um requerimento à ANACOM sobre esses dados, e quisemos ver os relatórios que a PT tinha feito. Recebemos 30 dossiês, dos quais 29 tinham as páginas em branco. Diziam “informação não disponível na base dos princípios do sigilo”. A mesma coisa aconteceu-nos com os CTT, quando a ANACOM determinou, talvez há 10 anos, que passasse a haver uma avaliação da qualidade da distribuição postal, e que os CTT tinham de contratar uma empresa independente, que todos os anos fazia a avaliação do serviço. Nós sabíamos que as empresas que contratavam eram de antigos funcionários dos CTT. Também dissemos que queríamos ver os relatórios. Não era 90% que veio em branco, mas cerca de 70% veio em branco.

Mas insisto na questão: há uma legislação sobre a Transparência dos Media e depois pode haver partes confidenciais?

Tenho, como se diz, “mixed feelings”. Porque a Lei da Transparência portuguesa é mais exigente que a lei da CMVM para as empresas. Ou seja, exige mais informação e informação mais detalhada do que a CMVM exige às empresas que estão em bolsa. Portanto, é de facto uma lei muito detalhada do ponto de vista da informação para o cidadão.

Mas por que motivo se fazem leis fantásticas ou exigentes, ou demasiado exigentes, e depois, de uma forma administrativa, porque foi a ERC que fez um regulamento, se criam excepções?

Não, não, não é a ERC que faz o regulamento. O regulamento vem do Direito Administrativo.

Está previsto na lei que cabe à ERC fazer o regulamento sobre os indicadores financeiros e a possibilidade de confidencialidade [Regulamento nº 835/2020]. Às tantas, com as excepções aniquila-se o princípio da lei…

Eu entendo a ERC, na sua recente proposta, que esteve em consulta pública, quando diz que as empresas cuja actividade principal não é a de editor, só têm de dar informação quando a actividade jornalística pesa mais do que 10% da sua actividade. Acho que isto é injusto, por uma razão simples: até 2000, 2001, a Lei de Imprensa, e o regulamento dos registos, dizia que qualquer empresa se podia inscrever como empresa editorial. Qualquer empresa. Portanto, nós tivemos aqui associados como a Siemens, a Ordem dos Advogados. Edita uma revista, inscreve-se na ERC e depois é nosso [associado da API]. A partir de 2000 ou 2001, houve uma alteração aos registos, e os registos dizem que caducam todas empresas que não têm como actividade principal a de editor, mas, no entanto, os registos das publicações continuam válidos. E as empresas proprietárias continuam a ser consideradas empresas editoriais.

Ainda têm os registos das publicações válidos.

Isto quer dizer – e temos tido aqui vários casos – que uma empresa que estava registada e tinha uma publicação periódica, à qual lhe foi cancelado o registo, continua a sê-la, do ponto de vista da edição da publicação… Essa mesma empresa, no entanto, se depois quer editar outra publicação, tem de criar uma empresa à parte para a publicação nova. Aquilo que respondemos foi que as empresas que estavam registadas antes da alteração devem ter um tratamento diferente daquelas que se registaram depois. Porque depois da alteração, não é possível haver empresas editoras que não tenham como actividade principal a edição. Portanto, faz todo o sentido dizer que só se tiver um peso ínfimo não indicam os dados. Enfim este é um sector muito regulado, mas mal regulado. Mal no sentido em que a regulação foi sempre feita para resolver ou problemas que nos foram postos por fora, ou problemas de evolução tecnológica.

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Mas quando estávamos a falar na confidencialidade dos dados ou de terem de indicar, não nos referíamos a entidades que claramente não têm actividade jornalística, como, por exemplo, as Ordens profissionais ou os partidos que têm publicações, e que estão no Portal da Transparência. Estávamos a pensar em grupos de media – e houve casos polémicos abordados pelo PÁGINA UM –, que tentam esconder algumas dependências externas ou dívidas. Aí, qual deveria de ser o critério? Um critério em termos de dimensão do volume de negócios ou algo do género, ou deve ser o tal critério de 10% acima disto ou 10% acima daquilo?

A dimensão das empresas que estão inscritas na ERC é um dos maiores problemas para a subsistência do sector, para o desenvolvimento e a transição para o digital e, do meu ponto de vista, para a organização da regulação. De acordo com os dados da Europa e a classificação das empresas pelo INE [Instituto Nacional de Estatística], temos uma grande empresa de media… Uma, neste sector da imprensa. Depois, temos 54 ou 56 médias empresas. E depois, todas as outras mil e não sei quantas são pequenas ou microempresas.

A grande, será a Cofina, e depois o grupo Impresa?

Sim, mas a Impresa, não a holding, porque a SIC é uma empresa separada. A TVI não tem imprensa, portanto não entra nesta linha. O maior drama deste sector é que, neste momento, cerca de 25% das suas empresas não perde dinheiro e há 75% que perde. Mas os 25% que não perde dinheiro, não perde porque está ali nos 0%, 0,1%, 0,2% [de rentabilidade]. E nos 75% em que se perde dinheiro, há gente a perder muito dinheiro.

É normal que grande parte do sector esteja em constante crise e em constante défice?

A maior parte das empresas são pequenas ou microempresas, e para essas as regras são completamente diferentes, quer na gestão quer na forma como estão no mercado. O resultado é, depois feito a partir dos papéis que dão; e os papéis não têm lá essas minudências de relação. Por exemplo, uma das coisas que nos preocupa muito, neste momento, é o projecto europeu de regulação para a área dos media, que prevê, desde o início, que as microempresas não sejam reguladas. Portanto, isto quer dizer que 80% das empresas que estavam na ERC, desapareceriam da ERC. Depois, como é que isso se compagina com a lei portuguesa, com estes anos todos em que estiveram na ERC a pagar uma taxa. Quer dizer, enfim… Este é o primeiro aspecto. Segundo aspecto: há um movimento muito forte europeu de colegas de outras associações que querem também tirar as pequenas empresas. Isso, de repente, faria com que em Portugal haveria, para regular, menos de 100 empresas neste sector. Se calhar, era aquilo que um sector desta dimensão em Portugal deveria ter. Só que não pode perder a riqueza que é a diversidade e o pluralismo de todos os outros. Não sei como é que isto vai acabar. As microempresas estão, desde o princípio, na proposta da Comissão.

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Mas essa regulamentação comunitária está concluída?

Não está ainda concluída. Já está muito avançada nas votações no Parlamento Europeu e, quer a Presidência [do Conselho Europeu] sueca, em curso, quer a presidência espanhola – que vem a seguir –, querem fechar estes processos antes de entrar no ano eleitoral, em 2023. Ainda por cima é um regulamento, portanto não tem a mesma latitude de uma transposição, que poderia determinar que as microempresas ficavam excluídas nos próximos 10 anos.

Será a ERC que terá de tomar conta de uma série de novas regras que estão previstas?

Não é só isso. A ERC vai ser integrada num regulador europeu. Quer dizer, é uma coisa completamente diferente que se vai passar.

Um bocado como o Infarmed [em relação à Agência Europeia do Medicamento]?

Sim, e com a ANACOM, e com todos os reguladores. Vão ser integrados num regulador europeu, que já existe, que se chama a ERGA [European Regulators Group for Audiovisual Media Regulators], e que já existe como associação de reguladores deste sector. Habituaram-se a trabalhar uns com os outros, mas vai ser uma mudança imensa. Agora, a questão é se ficam de fora uma quantidade de microempresas e se vingar a ideia das pequenas empresas… Eu até admito que estamos num movimento em Portugal de médias empresas se tornarem pequenas ou microempresas, para fugirem à regulação.

E quais serão as consequências disso? Fala-se muito na desinformação, no rigor informativo e na forma como agora começam a aparecer conteúdos que estão ali num misto entre comercial e jornalístico. Como é que depois isso vai funcionar em termos de regulação? Qual será a entidade externa que estará ali a proteger o leitor?

Teoricamente, as microempresas deixam de ser consideradas como empresas que podem editar uma publicação periódica, seja digital, papel ou o que for. Isto contraria a Constituição Portuguesa, que diz que ninguém pode ser impedido, por razões administrativas, desde que cumpra com os registos necessários. Por outro lado, toda a História da legislação portuguesa sobre comunicação social, desde os anos 1820, teve sempre como principal objectivo determinar como é que era feito e verificado o registo. E depois, quem é que decidia…

João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

Mas num cenário de uma empresa deixar de estar sob regulação, significará que deixa de poder editar?

Não. Pode editar, mas vale é a mesma coisa que um boletim [risos], ou qualquer coisa que é distribuída. Quer dizer, não tem protecção específica.

Quer queiramos quer não, o facto de um órgão de comunicação social estar registado na ERC, de certa forma dá um estatuto diferente…

Dá uma responsabilidade, e dá uma obrigação de cumprimento de regras deontológicas. Cumpra-se ou não.

Se há então esse “risco” de pequenos órgãos de comunicação social poderem ficar desobrigados das regras da ERC, mas também ficam sem o seu cunho. Porque, na verdade, o facto de um jornal poder ser alvo de uma entidade com poder regulador, dá-lhe também uma responsabilidade…

Exactamente, e permite-lhe exigir um respeito de determinados princípios que têm como base a liberdade de imprensa

Portanto, não vê que este novo regulamento seja favorável para o sector.

Acho que o regulamento, da maneira como está, foi muito feito em cima do joelho em Bruxelas, e de modo a ficar pronto a tempo antes das eleições. Não se pensou, não se maturou o suficiente. Nós, em Portugal, temos este problema, mas a Espanha tem um problema completamente diferente. A regulação em Espanha pertence às regiões autonómicas, e não têm regulador nenhum. Zero regulador. Vão ficar dependentes do regulador de Bruxelas de um dia para o outro. Ainda é mais complexo. Agora, o problema deste tipo de coisas é não olharmos para o que ele significa realmente. E esta mudança, que a Europa está a fazer, tem uma base. E foi dita logo pela Comissão desde que tomou posse: temos de estruturar os media europeus de uma maneira forte, organizada, e para que possam concorrer no Mundo inteiro, transmitindo os pontos de vista e as visões europeias sobre os temas mais importantes e mais profundos. Quer dizer que quem tem uma dimensão hiper local, não faz parte deste discurso.

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Prevalece o europeu, deixa de lado o local…

E, na maior parte dos países da Europa, porque houve guerra, destruição e fronteiras que foram deslocadas, é muito recente a organização e a implantação dos órgãos de comunicação social. Portanto, já é feita numa perspectiva de uma certa dimensão. Em Portugal, não estamos tal e qual como estávamos em meados do século XIX, porque não tivemos guerra, nem cataclismos… Neste momento, o que pode acontecer é haver um empurrão para um crescimento do acordo do tamanho das empresas. Convencidos de que isto era um benefício, por volta de 2006 e 2007, pedimos ao Governo, e o Governo criou, um apoio à cooperação e ao desenvolvimento empresarial. Mas fica quase sempre deserto. Ninguém concorre a isso, quase. Depois, há muitas razões, na CCDR [ Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional] do Norte pedem isto, e na do Sul já pedem aquilo… Há razões dessas que nós conhecemos. Mas, na verdade, não podemos dizer que haja um fluxo das empresas a dizer: “vamos lá aproveitar isto, que o Estado vai pagar aqui alguma coisa para nós aprenderemos a cooperar e a viver uns com os outros”.

Fala-se muito da questão do serviço público da imprensa. Ou seja, como o mercado não consegue ou não quer pagar esses serviços que a comunicação social dá, o Estado deve apoiar. Recentemente, por causa da pandemia, houve critérios um pouco estranhos na atribuição de verbas à comunicação social. Concorda com um modelo de financiamento por parte do Estado? E se sim, esse financiamento deveria ser regular ou apenas pontual, e com que critérios?

Para o bem e para o mal, a Constituição diz assim: serviço público é rádio e televisão, ponto. Por aí, não vamos lá. No entanto, a Lei de Imprensa diz que compete ao Governo acompanhar e verificar as condições económicas do sector, por forma a que essas condições económicas não possam pôr em causa o pluralismo e a diversidade. Portanto, não é pela evocação de que é um serviço público, mas é pela obrigação do Estado, e isso leva-nos aos apoios. É isso que permite os apoios, quando a Europa [União Europeia] impede apoios estatais em sectores.

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Quando falo de serviço público, estava mais a pensar no conceito de bem público do ponto de vista da teoria económica. Ou seja, o Estado intervir quando um bem não é suficientemente valorado pelo mercado, mas que é fundamental…

Sim, eu sei, eu sei. Eu digo sempre que se a Constituição não dissesse “serviço público é este”, poderíamos falar assim. Acho que uma vez que a Constituição diz isto, para não haver confusões, é melhor não falarmos de serviço público nem de serviço ao público, porque são coisas confusas. Agora, por outro lado, como a Lei da Imprensa diz isto, e a própria Constituição também reconhece, o Estado tem de se preocupar com esse lado; é isso que permite ajudas do Estado em Portugal. Mesmo assim, ainda temos aí muitos problemas e muitas questões. Agora, a Comissão e o Parlamento Europeu, nos últimos anos, têm recomendado aos Estados que apoiem a imprensa, através da publicidade institucional. Mas o problema da publicidade institucional do Estado é que não tem um significado igual em todos os Estados-membros da União Europeia.

Varia de país para país…

O Estado que tinha este conceito mais avançado era a França, depois a Itália e a Inglaterra. O Governo português seguiu sempre um modelo muito próximo do modelo francês, e portanto, há um sistema de apoio. Depois, criou-se um sistema da publicidade institucional do Estado. Esta publicidade representa, em globo, que o Estado seria o maior investidor publicitário em Portugal. Seria, não: é o maior investidor publicitário em Portugal. E não estou a falar de uma outra coisa, que são as publicações obrigatórias e os anúncios. Isso é algo que, para algumas publicações, conta muito. Quer dizer que vivem com base nisso e têm imensos problemas por causa do código das aquisições públicas [Código dos Contratos Públicos], porque estabelece limites que muito depressa são ultrapassados. A publicidade institucional do Estado, se se cumprissem as regras todas que estão na legislação, deveria funcionar de uma maneira equilibrada. Qual é o problema? A lei foi feita numa altura, na década de 1980, em que eram as agências de publicidade que compravam o espaço para as campanhas que produzia. Não havia centrais de compras.

man sitting on bench reading newspaper

E as coisas mudaram..

Hoje, os departamentos de Estado têm toda a liberdade de fazer concursos, na base da lei da publicidade institucional, ou só para a criatividade, ou para a campanha completa. Aqueles que fazem só para a criatividade, depois vão ter de fazer outro concurso para comprar o espaço para aquela campanha. E a este concurso, só concorrem as centrais de compras. Os que fazem para uma empresa que oferece tudo, essas empresas, na maior parte dos casos, vão comprar o espaço às centrais de compras. Isto quer dizer que é muito difícil, no procedimento administrativo da compra, distinguir a forma como essa compra influencia, de facto, a distribuição da publicidade do Estado. Os franceses, no fim do tempo do Mitterrand, inventaram uma lei – que deu pelo nome do então ministro das Finanças, o senhor [Michel] Sapin – que obrigava a que, quando o Estado comprava publicidade, as facturas dessa publicidade obedecessem a um descritivo específico, em que havia o preço da publicidade, que é o preço que está na tabela de publicidade, e depois tinha descontos. Toda a gente é livre de fazer os descontos que quer, mas os descontos estão lá. E depois dizia uma coisa: tudo paga IVA. Ou seja, o desconto paga IVA? Paga, sim senhor. Portanto, o desconto pode ser feito, mas tem de ficar claro e tem de se saber a razão desse desconto, e, em última análise, constitui fiscalmente um crime não mostrar os descontos. Bom, isso depois caiu em desuso, e já num dos Governos de Macron, que chamou outra vez o senhor Sapin para ministro das Finanças, repôs-se a lei, há três ou quatro anos. É evidente que não foi tal e qual, como no final dos anos de 1980, com o Mitterrand, mas repô-la em vigor já com adaptações actuais. Portanto, há formas, e há formas actuais – não me venham dizer que são só antigas – de tornar mais transparente as compras da publicidade institucional do Estado.

Mas o apoio do Estado deve ser só através da publicidade, ou pode haver mesmo um mecanismo de apoio automático?

Olhe, nós aqui na Associação temos estudado isso até à exaustão, quer comparando com outros países, quer comparando com a realidade portuguesa. E vou dizer-vos: o mecanismo que salvou a imprensa portuguesa, entre 1983 e 1985, quando houve o primeiro default, em que esteve cá o FMI, foi o subsídio ao papel, que é um subsídio de que toda a gente diz mal. Toda a gente diz que havia aldrabices, roubalheiras e 30 por uma linha. Mas se olharmos efectivamente para a situação, e para o que aconteceu a partir daí, nos anos de 1987 a 1989, que foram anos equilibrados para a imprensa, foi isso que a salvou naquela altura. Portanto, a partir daí, na Associação estabelecemos um programa que se chama PECSIR [Plano de Emergência para a Comunicação Social, Imprensa e Rádio], e já vamos para aí no PECSIR 4 ou 5, porque o vamos adaptando. O modelo era um pouco o mesmo, só que o subsídio não era dado ao papel, era dado às leituras ou às vendas.

Até porque agora praticamente já nem temos imprensa em papel. Aliás, por exemplo, o Público já é maioritariamente um jornal digital, e até o próprio Expresso está nos 50-50 entre papel e digital…

Sim, tem havido uma adaptação, claro.

João Palmeiro. Foto: Júlia Oliveira

Através da contabilização da assinatura digital…

Eu costumo sempre dizer que as assinaturas em digital – a palavra “assinatura” – são a prova de que este sector pensa muito pouco e investe muito pouco na universidade ou nos estudos sobre esse tema. Porque eu não compro assinaturas nenhumas, eu compro acessos. E é isso que nós devíamos dizer. Os acessos é que contam, não são as assinaturas. As assinaturas era uma coisa que havia no tempo do papel, não é? Em que nós transferimos, em termos de vocabulário, a palavra “assinatura” de outras actividades que tínhamos.

Em todo o caso, continua-se a falar e a contabilizar as assinaturas. Ainda há tempos, no Portal Base surgia certa Câmara Municipal a comprar umas centenas de assinaturas digitais, durante seis meses, ao Público.

Pois, eu não sei o que isso é. Eu luto sempre. E em situações como estas, digo sempre: não há assinaturas, aquilo que há são acessos. Até porque aquilo que o Governo é obrigado a preocupar-se, face à Constituição, é do acesso dos cidadãos à informação. É isso que lá está escrito! Portanto, são acessos pagos, mas são acessos. Temos na Associação acompanhado alguns projectos que têm tentado resolver isto. Um projecto, não sei se já ouviram falar, o Pay per View, que era um projecto em que existe uma transacção de acessos, e depois quem tem o acesso só tem de determinar o tempo em quer o acesso. Nesse tempo tem a faculdade de dizer: “eu pago”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que gosto”, ou “eu só pago quando tenho um artigo que leio”, ou mesmo “eu só pago quando tenho um artigo que vou distribuir aos meus amigos”. E então isto obriga-me a pagar. Portanto, tem estas possibilidades todas. Em qualquer circunstância, são acessos. Quer dizer, a pessoa inscreveu-se, digamos assim, para através de uma aplicação poder ter acesso a publicações e, depois, a publicação é que determina: “não, eu só dou acesso se me pagares tanto”, ou “eu dou acesso desde que dês qualquer coisa”. Mas tem o acesso.

Regresso à pergunta inicial: advoga que se adoptem modelos de financiamento mais constantes por parte do Estado?

Se calhar estou há demasiados anos nesta cadeira, e, portanto, é o que os meus filhos me dizem quando discuto isto com eles… Por vezes, o facto de já ter tentado tantas vezes determinadas soluções, leva-me a dizer: “essa já não vale a pena”. Todas as soluções que se baseiam no princípio de dizer às pessoas: “olhe que a liberdade de imprensa não é uma coisa adquirida, é preciso fazer alguma”, batem sempre na parede. Sobretudo as gerações mais novas, acham que a liberdade de imprensa é como o ar, quer dizer, está aí, portanto, porque é que eu tenho de me preocupar com isso? Isto depois tem a ver com a desinformação e todas essas coisas: não tem havido maneira suficientemente forte de chamar a atenção para isso. Portanto, tenho defendido que, de um lado, temos a publicidade institucional do Estado, e do outro lado, isenções fiscais. Estas são as ferramentas seguras para que não haja no meio disto uma tentativa de “eu dou mais a este do que dou àquele”, e de começarmos a discutir coisas intermináveis. Como, por exemplo, estamos agora a discutir por causa da transposição da directiva dos direitos de autor, que é: “como meço aquilo que eu ganho ou não ganho?”. Eu não meço nada, quer dizer, não tenho capacidade para medir nem para analisar. Mas se me perguntarem, eu também não tenho dados para lhes dar [risos]!

Vemos, por exemplo, casos de relações de empresas de media com autarquias, como se viu recentemente com a Câmara de Gaia… Não era melhor haver uma forma de financiamento e apoio ao sector que não passasse por estas “parcerias comerciais”, que acabam sempre por beneficiar os mesmos, os grandes grupos?

Sim. A publicidade institucional do Estado, de um lado, que é investimento, e é investimento que tem a ver com o mérito de quem tem ou não tem leitores, de quem tem ou não tem pessoas que vão ver. E, do outro lado, isenções fiscais, que essa é igual para todos; os que têm mais negócio têm mais, e os que têm menos negócio têm menos.

bundle, jute rope, newspaper

Mas através do IRC, essa vantagem é quase irrelevante, porque grande parte das empresas paga pouco ou nem paga, quando tem prejuízo…

Não, mas há isenções fiscais em relação à publicidade. Por exemplo, a majoração da publicidade, em relação aos investidores de publicidade. Não estou a falar do Estado, estou a falar dos privados. Quer dizer, você investe 100; no entanto, nas suas contas põe lá que investiu 150 em publicidade.

No caso da imprensa, porque não haver um apoio em função do número de jornalistas ou de notícias? Mas notícias produzidas em exclusivo, ou seja, não é aquilo que acontece agora, que é uma notícia feita por uma agência, e depois temos o churnalism

Não sou muito fã dessa ideia, por causa da contratação colectiva de trabalho. Só por isso, não sou muito fã dessa ideia. Eu sou um defensor – vencido neste sector, porque a maior parte das pessoas não pensa como eu, e ainda bem – de que não é possível avaliar jornalistas como se avalia outro tipo de trabalhadores. Não é possível. Como é que eu avalio os jornalistas? É que esse modelo levaria a isso. Estamos a seguir há alguns anos, com muito interesse, uma situação que existe na Madeira, que resultou de uma luta que tivemos durante anos contra o Alberto João Jardim [presidente do Governo Regional da Madeira entre 1978 e 2015] por causa do Jornal da Madeira, que era subsidiado pelo Governo Regional. Tivemos uma luta que meteu Presidentes da República, quase secretários-gerais das Nações Unidas da época. Mexemos tudo e mais alguma coisa, e já no fim ele [Alberto João Jardim] lá mudou. E em consequência disso, hoje existe um sistema de apoio da Madeira, que se chama o MediaRam: o Governo Regional paga uma parte do salário de cada jornalista, que cada publicação emprega, mais os custos sociais. E isto tem funcionado sem problemas. Temos falado disto muitas vezes aqui no Governo central, e dizem: “é impossível, não podemos fazer, porque a Comissão Europeia cai em cima de nós”. E nós dizemos: “mas na Madeira fazem”. Temos a certeza que não tiveram que pedir o estatuto de região ultra-periférica para poderem fazer isso. Portanto, fazem. E posso-lhe dizer mais: muito recentemente estivemos com o Governo Regional dos Açores, que também está a estudar a possibilidade de passar a fazer isso nesse arquipélago. Portanto, eu penso que sim. Todas essas soluções são possíveis. E volto a dizer: em Portugal esta [solução] está na Madeira.

Selective Focus Photography of Magazines

Estamos a centrar a entrevista muito na parte financeira e de sustentabilidade dos jornais, mas apontam-se muitas culpas às novas plataformas e ao desinteresses dos jovens, e fala-se pouco na qualidade da imprensa. Esse modelo não valorizaria o jornalista?

Daquilo que sabemos das publicações fora de Portugal, as que têm êxito são as que apostaram na qualidade do jornalismo, embora a qualidade do jornalismo seja muito difícil definir – eu passo a vida a dizer isso. No entanto, aquilo que eu digo sempre é que a qualidade do jornalismo é o cumprimento das regras de informação em relação ao assunto que se está a tratar. Não posso deixar o assunto a meio porque ouvi dizer que o meu concorrente está a… Não posso. Portanto, estes elementos de facto só se fazem com jornalistas e com pessoas que sabem o que é que estão a fazer. Além disso, há uma posição muito pouco popular que temos aqui na Associação: entendemos que o salário dos jornalistas não pode ser igual ao salário dos caixas de supermercado ou igual ao salário mínimo nacional.

Mas isso acontece hoje, não é? Há já bastante tempo, aliás…

Sim. Temos a tabela do contrato de 2010, que se aplica às publicações com uma facturação anual inferior a 2 milhões euros; dos valores dessa tabela, metade já foram comidos com o salário mínimo nacional. Portanto, temos esta situação estranhíssima: um estagiário pode ganhar mais do que uma pessoa que entrou para o jornal há dois ou três anos.

No mundo digital é importante não esquecermos as questões de desigualdade de informação e de acesso. Além disso, a difusão nas grandes plataformas seguem critérios próprios sobre desinformação ou fake news. Mas há uma dificuldade de os leitores acederem a informação sobre uma panóplia de temas. Como vê isto no âmbito da liberdade de imprensa?

Primeiro: a liberdade de imprensa, de que estamos a falar, não é a mesma que está nas leis. A liberdade de imprensa que estava nas leis é a do mundo analógico, em que eu posso verificar em determinados tempos – no tempo da notícia –, e posso actuar. A liberdade de imprensa hoje é também a do tempo da tecnologia. Se eu não tiver isso em consideração, seguramente que todos os anos vamos ter uma baixa global – não é só em relação a Portugal –, na percepção que as pessoas têm em relação aos acessos. Portanto, o primeiro problema é esse. Mas depois há um segundo problema, quando eu obrigo as plataformas a serem responsáveis pelos conteúdos que distribuem. Eu digo: “se esses conteúdos forem contra aquilo ou contra aqueloutro, não pode ter”. Essas plataformas não têm como negócio ganhar dinheiro connosco. Sim, nós somos importantes para elas ganharem negócio, mas não é com conteúdos específicos, é com o fluxo geral dos conteúdos. Portanto, essas plataformas não querem arriscar. Preferem ter sistemas automáticos que vão através de leitura de palavras, e cortam.

Mas aí não estamos a assistir a uma crescente erosão da qualidade da informação?

Daí uma velha visão que temos aqui na Associação, e pela qual eu já penei muito, na Europa e até no Mundo: então, eu tenho que estar junto com a plataforma a olhar para isso.

Mas como, se as plataformas são inalcançáveis?

Não; elas são alcançáveis.

Tem conseguido resolver algumas situações?

Sim, temos conseguido resolver algumas situações. Claro que depende muito ainda das relações pessoais, ou seja, de conhecer a pessoa, de falar com ela. É tudo uma questão de organização.

Photo of Hand Holding a Black Smartphone

Na sua opinião, o que devem ser conteúdos não autorizados? Isso tem a ver com questões da sustentabilidade também da liberdade de imprensa.

Conteúdos não autorizados são aqueles que são genericamente proibidos pelas convenções internacionais ou pelas leis nacionais, nos casos em que as leis nacionais sejam mais fechadas, como o incitamento ao ódio.

Mas aí estamos a falar de um crime.

Não. O problema é que a plataforma é única, mas as leis não são iguais. Portanto, na dúvida, eu elimino tudo.

Por exemplo, questão da identificação de fake news, há uma questão que salta como argumento: “nunca foi publicado por nenhum jornal, rádio ou tv”. Como jornalista, observo que alguns temas não são noticiados não por serem fake news mas por questões de pressão política ou outra. Não faz com que a história não seja verídica.

Há um estudo anual que devem conhecer, do The Reuters Institute, que faz, há já 13 anos, perguntas sempre sobre essa matéria, nomeadamente sobre o que é qualidade e tudo mais. Os dois temas que os portugueses elegem sempre como pontos críticos são os erros de português e as trocas de referências. Por exemplo, escrever 1495 em lugar de escrever 1945. Ora bem, eu só estou a dizer isto porque os leitores, ou os que acedem à informação, também têm de ser formados. Quer dizer, isto já não é como antigamente que, eu porque sabia ler um jornal, ganhava uma certa cultura. E essa cultura, tornava-me um especialista de leitura de jornal, digamos assim. E, portanto, eu sabia distinguir, sabia ver, sabia analisar o que era um jornal. Hoje, a maior parte das pessoas que lêem notícias, não distinguem. Por exemplo, uma das minhas lutas, muito grandes, com a CCPJ, é esta: a informação não-jornalística tem o mesmo direito da informação jornalística, tem de ser bem escrita, bem tratada e bem-apresentada. Tem é de ser separada da informação jornalística.

Fotografias de João Palmeiro por Júlia Oliveira

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