Quem, na mais recente edição semanal do Expresso (4 de Agosto), lesse na página 5 uma Nota da Direcção, terá, talvez, ficado intrigado. Num longo texto, expunha-se um esclarecimento sobre o artigo 19 do Código de Conduta dos seus jornalistas, repetindo as supostas regras de deontologia e de ética quando o jornal se põe a organizar eventos, promove iniciativas e publica conteúdos que resultam de parcerias que, em muitos casos, são acordos comerciais – leia-se, prestação de serviços.
O Expresso veio jurar aos seus leitores que as entidades envolvidas em acções de apoio ou de media partner “não têm qualquer intervenção na elaboração de conteúdos”. E querem que acreditemos.
E querem que os seus leitores acreditem. Passivamente. Acriticamente. Ingenuamente. Para que tudo continue na mesma.
Vamos ser claros – e a “culpa” não é do PÁGINA UM por fazer denúncias publicamente nem por pressionar os reguladores a agir: nos últimos anos, a promiscuidade entre órgãos de comunicação social e empresas privadas ou entidades públicas (incluindo autarquias e Governo) tem crescido de forma intensa e pornográfica.
Dantes, existia uma clara distinção entre marketing e jornalismo. Aplicava-se a máxima cristã: ao marketing o que é do marketing; ao jornalismo o que é do jornalismo. Isto significava uma coisa muito simples, e que está na Lei da Imprensa e no Estatuto do Jornalismo: não pode haver ingerências externas directas ou indirectas na linha editorial; e a um jornalista é proibido escrever conteúdos que resultem em contratos externos ou no uso da sua imagem ou do seu trabalho para a execução de textos de marketing (no conceito lato do termo, que vai para além da publicidade).
Por isso, as declarações de intenções da Direcção do Expresso, secundado por um Conselho de Redacção atávico, são ocas – ou pelo menos ambíguas, porque não garantem algo muito simples: que todos os textos noticiosos, assinados por um jornalista, foram fruto de decisões editoriais, e não de negociações entre o departamento de marketing da Impresa e entidades externas plasmadas, preto no branco, num caderno de encargos.
Isso não aparece escrito porque não é intenção do Expresso – e de muitos outros órgãos de comunicação social – acabar com uma prática daninha que tem corroído a credibilidade do jornalismo, que se anda a mercadejar. E um jornalismo que se mercadeja é um jornalismo que se prostitui.
Nem de propósito – para se aquilatar a “sinceridade” do Expresso –, 19 páginas à frente desse “Esclarecimento” surge um conteúdo pago – Projeto Expresso – patrocinado (sem se saber por quanto) pelo Pingo Doce e escrito por um jornalista com carteira profissional, mas que, na verdade, o melhor que tem feito é um sem-número de fretes travestido de jornalismo.
O dito Esclarecimento da página 5 da edição passada do Expresso tenta abafar algo indelével: as promiscuidades são imensas, frequentes, constantes. Ainda no mês passado, no dia 14 de Julho, o PÁGINA UM noticiava que o Expresso fez um contrato de prestação de serviços com a Direcção-Geral da Saúde para cobrir o Plano Nacional de Literacia em Saúde, ainda mais com um contrato forjado. Como pode um jornalista do Expresso criticar agora a existência de contratos por ajuste directo e contratos combinados que já foram executados antes de o serem?
Mas se isso fosse uma excepção… Assim de uma só assentada, estou a lembrar-me de um congresso da Ordem dos Contabilistas, em Setembro do ano passado. Ou de um evento de biodiversidade pago pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, em Março do ano passado. Ou o contrato de prestação de serviços para divulgar um programa governamental, o Programa Operacional Capital Humano (POCH), em Junho de 2021. E estou para fazer, há meses, um levantamento exaustivo das mais infames promiscuidades entre jornalismo e marketing: o Projeto Expresso, onde jornalistas com carteira profissional cobrem temas por encomendas patrocinadas por empresas de determinados sectores, onde se destacam as farmacêuticas.
Mas aquilo que mais me chocou, como jornalista – e até como ex-jornalista do Expresso – e como leitor, foi o simulacro, a encenação, de independência da Direcção Editorial do Expresso tendo um gigantesco rabo de palha cá fora. E esse rabo de palha está a arder, depois de ter sido apanhado, mesmo que de uma forma branda, pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).
Tal como sucedeu com outros órgãos de comunicação social da Global Notícias, da Trust in News, da Cofina, do Público e da SIC, numa avaliação de uma série de contratos, identificado apenas a título exemplificativo pelo PÁGINA UM, a ERC apanhou também a Impresa – detentora do Expresso – na rede de promiscuidades.
Assim, vale a pena citar a deliberação de 11 de Maio da ERC, porque está associada ao Esclarecimento da Direcção do Expresso, ajudando assim a enquadrar aquilo que, verdadeiramente, está em causa:
Tendo sido analisado um conjunto de conteúdos publicados no âmbito de cinco contratos celebrados entre a empresa Impresa Publishing, SA, e entidades públicas, no período compreendido entre 26 de fevereiro de 2020 e 20 de maio de 2022, o Conselho Regulador da ERC, ao abrigo das atribuições e competências de regulação constantes do artigo 6.º, artigo 7.º, alínea d), artigo 8.º, alínea c), artigo 24.º, n.º 3, alínea q), dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, delibera:
Verificar que o Expresso publicou conteúdos no âmbito de contratos estabelecidos com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas; a Secretaria-Geral da Educação e Ciência; a Secretaria-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; e a EMEL – Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa, E.M., que não identificam de forma adequada e suficiente a relação comercial estabelecida, contrariando a obrigação constante do n.º 2 do artigo 28.º da Lei de Imprensa;
2. Evidenciar que a publicidade, independentemente do subgénero em que se reifique, se reconhece sempre pela sua natureza sinalagmática (não necessariamente pecuniária), o que fundamenta as obrigações de identificação e separação face aos conteúdos editoriais;
3. Notar que a não identificação da natureza contratual estabelecida, bem como da entidade adjudicante, é suscetível de comprometer a independência do órgão de comunicação social perante interferências do plano económico;
4. Constatar que tal atuação é também passível de inobservar o livre exercício do direito à informação, garantido no artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa, e previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei de Imprensa;
5. Verificar ainda que o Expresso publicou conteúdos no âmbito de contratos estabelecidos com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas; a Secretaria-Geral da Educação e Ciência; a Secretaria-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; e a EMEL – Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa, E.M., que são assinados por jornalistas com título habilitador, comprometendo os seus direito[s] e dever à autonomia e independência, em inobservância ao disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º e na alínea c) do n.º 1 do artigo 14.º, do Estatuto do Jornalista;
6. Constatar a existência de indícios de incumprimento das normas de contratação pública, previstas no Código dos Contratos Públicos, por se verificar que a publicação do dossiê anexo à edição de 7 de dezembro de 2019 do jornal Expresso é anterior à data de celebração do respetivo contrato (EMEL – Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa E.M.);
Em sequência e tudo ponderado:
7. Recomendar ao jornal Expresso a criação de um mecanismo de autorregulação eficaz que preveja as regras aplicáveis à produção de conteúdos que configuram alguma forma de relação comercial com entidades externas;
8. Advertir o Expresso para a necessidade de garantir que os conteúdos publicados ao abrigo de contratos com entidades externas não sejam concebidos, nem assinados, por jornalistas;
9. Recomendar que o Expresso identifique, a todo o momento e de forma transparente, a qualidade em que os autores não-jornalistas assinam conteúdos produzidos no âmbito de relações contratuais com contrapartidas monetárias;
10. Determinar, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 35.º e do artigo 36.º da Lei de Imprensa, a instauração de um processo de contraordenação contra a Impresa Publishing, SA, proprietária da publicação periódica Expresso, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 28.º da Lei de Imprensa;
11. Enviar o presente relatório para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista para averiguação de eventual incumprimento dos deveres profissionais dos jornalistas, designadamente aqueles previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º, e na alínea c) do n.º 1 do artigo 14.º, do Estatuto do Jornalista, no que se refere aos conteúdos publicados no âmbito dos contratos com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas; a Secretaria-Geral da Educação e Ciência; a Secretaria-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; e a EMEL – Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa E.M.;
12. Enviar o presente relatório para o Tribunal de Contas para avaliação de eventual violação das normas do Código dos Contratos Públicos no que se refere ao contrato celebrado com a EMEL – Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa, E.M.;
13. Recomendar a promoção de uma iniciativa de corregulação e/ou autorregulação, nos termos do artigo 9.º dos Estatutos da ERC, em face da insuficiência de alguns dos termos constantes da Diretiva 1/2009, aprovada pela ERC, face ao atual panorama mediático.
Dado tratar-se de decisão condenatória (cf. Alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Regime de Taxas da ERC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de junho, alterado pelo DecretoLei nº 70/2009, de 31 de março, e retificado pela Declaração de Retificação n.º 36/2009, de 28 de maio), é devida taxa por encargos administrativos, no montante de 4,5 unidades de conta, nos termos do disposto na verba 31 do Anexo V que incide sobre o Expresso.
Agora entende-se melhor o conteúdo do Esclarecimento do Expresso, certo?