Por cerca de 2,8 milhões de euros, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa assinou ontem um contrato para limpeza das suas unidades de saúde na Grande Lisboa com uma empresa de capitais espanhóis, cuja holding é liderada por Florentino Pérez, presidente do Real Madrid. Foi um déjà vu, porque exactamente um ano antes a SCML assinou outro quase igual, e há dois anos outro similar. Em todos estes três contratos é invocada a urgência para não se fazer concurso público. A empresa beneficiada, a Clece, não tem tido mãos, e baldes, a medir desde que assentou arraiais em Portugal: a partir de 2015 já facturou mais de 55 milhões de euros em contratos públicos. A SCML é o seu melhor cliente com cerca de 9,4 milhões de euros por mor de quatro contratos. Todos por ajuste directo.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), agora liderada pela ex-ministra socialista Ana Jorge, assinou ontem o terceiro contrato consecutivo por ajuste directo, em três anos, com a empresa Clece, uma subsidiária da ACS, o grupo empresarial de Florentino Pérez, presidente do Real Madrid. O contrato desta semana aproxima-se dos 2,8 milhões de euros, mas somam-se aos quase três milhões em 2021 e os também cerca de 2,8 milhões em 2022.
Por esses três contratos para a prestação de serviços de limpezas das suas unidades de Saúde na Grande Lisboa (na capital, Cascais, Sintra e Mafra), a SCML já despendeu assim um total de quase 8,5 milhões de euros. Junta-se a estes, um outro contrato assinado em 2017 por 830 mil euros.
Em nenhum destes casos os administradores da SCML optaram pelo concurso público – como se poderia esperar tendo em conta o montante envolvido, a existência de empresas concorrentes e a recorrência dos serviços. Aliás, a estranheza sente-se mais sabendo-se que para a contratação de serviços de limpezas para as suas outras instalações, por um período de três anos, a SCML decidiu abrir concurso público – bastante concorrido, por sinal, uma vez que estava em causa um negócio apetecível.
Esse concurso acabou por ser ganho pela Servilimpe, que assinou um contrato em finais de Novembro do ano passado por quase 5,56 milhões de euros. Nesse concurso, a Clece foi um dos outros 14 concorrentes preteridos.
Mas para a entrega dos três contratos para limpeza das suas unidades de saúde da Grande Lisboa, assinados por ajuste directo à empresa de Florentino Pérez, a SCML considerou que não havia tempo para concurso público, recorrendo sempre a uma ambígua cláusula de excepção do Código dos Contratos Públicos que permite ajustes directos independentemente do objecto e do valor do contrato. Mas essa fundamentação – “por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, [em que] não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante” – poderia até aceitar-se num primeiro ano, em 19 de Agosto de 2021.
Com efeito, a SCML tinha tido então graves problemas com os três contratos de limpeza que então firmara em 2021, todos também por ajuste directo, com a Ambiente & Jardim. Os contratos – que totalizavam 4,5 milhões de euros – acabaram sendo revogados na segunda metade desse ano. E, de facto, nesse ano houve, efectivamente, urgência em encontrar uma solução rápida.
Mas já se mostra estranho ter sido usado o mesmo argumento uma segunda vez, em 9 de Agosto de 2022. E uma terceira vez, ontem, precisamente no mesmo dia. Ou seja, apesar de os contratos preverem sempre a mesma duração (12 meses), e a SCML ter já ficado “queimada” com contrato por ajuste directo, continuou sempre a invocar “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis” para o continuar a fazer numa prestação de um serviço básico – a limpeza – onde não falta concorrência.
A relação contratual entre a Clece e a SCML remonta, porém, a 2017, quando então foi contratada, também por ajuste directo, para a “limpeza para as residências, lares, creches, centros de acolhimento, centros de dia e Colónia de Férias de São Julião da Ericeira da Ação Social”. O valor do contrato foi de quase 830 mil euros por meio ano de trabalho.
Embora estivesse presente em Portugal desde 2007, a Clece apenas começou a ter uma actividade empresarial mais intensa a partir de finais de 2015, deixando assim de ser uma mera sucursal da casa-mãe. E começou logo de forma auspiciosa, com o seu primeiro contrato, como sociedade anónima do grupo ACS, a ser assinado ainda em Dezembro desse ano com a Administração Regional de Saúde do Norte no valor de cerca de 240 mil euros. Por ajuste directo, claro, porque nem tempo houvera para se secar a tinta das canetas que assinaram a constituição da empresa.
Em 2016, a Celce entrou em força no mercado das limpezas, conseguindo 23 contratos públicos, dos quais apenas quatro por concurso público. Terminou o ano com uma facturação por contratos públicos da ordem dos 5,43 milhões de euros, dos quais quase metade por ajuste directo. Destaca-se neste período o contrato de quase dois milhões de euros, por ajuste directo com o Centro Hospitalar de São João.
Nos anos seguintes, os contratos públicos continuaram a fluir, mas já mais em função da concorrência, uma vez que a empresa teve de fazer pela vida, lutando pela vitória em concursos públicos.
Entre 2017 e 2020, a empresa de Florentino Pérez para as limpezas facturou um pouco mais de 21 milhões de euros em 106 contratos públicos, sendo que 56 foram por ajuste directo, 18 por concurso público e os restantes por outras modalidades. A facturação por concurso público foi, contudo, largamente minoritária: 5,6 milhões de euros, ou seja, cerca de 27% do total.
Por isso, os maiores negócios da Celce nestes quatro anos foram sendo conseguidos sobretudo ao abrigo de acordos-quadro – dos quais se destacam os contratos assinados com a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça (3,9 milhões de euros, em 2018), a EGEAC (quase 1,9 milhões de euros, em 2018) e a Câmara da Amadora (1,4 milhões de euros, em 2019) – ou por consulta prévia, de que é exemplo o contrato de 1,3 milhões de euros, em 2018, com a Fundação Centro Cultural de Belém.
Nos anos de 2021 e 2022, a facturação por contratos públicos da Celce ultrapassou os 10 milhões de euros – e aí por “responsabilidade” dos contratos com a SCML, que passou a ser, de longe, o seu principal cliente, embora não seja a entidade com maior número de contratos.
Com efeito, o Centro Hospitalar do Algarve é a entidade com mais contratos: 17, dos quais 14 entregues à Celce por ajuste directo, envolvendo quase 3,1 milhões de euros. Deste montante, um pouco mais de um milhão de euros foi por ajuste directo.
De entre as cerca de sete dezenas de clientes institucionais da Celce para a prestação de serviços de limpeza, em termos de volume de negócios destacam-se, além da SCML (9,3 milhões de euros) e do Centro Hospitalar do Algarve, entidades como a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça (3,9 milhões de euros) o município de Lagos (3 milhões de euros), a EGEAC (2,9 milhões de euros), a Fundação do Centro Cultural de Belém (2,7 milhões de euros) e a Câmara Municipal de Lisboa (2,5 milhões de euros, neste caso por concurso público).
No total, a empresa de capitais espanhóis já obteve 213 contratos públicos para limpezas, sendo que um pouco mais de metade (109) foram por ajuste directo, encaixando, por essa via, 17,3 milhões de euros. Os concursos públicos conseguem, no entanto superar esse montante (quase 21,6 milhões de euros), apesar de derivarem apenas de 44 contratos. Os acordos-quadro, num total de 24 contratos, representaram rendimentos de 10,5 milhões de euros. As restantes vias, com 36 contratos, completam uma facturação que já se aproxima dos 56 milhões de euros desde finais de 2015 apenas em negócios com entidades públicas.
Mas Florentino Pérez tem estado a expandir a sua actividade em Portugal também para as residências e lares de idosos, tendo criado no início de 2017 a Clece II – Serviços Sociais. Em Abril deste ano foi anunciado que a empresa do presidente do Real Madrid previa inaugurar, através da marca Clecevitam, uma nova residência de idosos em Cascais, que se juntará às já existentes em Lisboa e Fátima. A expansão da actividade da empresa espanhola neste sector deve, aliás, aumentar, impulsionada pela compra da CSN Care Group no ano passado por 23,8 milhões de euros.