cartas de amor: episódio 06

Maria Alice mente: Estremoz pede-lhe mais

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por Clara Pinto Correia // Agosto 12, 2023


Categoria: Cultura

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CARTAS DE AMOR

Em Julho e Agosto de 2023

Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas

Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores

CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ

UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO

Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira


O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano

Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,

in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)


Maria Alice mentiu a toda a gente ao descrever Alexandre Noronha enquanto antigo namorado da adolescência, mas isto é mesmo assim, meus amigos,

toda a gente mente[1],

e,

se vamos mentir,

que seja por uma causa gloriosa,

como por exemplo a causa de um grande amor que tivemos em meninas e depois nos escorreu entre os dedos como a água do mar[2].

É assim mesmo que Maria Alice descreve a sua mentira inocente na carta que escreve nessa noite ao seu Alexandre, que responde logo, naquele seu estilo – conceda-se – elegante e – sempre – sem esforço, implorando – de joelho no chão, querida Bloody Mary – que, já que – nos seus sonhos – foram os dois, em dias mais simples – e de maior leveza – miúda gira – dois namoradinhos destinados a amarem-se para sempre – então agora deveriam – mesmo – deixar-se de – chamemos-lhes assim – cortesias[3] – e retomar o seu antigo – e despreocupado – tratamento por tu.

Maria Alice responde logo, a mordiscar os lábios cheios e brilhantes,  com uma chama a cintilar dentro dos seus olhos cor de mel,

Olha que, realmente, a escrevermos um ao outro desta maneira, até parecemos mesmo dois namorados do tempo em que nem sequer havia internet, e as pessoas escreviam umas às outras verdadeiras cartas de amor.

Ao que ele responde logo de seguida:

Eu ficaria tão feliz…

E, na manhã seguinte, Maria Alice repara que por baixo – Alexandre Noronha – num tumulto – provavelmente como ela – ainda acrescentou,

Agora que nada me prende – e que tudo posso…


Claro que a história do namoradinho que antecedeu a António José – e se António José roubou aquela mulher linda ao Conde da Orada, então é porque o namoradinho também antecedeu o Conde da Orada – [4]não ficou – nem um só dia – limitada ao pequeno círculo dos foliões que foram à noite praticar skinny dipping nas lagoas da pedreira. À hora do almoço do dia seguinte estava demasiado calor para alguma coisa se mexer, incluindo a alma da mais santa pessoa de Estremoz. De maneira que todas as amigas de Maria Alice, e imensas amigas dessas amigas, deram um grande prazer à Josefa, que tinha tirado do forno nessa madrugada um bolo de noz delicioso[5], e ao Júnior, que adorava ajuntamentos de mulheres porque, ao contrário dos homens, todas o consideravam adorável e lhe passavam empadas inteiras por baixo da toalha enquanto a dona fazia vista grossa. O atelier da PANGEIA era grande, confortável, com uma vista muito agradável para o jardim ao fundo da qual se via o chuveiro da horta, várias cadeiras reclináveis com mesinha de dobrar incorporável… e, benção sublime entre todas, um óptimo ar condicionado.

walnut, nuts, chocolate

Conta lá, Mariazinha, conta lá. Também era alentejano, esse mocinho?

Eu já disse que, a partir de agora, quem quiser saber da minha vida pessoal que me trate por Bloody Mary.  E ele não era nenhum mocinho, porque é uns bons quinze anos mais velho do que eu. Eu é que era uma mocinha, porque só tinha dezasseis anos.”

Ai coisa! E então pinaste com ele aos dezasseis anos?”

Podes crer. Dentro do Castelo de Vila da Feira.

Ai Deus! Mas como?

Então, ele tinha uma chave para ir dar ao gabinete numa das torres onde fazia não sei que estudos, falou-me disso, pareceu-me um bom plano, e fomos lá.”

Ai esta louca… mas então, e tu eras virgem e tudo, e vocês foram e fizeram o servicinho adonde, se foi dentro desse gabinete?”

Ó desgraçada, isso pergunta-se? Pois está na cara que foi logo ali no chão, evidentemente. Onde é que querias que fosse?

Ai valha-nos Deus. Coitadinha.”

Mas coitadinha porquê? Olha que eu não achei nada. Uma coisa tão boa. E tão excitante, naquele chão todo de pedra. E ele com muito cuidadinho, muito mimo, muita conversa bonita… até que eu já estava de cabeça perdida, e então parecia um demónio. Vêem como eu ainda me lembro de tudo? Devia ter ido com ele para Oxford e ficado com ele para sempre. E a propósito, vocês desculpem este esclarecimento, mas é que o meu grande amor não foi nenhum alentejano. Era um historiador da Universidade do Porto lindo, lindo, lindo, de olhos azuis e cabelos loiros, muito inteligente, e sobretudo muito divertido. Estão a ver o meu Conde dos Toiros Bravos, o da Orada? Alguma de vocês lhe chamaria inteligente e divertido? Está bem, a pessoa é novinha, está sozinha, é tolinha, e acabou-se a conversa. E agora o vosso cabo dos forcados? Era divertido e inteligente, ou não era? Não fui ter com o meu amor porque acreditei que ia amar esta criatura para sempre. Infelizmente, com o António José, foi só ele apanhar-se casado comigo e escondido dos vossos olhares em Montréal… parece que ficou estúpido… e sem graça nenhuma… E o Alexandre… que ainda deve estar vivo...”

Ó menina!”, interrompe-a a Josefa, pousando o seu bolo de noz em sinal de protesto.

Todas as mulheres se viram para a Josefa.

A Josefa vira-se para a Maria Alice, meio comovida meio indignada.

Olhe que a menina ou cresce depressa ou ainda se aleija a sério, ouviu? E depois…

Bate com força no ombro esquerdo.

“… e depois, quando precisar de um ombro, acredite que tem aqui o meu, para chorar tudo o que quiser.”

Há uma vozearia feminina que varre a sala inteira, onde mal se ouve a voz assustada de Maria Alice, que, no entanto, pergunta o mesmo do que todas as outras.

Mas em que é que a gente não cresceu depressa, ó Josefa?

Ai então, mas então as meninas não sabem?[6]

Faz-se silêncio na sala, enquanto todos os olhares se cravam na Josefa.

E a Josefa, subitamente em grande pose, canta com uma voz magnífica, de timbre perfeito,

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira, é porque mente!

Depois volta a agarrar nos restos do bolo, diz,

anda, Júnior,”

e desaparece rumo à cozinha, de onde ao fim de dois minutos chega um grito a perguntar quem quer café.

As mulheres, momentaneamente petrificadas, recomeçam a movimentar-se.

Aquilo era o da Florbela Espanca?”

Era. Mas não sabia que a Josefa cantava tão bem o fado.”

Ó filha. Nem eu sabia, e já estou sozinha cá em casa com ela há umas boas semanas.

Podias pensar em usá-la para os teus eventos.”

Agora nem me apetece pensar nisso. Vamos desligar, vá. Isto podia ter sido tudo uma bela história de amor que eu inventei agora mesmo.”

“Pois podia.”

“Eh pá. Ninguém poderia dizer que esta mulher não tinha uma grande imaginação

Nessa noite, Maria Alice conta a Alexandre toda a história daquele grande amor da sua vida, iniciado aos dezasseis anos no chão do Castelo de Vila da Feira. Ele responde que ela já não terá quarenta anos, mas que – se quiser – ainda tem tempo.

E, neste ir e vir de cartas cada vez mais calorosas, Maria Alice vai ficando cada vez mais apaixonada por um homem de olhos azuis, por quem só tem as memórias que anda a inventar agora. O homem deve sentir o mesmo, porque às tantas começa – subtilmente – a tratá-la por “meu amor”. E ela retribui. A mulher de António José começa imediatamente a fazer dieta[7]. Até vai fazer madeixas novas no cabelo e pedir um corte “mais endiabrado”, que a faça parecer ”mais malandra e mais gira”. Até faz a depilação na esteticista, embora costume fazê-la sempre em casa. Põe um novo piercing dentro da orelha. Até fala da verdade sobre esta paixão à Josefa, que acha que tudo aquilo é muito melhor assim, já que, se o tal grande amor do Castelo de Vila da Feira tivesse mesmo existido, a menina que não cresceu que chegue ainda se arriscava em dar com ele a tocar-lhe à porta por causa destas facilidades todas dos Facebooks.

the shadow of a window on a concrete floor

Depois de falar com a Josefa, Maria Alice sente-se suficientemente confiante para pedir sigilo e contar tudo sobre as mensagens que anda a trocar com o seu grande amor secreto às duas melhores amigas que entretanto fez em Estremoz. Ficam logo as duas doidas para conhecerem pessoalmente o famoso designer de ilustração digital em medicina Alexandre Noronha.

Pois foi.

Por causa dos sonhos de Maria Alice sobre a semana em que ele viria visitá-la a Estremoz durante uma semana no mês de Setembro, acabaram os dois por combinar mesmo que ele virá mesmo visitá-la a Estremoz durante uma semana no mês de Setembro.

De dentro da cozinha, com as notas todas perfeitamente no sítio, ainda ecoa o contralto da Josefa,

E se um dia hei de ser pó, cinza, e nada

Que seja a minha noite uma alvorada

Que eu me saiba perder para me encontrar!


Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4 e o Episódio 5 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.


[1] Frase que tem a vantagem de parecer um provérbio tradicional português, embora seja apenas uma gracinha simbolista de CPC – que – como toda a gente sabe – tem a mania de que é boa..

[2] Estão a ver? Estão a ver? “Escorre entre os dedos como a água do mar”? Eles ficaram que nunca conseguiam largar-se quando se conheceram em Cabo Verde, onde todas as noites iam secretamente para a praia. Para a praia, certo? Mas tudo lhes escorreu entre os dedos como a água do mar. Bem esgalhado, malta. Admitam. Um ponto para mim!

[3] No sentido de encurtar um pouco as sempre longas frases de Alexandre Noronha, cortámos aqui a passagem “… – porque as cortesias são para os cavalos – …”)

[4] Nota-se que o criador está a ser infectado pela sua criatura. CPC é absolutamente adversa ao uso de travessões. Levou uma grande rabecada de Assis Pacheco aos 25 anos quando lhe pediu que revisse e comentasse uma pequena novela intitulada UM ESQUEMA, e nunca mais precisou de ouvir mais nada. E vamos mas é tomar já nota deste “nunca mais precisou de ouvir mais nada”. Ainda há de ser útil. Tipo, para a letra de um fado. Ou isso.

[5] É verdade que esta Josefa tanto pode ser Júlio Dinis como Camilo Castelo Branco, mas não se distraiam. Um dia destes ainda pode aparecer aí feita Primo Basílio e depois sempre queremos ver quem é que lhe faz frente. Mas vão treinando. Sabem dizer-nos, porventura, o que significa a palavra PIORRINHA? Ah pois é.

[6] “Então, mas então” é uma expressão enfática local muito do meu agrado.

[7] Reflexo condicionado nas mulheres quando se apaixonam. Bom – ou quando ficam gordas, evidentemente. E lá deixou a gaja passar mais um travessão.

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