Enquanto a autarquia de Loures tratou do lixo da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) com a “prata da casa”, já o município liderado por Carlos Moedas decidiu contratar a “peso de ouro” três centenas de cantoneiros a uma empresa de trabalho temporário, e durante quase três semanas. Custo total da operação: 614.119,32 euros, IVA incluído. O contrato com a Talenter só foi divulgado um dia depois do fim da JMJ, mesmo se começou no dia 24 de Julho, terminando formalmente na passada sexta-feira. E gastar todo este dinheiro do erário público parece ter sido muito mais fácil à autarquia de Lisboa do que indicar ao PÁGINA UM onde se poderiam ver os cantoneiros contratados, cada um, a 108 euros por turno diário. A Valorsul veio entretanto dizer que não houve aumento do fluxo de lixo indiferenciado, e apenas um crescimento de 11 toneladas de plástico e metais nos ecopontos.
O contrato de reforço da limpeza urbana durante a Jornada Mundial da Juventude, que levou a Câmara Municipal de Lisboa a pagar mais de 614 mil euros à Talenter, uma empresa de recrutamento de trabalho temporário, terminou apenas na última sexta-feira, mas o PÁGINA UM nunca conseguiu que a autarquia indicasse onde, em concreto (horas e ruas), se pudesse observar alguns daqueles trabalhadores a exercerem funções.
Na semana passada foram quatro dias de perguntas e “buscas” por alguns dos 300 cantoneiros temporários contratados pelo município liderado por Carlos Moedas, mas nem o gabinete de comunicação da autarquia nem o gabinete do vice-presidente, Filipe Anacoreta Correia, se mostraram interessados em mostrar que houve mesmo trabalho realizado ao longo da última semana pelos cantoneiros da Talenter. Cada um dos trabalhadores temporários – que alegadamente cessaram funções apenas na sexta-feira passada – custou ao erário público quase 108 euros por cada turno diário, correspondendo a quase 13,5 euros por hora.
De acordo com o contrato apenas publicado no Portal Base em 7 deste mês, no dia a seguir ao fim da Jornada Mundial da Juventude, a Talenter comprometeu-se a fornecer trabalhadores para reforço das equipas do Departamento de Higiene Urbana entre 24 de Julho e 11 de Agosto. Ou seja, um contrato de 19 dias, apesar do evento apenas se ter realizado durante seis dias. Contudo, a empresa refere na sua página do Facebook – onde colocou dois posts sobre este contrato, nos dias 1 e 3 de Agosto – que disponibilizou 400 trabalhadores.
Significa assim que o custo total deste reforço da limpeza urbanos rondou os 32.315 euros em cada dia, pelo que se o fornecimento de trabalhadores se tivesse registado apenas em sete dias – visto que após o regresso do Papa ao Vaticano houve uma debandada geral de peregrinos –, o custo para o erário público apenas atingiria os 226 mil euros – porquanto, quase 390 mil euros a menos.
No caderno de encargo do concurso público – para o qual se candidataram quatro empresas, sendo que três eram de trabalho temporário e apenas uma (Suma) trabalha na área dos resíduos – surge referido que a “prestação de serviços terá lugar na cidade de Lisboa, designadamente nos locais onde decorram atividades no âmbito da JMJ”, tendo ficado ainda estipulado o número de trabalhadores: 300.
Sob a supervisão da Divisão de Higiene Urbana da autarquia, no caderno de encargos ficou definido que esses cantoneiros de limpezas seriam distribuídos em três turnos de oito horas: 75 trabalhadores temporários entre as 8 e as 17 horas; outros 75 entre as 17 e as 2 horas da manhã e mais 150 trabalhadores entre as 22 e as 7 horas da manhã. Toda a coordenação e fiscalização, incluindo a verificação da qualidade do serviço e do fardamento e equipamentos de protecção, estavam sob alçada da Câmara Municipal de Lisboa. A autarquia poderia mesmo exigir a substituição de cantoneiros temporários que não apresentassem qualidade e também exigir indemnizações à Talenter por ausências de trabalhadores.
Contudo, uma coisa é o contrato, outra foi o que sucedeu na hora de o PÁGINA UM querer ver os cantoneiros temporários contratados pela autarquia de Lisboa ao longo da semana passada – logo a seguir a ser detectado o contrato de reforço da limpeza. A autarquia fechou-se em copas.
Uma primeira mensagem de correio electrónico na madrugada da terça-feira passada para o gabinete do vice-presidente da autarquia lisboeta, Filipe Anacoreta Correia, não obteve resposta. Nessa missiva questionava-se sobre “a necessidade de reforçar a recolha de RSU [resíduos sólidos urbanos] mais de uma semana antes do início da JMJ e mais cinco dias depois do seu término” e solicitava-se ainda que fossem indicados locais onde se pudessem “observar várias equipas da empresa [Talenter] em funções até à próxima sexta-feira.” Um segundo e-mail, a reiterar o pedido, foi enviado pela manhã de quarta-feira.
Somente na quinta-feira de manhã, a autarquia de Lisboa reagiu, através do Departamento de Marca e Comunicação. Numa longa mensagem, o município da capital justificou a contratação dos 300 cantoneiros por alegadamente a estrutura municipal de limpeza urbana estar “dimensionada para a população residente (cerca de 500.000 cidadãos)”, pelo que “mostrou-se essencial definir um modelo capaz de lidar com um aumento populacional significativo, inerente à JMJ.”
Acrescentando também que se “antecipou um modelo de suporte do serviço de limpeza urbana e de remoção de resíduos, por forma a servir convenientemente os visitantes e especialmente os residentes locais”, e se privilegiou “sempre a sustentabilidade ambiental”, incentivando “a máxima separação possível”, o que, “naturalmente, acrescentou complexidade à operação.”
Embora não apresentando qualquer estudo, análise ou relatório que justificasse a necessidade de uma contratação tão avultada, nem como se chegou ao número de 300 cantoneiros, a mesma fonte da autarquia afiançou que o “planeamento foi realizado ao longo de vários meses e coordenado com os demais serviços municipais e as 24 juntas de freguesia da cidade”. Além de outros considerandos, o município garante que “durante o período de 24 de julho a 7 agosto, a empresa contratualizada [Talenter] participou na distribuição de mais de 11.000 contentores, na limpeza dos principais locais de passagem dos peregrinos – uma medida imprescindível para garantir uma via pública salubre e transitável – e na manutenção dos espaços dos eventos.”
Porém, quanto ao pedido em concreto do PÁGINA UM – isto é, visualizar e comprovar a existência de equipas da Talenter ainda a trabalhar durante a passada semana, em cumprimento de um contrato público ainda em vigor e que implicava um pagamento diário de 32.315 euros –, o Departamento de Comunicação da autarquia nada disse. E o PÁGINA UM insistiu de novo.
E continuou o jogo do rato e do gato.
Salientando-se que não houvera resposta ao pedido principal, o PÁGINA UM perguntou em concreto, pelas 15:09 horas da passada quinta-feira, onde se poderiam encontrar esses trabalhadores temporários. E pedia-se também se houvera negociações com os funcionários camarários de limpeza urbana para a eventual realização de horas extraordinárias antes da opção por um concurso público que levou à contratação da Talenter, e que implicou a contratação de cantoneiros a 108 euros em cada turno.
A resposta da autarquia chegou pelas 17:50 horas: o Departamento de Comunicação da autarquia acrescentou apenas que, estando o contrato “em vigor até esta sexta-feira (…) os trabalhadores contratados estão ao serviço até essa data em vários locais da cidade”.
Pelas 18:27 horas, o PÁGINA UM insistiu em saber os locais em concreto; que fossem indicados três. A resposta só veio pelas 21:47 horas desse dia, quinta-feira. Numa curta mensagem, o Departamento de Comunicação da Câmara Municipal de Lisboa informava que “alguns dos locais em que amanhã, sexta-feira, estarão a trabalhar as equipas, são a Baixa de Lisboa, o Rego e o Parque Tejo”, não indicando horas nem as ruas em concreto, nem disponibilizando qualquer contacto para combinar encontro. Aliás, as missivas do Departamento de Comunicação da autarquia nunca vieram assinadas.
O PÁGINA UM passeou pela Baixa de Lisboa e pelo Parque Tejo durante a manhã e a tarde de sexta-feira passada em busca de trabalhadores temporários. Não viu ninguém. No Parque Tejo, aliás, quase não se via vivalma. Na Baixa, tudo pareceu normal, e não se viu qualquer equipa de cantoneiros que pudesse sugerir serem trabalhadores temporários da Talenter. Saliente-se que a limpeza dos arruamentos é, em grande medida, já feita sobretudo por funcionários das Juntas de Freguesia, mas a autarquia de Lisboa ainda tem 922 cantoneiros, de acordo com o seu mapa de pessoal.
Portanto, limpeza eficaz, mesmo, parece ter sido apenas dos mais de 614 mil euros do erário público, ao mesmo tempo que se constata que a entidade pública que os distribuiu– Câmara Municipal de Lisboa – em benefício de um terceiro se mostrou zelosa em obstaculizar qualquer possibilidade em se confirmar se houve ou não uma correcta aplicação de dinheiros públicos.
Até porque, entretanto, também na passada sexta-feira, a Valorsul – a empresa pública de tratamento de resíduos urbanos da Grande Lisboa – acabou por divulgar que nos primeiros oito dias deste mês “não se registou qualquer variação na receção de resíduos urbanos indiferenciados” na central de incineração de São João da Talha. Ou seja, a JMJ não teve qualquer impacte relevante no fluxo de lixo e em necessidades especiais de limpeza urbana.
Apenas se observou, segundo a Valorsul, um aumento de 22% na recolha de plástico e metal nos municípios de Lisboa e Loures face ao ano anterior, mas isso apenas nos ecopontos usados pelos peregrinos, turistas e residentes, e que somente necessitam de ser esvaziados com recurso a camiões e recursos humanos próprios do Departamento de Higiene Urbana do município. Ou seja, enquanto no ano passado, entre 1 e 8 de Agosto tinham sido recolhidas 70 toneladas de embalagens nos ecopontos amarelos destes dois munícipios, no período da JMJ recolheram-se mais 11 toneladas, enquanto “voavam” 614 mil euros em mais um estranho contrato público.
Note-se que a autarquia de Loures não terá contratado qualquer reforço similar à do município de Lisboa. Numa nota daquele município, e num vídeo colocado no Facebook na quinta-feira passada, a autarquia liderada pelo socialista Ricardo Leão diz que “foram encaminhados para a Valorsul cerca de 120 toneladas de resíduos indiferenciados e cinco toneladas de embalagens, resultantes das 24 horas de ocupação daqueles terrenos, acrescentando que “esta intervenção foi executada por uma centena de trabalhadores da Câmara Municipal de Loures e dos Serviços Intermunicipalizados, apoiados por diversos meios mecânicos”.