Já estivemos bem mais embrulhados, em panos, rodeados por fibras, delicada ou grosseiramente entrançadas, a cobrir todos os objectos e todos os cantos e recantos. Mas eles, os panos, ainda lá estão.
Estão descidos sobre as nossas janelas, estão repousados sob os nossos pés, estão embrulhados em cadeiras e sofás, capturados entre o colchão e a cama, até invisivelmente entalados em recheios de paredes e tectos. Lã de rocha, lã de vidro.
Como a roupa que escolhemos para nos envolver, as casas pedem o carinho do tecido. O abafo de roupa pesada, gramagem alta, ou a frescura de malhas, finas e abertas.
O tecido rodeia-nos, para dar silêncio. Poucos se apercebem que o tecido nos foi sendo retirado das vidas, quando fomos recusando os naperons de crochet que avós tricotavam, para ali pousarem, na televisão, no aparador, na mesa. Despimos as casas, e elas, nuas, se envergonham agora de frio, com gritos a baterem contra a sua pele e a atordoarem-nos os ouvidos.
Deixem a vossa casa vestir-se, e ela absorverá o som, e dar-vos-à sossego.
O fio de algodão em nós, padronizados em matemática, encostavam-se aos vidros para filtrar luz e a temperatura.
O peso ondulado da cortina, em queda junto à parede, guardava-nos o pudor, nos resguardava a intimidade.
O laço do felpo cobrindo o chão em alcatifa.
O ponto apertado do tapete, a fita leve da passadeira.
A nódoa de vinho tinto naquela toalha de mesa.
Os pêlos da gata no canto das mantas, na cama.
O vaivém das flanelas e dos linhos, em picos, nas primaveras e nos outonos.
Pano. E aquele respirar junto com o mundo, no balançar do cósmico vazio.
E no fim, a mortalha, embrulhem-me em musselina, e enterrem-me de pé, com uma árvore plantada na moleirinha.
Quero sair da terra depois de morta e espreguiçar os braços no ar…
… e no meio, o toque gentil do tecido, subindo o corpo. E só retirado se me puder vestir contigo.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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