Em 17 de Novembro de 2020, o recém-empossado presidente do Peru, Francisco Sagasti, deu ordens para suspender um programa de administração profiláctica e terapêutica baseada na ivermectina, que começara a ser usada em Maio. Um estudo publicado este mês numa revista científica do grupo Springer Nature (a dona da Nature) revela que, afinal, a ivermectina estava a dar excelentes resultados e que a decisão política se tornou um desastre: o Peru acabou por ser o país mundial mais atingido pela pandemia. Os autores do estudo científico apontam críticas ao reguladores e à indústria farmacêutica por diabolizarem a ivermectina, e falam mesmo da pressão da Merck, que detinha a patente deste fármaco antes de ser oferecida nos anos 80 para combate à cegueira-dos-rios. A Merck estava então interessada no seu novo fármaco, o molnupiravir, que já lhe fez facturar 5,7 mil milhões de dólares. Mas não fará muito mais, porque, entretanto, apesar dos influencers da Medicina, foi já retirado do mercado por ineficácia.
Uma análise revista pelos pares (peer review) publicada este mês na conceituada revista científica Cureus – que integra a editora Springer Nature, a dona da Nature – sugere que a decisão do antigo presidente peruano Francisco Sagasti de suspender em Novembro de 2020 o uso de ivermectina como terapêutica preventiva contra a covid-19 terá causado uma escalada de mortes naquele país sul-americano.
O Peru destaca-se nas estatísticas internacionais como o país com maior taxa de mortalidade atribuída à covid-19 com um espantoso rácio de 6.572 óbitos por milhão de habitantes – que corresponde a 0,65% da população –, quase duas vezes mais do que o valor registado em Portugal.
Apesar de contar com apenas 33 milhões de habitantes, a mortalidade no Peru associada oficialmente ao SARS-CoV-2 foi extremamente elevada: 221.364 óbitos, ficando apenas atrás dos Estados Unidos (quase 1,17 milhões de mortes), Brasil (um pouco menos de 705 mil mortes), Índia (quase 532 mil mortes), Rússia (400 mil mortes) e Reino Unido (cerca de 228 mil mortes).
No entanto, a generalidade destes seis países registou taxas de mortalidade entre os 2.500 óbitos por milhão e os 3.500, com excepção da Índia que, apesar do mediatismo dos números absolutos (por ter uma população de 1,4 mil milhões de habitantes) contabilizou somente uma taxa de 378 óbitos por milhão.
O estudo com data de publicação na revista científica, desenvolvido por três investigadores, associados à Canadian Covid Care Alliance, não se circunscreveu porém a uma mera análise à mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2, abrangendo a mortalidade por todas as causas e especificamente a que atingiu os maiores de 60 anos, para evitar factores estatísticos de confundimento. E teve sempre como referência a suspensão do uso da ivermectina – um fármaco considerado uma das wonder drugs, mas que recebeu acérrimos ataques quando começou a ser usado off label por diversos médicos e mesmo por departamentos de saúde de alguns países.
E até foi o caso do Peru. Com o eclodir da pandemia, que registou o primeiro caso que atingiu este país no final de Fevereiro de 2020, as mortes começaram a subir, e mantiveram-se elevadas, acima dos 600 óbitos por dia (equivalente a cerca de 200 em Portugal), mesmo com um forte lockdown iniciado em 16 de Maio e que se estendeu até final de Junho. Mas enquanto decorreriam essas restrições, o Ministério da Saúde do Governo peruano, então liderado por Martin Vizcarra, implementou um programa nacional de tratamentos hospitalares e ambulatoriais com ivermectina, embora em algumas regiões o fármaco já estivesse sendo usado.
Embora a distribuição de ivermectiva tenha sido diferente em alguns dos 24 estados peruanos, numa dezena acabou por ser alvo de um programa específico de larga escala dinamizado pelo Ministério da Defesa, a Mega-Operación Tayta (MOT), em colaboração com agências governamentais.
Segundo os autores do estudo publicado na Cureus, “o objectivo do MOT era alcançar todas as partes de uma região-alvo usando equipas de resposta rápida em parceria com as autoridades locais de saúde”, e sempre que “essas equipes detectaram casos de covid-19 em cada casa administraram ivermectina aos doentes e familiares e forneceram comida para encorajar o seu isolamento por 15 dias”.
Tendo em conta que o uso de ivermectina para combate à covid-19 teve inícios e extensão distinta nos diversos estados peruanos, os investigadores conseguiram assim determinar a evolução da mortalidade em função da utilização daquele fármaco, retirando quaisquer factores externos que pudessem levar a conclusões enganosas.
De acordo com os resultados do estudo, nos 10 estados peruanos abrangidos pelo programa MOT, com a introdução da ivermectina como terapêutica e profilaxia, o excesso de mortes por todas as causas caiu em média 74% em 30 dias e em 86% ao fim de 45 dias após a data do pico de mortes. Para os 14 estados com distribuições de ivermectina administradas localmente, o excesso de mortes caiu 53% e 60%, respectivamente ao fim de 30 e 45 dias.
Em Lima, a capital do Peru, onde os tratamentos com ivermectina foram adiados até Agosto de 2020, quatro meses após o surto inicial de pandemia, o excesso de mortes foi mais brando, caindo apenas 25% ao fim de 45 dias após a data de pico de mortes, que se verificou em finais de Maio. Esta evolução ocorreu sem existir outras explicações fundamentais, tais como a existência de novas variantes ou alterações na mobilidade da população, ou até mesmo de acréscimos de imunidade natural ou de grupo.
Os autores do estudo – os norte-americanos Juan J. Chamie e David E. Scheim e a canadiana Jennifer A. Hibberd – concluem que, no Peru, “o uso profilático de ivermectina pode ter contribuído para a redução média de 74% no excesso de mortes 30 dias após o pico de mortes nos 10 estados abrangidos pelo programa MOT”, enquanto a redução média terá sido de 53% no excesso de mortes naquele período nos estados.
Porém, com a destituição em Novembro de 2020 de Martin Vizcarra, e a chegada ao poder de Francisco Sagasti, que tomou posse no dia 17 daquele mês, toda a estratégia baseada no uso de ivermectina foi abandonada, no decurso de uma forte campanha mediática que diabolizou aquele fármaco, criado pela Merck, mas já sem patente. E, com efeito, de forma quase imediata, como mostram os autores da análise publicada na revista Cureus, a mortalidade total começou a crescer repentinamente até Fevereiro de 2021, conforme um gráfico que apresentam.
E, efectivamente, os casos mortais no Peru, de acordo com os dados do Our World in Data, que estiveram abaixo dos 150 óbitos diários entre Outubro e finais de Dezembro de 2020, dispararam para valores absolutamente anormais. Em Fevereiro foram atingidos valores diários acima dos 500 óbitos atribuídos à covid-19, e em finais de Abril houve dias a superarem as 800 mortes.
Os autores do estudo relatam também os bons resultados do uso de ivermectina na província indiana de Uttar Pradesh, e denunciam também a manipulação e erros em ensaios clínicos que acabaram por afectar a reputação deste fármaco de baixo custo.
“Nas últimas décadas, os medicamentos genéricos geralmente se saíram mal perante a concorrência com ofertas patenteadas, com base na infeliz vulnerabilidade da Ciência à mercantilização e à captura regulatória”, adiantam os autores, exemplificando com o caso de uma terapia tripla para úlceras pépticas, que apresenta uma eficácia de 96%, e que agora é o padrão terapêutico, mas cujo uso foi sendo adiado até que as patentes de dois medicamentos paliativos mais vendidos para esse problema gástrico expirassem.
E apontam ainda que “tal viés potencial contra a ivermectina foi sugerido por um comunicado de imprensa de 4 de Fevereiro de 2021 da Merck, de que estava desenvolvendo sua própria terapêutica patenteada para covid-19”, alegando que havia “uma relativa falta de dados de segurança” para a ivermectina.
Com efeito, a norte-americana Merck – que oferecera a patente da ivermectina para o Programa Africano de Controle da Oncocercose (cegueira dos rios) – haveria de conceber um fármaco, o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, que obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.
Recorde-se, porém, que o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só no ano passado.