CRÓNICA DE UM PASSEIO DOMINICAL

Os verdes monos de Lisboa: feios, porcos e maus

por Pedro Almeida Vieira // Agosto 20, 2023


Categoria: Opinião

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Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo de luz suave, em que, sobre os telhados da cidade interrompida, o azul do céu sempre inédito fecha no esquecimento a existência misteriosa de astros…“, assim surge Lisboa retratada no Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, pseudónimo de Fernando Pessoa.

E acrescentava o grande poeta: “É domingo em mim também…

Rua de Santa Catarina (Miradouro do Adamastor).

E em mim também é domingo. E, por isso, caro leitor, neste azulado dia, dei por mim deambulando por esta Lisboa antiga, com supostos toques de modernidade. Porém, cada vez mais porca. Mais feia. Mais má. E a escrever sobre o que vi. E sobretudo sobre o que senti.

Confesso que tenho um defeito: embora costume andar muito em nefelibatices, sigo a praxe de escrutinar o chão, ou aquilo que o rodeia, mais do que esticar o nariz para o céu. Mesmo nos dias como os de hoje: lindos de querer mais.

E, hélas, irrita-me esta Lisboa que me faz sempre recordar o olhar crítico do meu oitocentista amigo Guilherme Centazzi que, no seu romance A alma do justo, publicado em 1861, assim já retratava a capital: “Lisboa, que todos nós estamos vendo, e que os estrangeiros e os vindouros hão-de julgar pelo que lerem… Lisboa (não se faça do preto branco, nem se queira embutir gato por lebre), examinada em globo é uma coisa; em detalhe, é outra. Em globo, ninguém lhe negará aparato, beleza, opulência, grandeza, etc., etc. Em detalhe, de fora para dentro, é tal e qual como esse famigerado siciliano que, no domingo, se paramentava com luzentes vestiduras, sem despir a camisa com que tinha andado a mariscar os anzóis durante a semana. Lisboa, em síntese, é majestosa; em análise, é um covil lastimoso de miséria e lama.

Eis-me então deambulando hoje por esta Lisboa antiga do século XXI, embora com milhões para limpezas. E que teve mais 614 mil euros em reforço que voaram para uma empresa de trabalho temporário por causa de uma semana de Jornada Mundial da Juventude. Sim, o mesmo município que destinou só para este ano quase 33,8 milhões de euros para a limpeza urbana. Sim, o mesmo município que, em Abril passado, aprovou a transferência de 2,4 milhões de euros até 2025 para as juntas de freguesia da cidade.

Aliás, é sempre muito instrutivo ler os comunicados do Departamento de Marca e Comunicação da autarquia, que nos custará 2 milhões de euros só este ano. Coisa pouca. Na mesma notícia de finais de Abril, assim catalogam os comunicados, escreve alguém desse departamento que “para responder ao aumento da produção de resíduos, provocados pelo turismo, foram ainda aprovados na reunião os contratos interadministrativos para um aumento das rotinas de limpeza urbana, como o despejo de papeleiras e varredura de vias. Estes contratos totalizam 7,858 milhões de euros para as 24 Juntas de Freguesia.”

Rua do Almada, Bica.

E acrescentam ainda que “as Juntas de Freguesia estão na primeira linha de contacto com os lisboetas, verificando as necessidades imediatas nos seus territórios. Neste sentido, há aspetos específicos no setor da higiene urbana, como a recolha de resíduos, que podem ter uma resposta mais rápida e eficaz por parte das juntas.”

Dinheiro não falta. Aliás, parafraseando Almada Negreiros: “Quando eu nasci, as decisões que hão-de limpar as ruas já estavam todas tomadas, só faltava uma coisa – limpar as ruas.”

Eu, morador lisboeta desde os idos de 1994, na antiga freguesia de Santa Catarina, agora Misericórdia, tenho vindo a pedir misericórdia para uma cidade decente, com um pingo de estética e aprumo. Veja-se: não se peça demasiado a autarquias, quer sejamos munícipes quer sejamos fregueses.

Do Governo deve exigir-se mais, muito mais, mas das Câmaras Municipais e das Juntas de Freguesia somente que nos limpem e cuidem do espaço público, e que não chateiem o nosso quotidiano. Na verdade, espera-se deles que, não conseguindo facilitar-nos a vida, pelo menos não a compliquem.

Rua da Bica de Duarte Belo

Ora, durante muitos anos, as autarquias de Lisboa (a mastodôntica e as mais pequeninas), pelo menos não complicavam. Mas também os problemas eram menores. A turba turística que surgiu na última década e meia, que nos traz coisas boas, também as trouxe menos agradáveis, sendo a limpeza urbana uma delas.

Ora, e que fizeram as autarquias alfacinhas perante este novo problema, sabendo também que cobram agora 2 euros diários por cada turista que pernoita. Nas zonas históricas eliminaram em 2019 (salvo erro) a recolha selectiva periódica de recicláveis e a diária de indiferenciados, através de sacos resistentes disponibilizados pelos serviços camarários, e começaram a pespegar, sem nexo e sem qualquer avaliação, contentores verdes, em grande parte “colando” estruturas metálicas em edifícios privados.

Recordo-me ainda que, na minha rua, e depois de muitas reuniões – era Duarte Cordeiro, actual ministro do Ambiente, o vereador responsável na autarquia por este feito –, queria a Junta da Freguesia da Misericórdia grudar três contentores verdes mesmo ao lado da porta de casa.

Eu, que nem sou muito sensível a lixos – porque já muito vi, como se pode comprovar em intervenção histórica de 1994, histórica por já estar na RTP Arquivos –, sabia muito bem no que aquilo daria, mesmo a despeito das promessas de limpeza, desinfecções, fumigações, tudo asséptico, e nem sei já bem se me prometeram lavar o rabinho com água de rosas.

Rua da Emenda, Chiado.

E, portanto, lá tive eu de arrancar à força de braços, em certo dia de Fevereiro de 2019, as ditas estruturas de metal que me quiseram prender ao meu edifício, que nem sequer era público, e nem autorização pediram ou aviso deram, e entregando-as assim na Junta de Freguesia da Misericórdia, sob competente documento, a ser assinado, à laia de guia de devolução.

Convém aqui declarar que o “à força de braços” se deveu mais à ainda frescura do cimento, e não tanto aos meus poderes físicos, apesar de ter compreendido melhor a activação emocional do doutor Bruce Banner quando o chateiam…

A doutora Carla Madeira, a “presidenta da Junta”, bem ameaçou que havia um processo judicial contra mim, mas deve ter dado no mesmo dos dois que o juiz Sebastião Póvoas, ex-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, me pôs: em água de bacalhau. Ou, se se quiser, deram com os burrinhos na água.

Bendigo, quase benzendo-me, aquela tarde em que arranquei pela raiz aquelas estruturas, de contrário, estaria agora, e irremediavelmente, com os verdes monos acoplados à porta de minha casa, competindo em desmazelo, feiura e perigo à saúde públicas com os que se espalham nas demais vias de Lisboa antiga, mesmo se vazios de lixo. Na verdade, conspurcados, esventrados e espalhados como quase todos estão, admira-me até que nenhum almeida – atenção, eu sou Almeida! – os varra dali…

Agora a sério: aquilo que se assiste, ou já nem se nota, tamanho o desleixo, é de uma atroz falta de sentido de serviço público quer da Câmara Municipal de Lisboa e das suas Juntas de Freguesia – neste caso, da Misericórdia.

Ali nas redondezas de onde vivo, até já dava de barato aceitar a triste ideia, com absoluta ausência de sentido estético, em se colocar ecopontos subterrâneos (mas com a parte metálica bem visível, na parte leste do pequeno largo na desembocadura da Rua de Santa Catarina com a Rua Marechal Saldanha, tendo a norte o restaurante da Associação Nacional das Farmácias, a este o Hotel Verride e a sul o miradouro do Adamastor. Quem foi a aventesma com aquela ideia? Quem foi a criatura que a aprovou?

Travessa das Mercês, Bairro Alto.

Ainda mais, colocaram depois, em redor, mais uns famigerados monos verdes. Á volta, e alguns já em cima. Deve ser por alguma combinação que ainda não descortinei.

Diz o provérbio lusitano que quem torto nasce, nunca ou tarde se endireita. Curiosamente, os brasileiros, aprendi há anos, são menos esperançosos, e dizem que aquilo que torto brota não tem remissão: nunca se endireitará.

E assim, cá temos, todos têm, as ruas de Lisboa com contentores verdes.

Quer dizer, verdes ou esverdeados de diversas tonalidades, consoante os grafittis, o verdete, o sujo encardido, e os lixos que escorrem e borbotam.

Lisboa antiga está, portanto, assim: com uma paisagem de contentores feitos monos. Muitos já sem tampa, outros esventrados, outros tantos deslocados das tais estruturas metálicas. Todos sujos. Muito sujos.

É certo que não seria suposto a tal água de rosas para lavar contentores, mas o desmazelo é absoluto. As pedras das estradas em derredor, e a calçada dos passeios, enfim, têm agora entranhado não um passado de pés e pneus, mas sim as cores e os odores das águas lixiviantes. Um nojo. Uma vergonha. Um perigo público, sobretudo quando paredes-meias com restaurantes, comércio… e portas de casa. Quem foi que disse mesmo “aqui mora gente”?

Aquilo que se mostra mais surreal é que, sobretudo na Bica, pouco antes da operação de embutimento (ou embrutecimento) dos contentores nas paredes, a autarquia tinha despendido não sei quanto (mas serão sempre milhões, que tudo o que for inferior não é obra digna de se fazer) a redefinir e pavimentar passeios.

Travessa da Espera, Bairro Alto.

Nas zonas históricas, os passeios são agora para os monos verdes, tal como há umas décadas eram para os pneus de carros mal estacionados. Agora como antes, não havendo passeios, os transeuntes – feita palavras, mas que serve para o efeito de jocoso jogo de palavras a uso – transitam por onde o tráfego passa ou passeia. Um salutar convívio.

E, portanto, por vezes é uma sorte se alguns dos monos se forem perdendo, ou se se retirarem para uma troca nunca mais feita. Sempre se livram os passeios, embora as tais estruturas se mantenham perenes.

Será talvez interessante classificar como património essas estruturas para que os vindouros se mostrem estupefactos com as burrices cometidas em pleno século XXI. A conservação da estupidez tem uma função didáctica para o futuro.

Eu não consigo imaginar que Moedas e a sua equipa de vereação andem por Lisboa. Ou um qualquer governante, ou político (e de qualquer quadrante).

Eu acho que não andam. Não podem andar, e ainda mais num dia como o de hoje, bonito, azul, brilhante, mas com as ruas desmazeladas e os omnipresentes monos sujos, porcos e maus e maltratarem uma cidade que até tem recursos financeiros para se lavar e limpar.

Rua do Norte, Bairro Alto.

Vejo na Pordata que Lisboa teve 13.334.237 milhões de dormidas em 2022. Só aqui, em taxas de turismo, Carlos Moedas – sem incluir os munícipes, que pagam taxa de recolha e tratamento de lixos por indexação à conta da água – sacou quase 27 milhões de euros.

Ora, façamos ainda umas contas para perceber o desafogo autárquico com base no tarifário do serviço de gestão de resíduos urbanos em Lisboa relativo a 2022, composto por tarifas variáveis e tarifas de disponibilidade. Sabendo-se que cada lisboeta, segundo a EPAL, consome 135 litros de água por dia, e que a população da capital é de cerca de 546 mil habitantes, temos então uma receita anual de 4,6 milhões de euros apenas de tarifas variáveis. Considerando a tarifa de disponibilidade, e só contando habitações (cerca de 320 mil), a autarquia encaixa mais quase 8,6 milhões de euros.

Portanto, só por turistas e habitantes, a Câmara Municipal de Lisboa saca mais de 30 milhões, depreendendo que mais uns quantos milhões surgirão de pagamentos do sector de serviços, sobretudo comércio e restauração.

Não se diga, portanto, que não há dinheiro para comprar uns esfregões para lavar decentemente, de quando em vez, os tampos dos contentores que, obrigatoriamente, são tocados por quem quer colocar os sacos de lixos nos verdes monos.

Tantos mil cuidados na pandemia, e estes atentados à saúde pública ao virar de cada esquina… e não só nas esquinas.

Rua do Diário de Notícias, Bairro Alto.

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