Eu sou um artigo em si mesmo, porque não consigo explicar e descrever todas as dúvidas e constrangimentos que me assaltam em relação ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Escrevi e descrevi inúmeras situações que careciam de mudança. Tentei explanar, de modo claro, as opções que nos conduziam a erros de postura e de funcionamento no ideológico e idealizado serviço de prestação pública que dá pela sigla SNS.
Vi como gente dedicada se fartou, testemunhei o cansaço dos prestadores, a destruição de instituições de referência. Não importava ter ganhado prémios, ter sido o melhor, ter apresentado resultados fantásticos, havia sempre almas destruidoras que chegavam e tomando de assalto o poder decidiam pelo arraso e a destruição.
Recordo a construção da cirurgia de ambulatório do Santo António, gerida pelo Dr. Paulo Lemos. Demitido sem razão lógica após a construção. Eu próprio fui afastado da liderança daquilo que ajudei a construir com centenas de horas de dádiva aos Covões – por mim e internos e jovens especialistas. Servi para a construção, já para a manutenção foi o vê-se-te-avias. Só que dei centenas de horas ao Estado e à instituição que defendia.
Arrependimento não mata – ou estava fulminado! Fiz parte do grupo que viu premiado o Hospital de Águeda em 2005. Fechado como instituição. Fiz parte do grupo que elevou o Hospital José Luciano de Castro, em Anadia, a melhor hospital nacional, aferido pelos doentes em 2013 e 2014. Foi entregue à gestão da Misericórdia em 2016, sem nunca mais se atingir este padrão.
Sou testemunha da destruição do projecto do Hospital de São Sebastião na Vila da Feira. Vi como se acabou com o melhor hospital português em 2018 – Braga.
Urgências exemplares, tivemos uma nos Covões e outra em São José. Ambas sofreram reduções e compromissos que as limitaram. No caso dos Covões, estamos mais ou menos ao nível do enterrado, o subaquático.
O SNS foi arrasado por gestão inadequada, falta de prestação de contas, falta de exigência sobre os que abusavam do estatuto de funcionário público. Há uma infeliz sequência de premiar os comportamentos desadequados e não apoiar os prestadores interessados e com espírito de serviço e de missão.
O prémio para muitos chegou antes do trabalho realizado. A construção de Centros de Responsabilidade Integrados (CRI) foi uma lambada no empenho dos que ficaram fora das mamas de distribuir dinheiro. Os centros hospitalares demonstraram à saciedade como instituições se tornavam ingovernáveis.
O encerramento de serviços de atendimento permanente e de pequenas urgências, associados com a falta de consultas abertas nos Centros de Saúde e nas Unidades de Saúde Familiar (USF), conduziu à demência de atendimentos nas urgências. Há milhares de pessoas que recorrem a urgências para ver resolvido o seu pequeno problema, mas a minha dor é sempre um “por maior”, e é intransmissível, e é condutora de ansiedade.
Podíamos resolver esta questão, mas há um desinteresse evidente da tutela e dos actores políticos. Compromissos inconfessáveis com a privada? Opção pela destruição progressiva do SNS? Antes havia mais hospitais, mais camas, mais atendimentos, menos médicos e menos enfermeiros, muito poucos técnicos de saúde, diminuta presença de administradores de carreira e, de facto, entre 1975 e 2001, nunca ouvi encerramentos de instituições nem programas de mudança de lugar de atendimento.
As instituições são muito o resultado das pessoas que aí trabalham, e, se permitimos o absentismo, não colocamos limite às ausências e às baldas a preguiça corrói. A liderança vigiada, que presta contas, implica a presença de capacidades de decisão, de qualidades de gestão e de opções financeiras e ainda algumas escolhas de protagonistas.
A incoerência é outra das traves mestras do constrangimento. Criam-se fronteiras ao desempenho de alguns e depois roga-se pelas suas habilidades numa porta ao lado onde faltam os certificados e os da primazia. A saúde ruma para um paradigma que não me agrada, mas infelizmente o problema começa a parecer-me transversal.
Diogo Cabrita é médico
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