CARTAS DE AMOR
Em Julho e Agosto de 2023
Com 40 graus à sombra e luz de dia até às 22 horas
Especialmente do PÁGINA UM para a SILLY SEASON dos seus leitores
CLARA PINTO CORREIA traz-nos, em directo de ESTREMOZ
UM FOLHETIM TÃO ESCALDANTE COMO O VERÃO NAS PROFUNDEZAS DO ALENTEJO
Baseado, uma vez mais, numa história absolutamente verdadeira
“O cágado não sobe sozinho nas árvores, alguém o colocou lá.” Provérbio angolano
Traduzido do umbundo Mbeu okulonda ko cisingi, omanu vakapako por José Eduardo Agualusa,
in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS (2011)
Já na praia, depois de muitos mojitos, depois de muitos mergulhos na água fria, depois de muitos cigarros que Maria Alice partilha com ele, Alexandre não faz nenhum dos números físicos risqués dentro de água, ou na areia molhada, que descreveu por carta a Maria Alice com tão bela eloquência[1], em resposta à forma subtil como ela previamente o avisara, também numa das suas cartas, de que tem por hábito fazer topless na praia – assim como tem por hábito não usar sutiã – e não se sabe de onde veio este travessão. Mas enfim, pelo menos Alexandre começou a ter uma conversa mais pessoal. A tónica em que ainda não parou de bater mais vezes, no entanto, não foi a do seu divórcio recente da Gi Medeiros[2], nem a da sua relação agora mais complicada com a Margarida, a linda filha adolescente de ambos, já toda tão menina-mulher.[3] Claro que, levando todo este sofrimento silencioso em linha de conta[4], talvez fizesse sentido não esperar que Alexandre Noronha lhe falasse já dos sonhos que ambos tiveram vinte anos antes. O problema é a única coisa que ele lhe diz, uma vez e mais outra e mais outra, é que na realidade anda sempre stressado porque na sua empresa trabalham 1200 pessoas. “E isto quer dizer que há 1200 pessoas que dependem de mim, e eu penso nisso todos os dias.”
Para não dizer “vai ao psiquiatra tratar da tua ansiedade” porque sabe que os homens não toleram ouvir “psiquiatra”, Maria Alice, toda esplendorosa no seu novo topless (comprado de propósito para o glamour do momento), diz antes “então aproveita agora, que estás aqui comigo para namorar, não é para trabalhar, e ambos fizémos o pacto de mantermos os nossos telemóveis desligados.”
Palavras não são ditas, e o telemóvel de Alexandre desata a tocar – aos berros.
Ele olha para a chamada, fica vagamente pálido, vagamente trémulo, diz “epá desculpa, mas esta eu tenho mesmo que atender,” levanta-se num pulo e vai atender para longe. A chamada é tão longa que Maria Alice tem tempo de ir tomar banho. Quando regressa, Alexandre está a enfiar a sua tralha toda para dentro do seu saco de praia, e a murmurar, numa aflição, “tenho que ir já para Lisboa… tenho que ir já para Lisboa… 1200 pessoas que dependem de mim, tenho que ir já para Lisboa…”
“Tudo bem, mas… vais a Lisboa e voltas, é isso?”
Alexandre nem responde.
Leia também o Episódio 1, o Episódio 2, o Episódio 3, o Episódio 4, o Episódio 5, o Episódio 6 e o Episódio 7 do folhetim de Verão do PÁGINA UM da autoria de Clara Pinto Correia.
[1] É verdade que foi ela quem deu o mote. Mas ele agarrou-o logo no ar, e nas suas cartas seguintes deu-lhe logo umas voltas de tal forma brilhantes, que Maria Alice, sendo culta e tendo sido obrigada a estudar francês durante vinte anos, neste momento já começa a pensar o seguinte: “Isto parece a história do Cyrano de Bergerac… o gajo escrevia tão bem… e vinha desconfiado de que alguém escrevia por mim… ai que horror… será que era outra pessoa quem escrevia por ele?”
[2] “Ah – mas eu agora – agora, Bloody Mary, eu não – eu não consigo – eu não consigo nem falar-te – da Gi – foi tudo tão duro – e – e – e – e tão – sabes – tão recente,” repete ele, enquanto ela tenta perceber se o seu amante que ainda não o foi – e agora parece ensaiar-se já para nem o ser – mas eu por enquanto não quero pensar nisto – enfim, pronto, eu por mim só gostava de saber se ele está a gaguejar ou a usar travessões.
[3] Menina-mulher é deveras piroso, mas neste ponto vamos todos continuar a disfarçar para quê? Já todos percebemos que Alexandre Noronha, a quem é atribuída estúltima expressão, possui um discurso que resvala facilmente para o piroso. Note-se que deveras também não é flor que se cheire, e que do recurso a estúltima quanto menos se falar melhor, e no entanto ambos os termos existem na língua portuguesa. Enfim, pertencendo a frase em causa ao discurso indirecto, façam como eu e culpem o narrador. Ou é um autor ladino do século XIX determinado a não se deixar apagar pela História, ou é uma Autora dos nossos dias de tal forma ressabiada que deixa minas e armadilhas de estilo duvidoso em toda e qualquer passagem potencialmente conotável com o masculino (e concedam, já agora, que este “potencialmente conotável com o masculino” não saiu nada mal à criatura que hoje vos escreve daqui desta secretária suja e desengonçada, cheia de trabalho e morta de calor, hm?).
[4] Silencioso homenageia agora o masculino, sem nós por enquanto sabermos se é para melhor ou para pior. Só sabemos é que se uma mulher travasse por carta a correspondência ardente das semanas anteriores, e depois aparecesse ali a falar de trabalho, já tinha levado um par de estalos. Das amigas (“o masculino” local nunca saberia de nada), dos leitores, e de quem quer fosse que a seguir ainda que tivesse o mau gosto de vir para aqui contar a sua história.