Em Portugal, o tempo tem estado quente, como é típico do clima mediterrânico, mas sem dias demasiado sufocantes nem de longa duração. O Índice Ícaro, um indicador que mede o risco para a saúde pública, só raramente tem apresentado valores altos, mas mesmo assim a mortalidade em Agosto está anormalmente elevada. Esta situação ocorre num ano em que o número de óbitos está já mais baixo do que no triénio anterior (2020-2022), embora ainda acima dos valores pré-pandemia, indiciando que a saúde da população portuguesa mostra ainda sinais de preocupante debilidade. E ocorre também quando, cada vez mais, o Serviço Nacional de Saúde revela fragilidades, sem resposta capaz do Governo.
A mortalidade do mês de Agosto em curso está a atingir níveis bastante elevados, sendo necessário recuar ao ano de 2003 – que foi fustigado por várias ondas de calor e incêndios de grandes dimensões – para se encontrar o mês homólogo e com pior situação.
De acordo com os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), nos primeiros 25 dias do presente mês de Agosto foram já contabilizadas 7.666 mortes, mais 66 do que o valor registado no ano passado, marcado, durante todo o ano, por um inusitado excesso de mortalidade cujo estudo das causas tem sido sistematicamente adiado pelo Ministério da Saúde.
A média diária de óbitos está, neste momento, próximo dos 307, o que significa que a manter-se este ritmo até ao dia 31 o número total rondará as 9.500 mortes, o que será o segundo pior mês de Agosto desde 1980 (data de registos conhecidos), apenas ultrapassado por 2003 com 10.111 óbitos. Mas em 2003 houve uma justificação meteorológica excepcional: onda de calor entre 29 de Julho e 14 de Agosto – mais dias de calor intenso e persistente – com temperaturas máximas e mínimas sempre muito altas e humidade relativa anormalmente baixa. Este evento terá causado então uma mortalidade acrescida de quase duas mil pessoas.
Nada parecido com aquilo que está a suceder este ano, onde não houve qualquer registo de onda de calor em qualquer região do país. O agravamento da mortalidade em Agosto deste ano contrasta, aliás, com uma tendência de redução que se estava a verificar nos meses deste ano em comparação com os considerados anos da pandemia (2020, 2021 e 2022). Até anteontem, dia 25 de Agosto, e desde o início de 2023, foram registados no SICO um total de 77.130 óbitos, um valor mais baixo do que os 78.587 óbitos em igual período de 2020 (que inclui a primeira fase da pandemia) e bastante abaixo dos valores de 2021 (83.618 óbitos) e de 2022 (82.381 óbitos).
Contudo, mesmo assim, os valores de 2023, até agora, são muito superiores a qualquer ano pré-pandemia (desde 2009, em que se começou a indicar registos diários), o que em parte se deve ao envelhecimento populacional, se bem que fossem expectáveis valores mais baixos por via da “sangria” demográfica no período pandémico que sacrificou, também por via da desregulação do Serviço Nacional de Saúde, os mais vulneráveis.
Uma explicação para o crescimento da mortalidade neste mês poderia tentar explicar-se pelo tempo mais quente, embora, na verdade, Portugal não tenha registado ainda ondas de calor, que tecnicamente ocorrem apenas quando há mais de cinco dias com temperaturas cinco graus acima da média, conforme releva o conceito apresentado até pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera.
Consultando os mais recentes registos diários do Índice Icaro apenas se observa um previsível aumento de risco de excesso de mortalidade nos dias 7 e 8 e ainda entre 22 e 25 de Agosto. E, efectivamente, o valor do Índice Ícaro mais elevado este mês (0,97), observado na passada quarta-feira, coincidiu com o dia mais mortífero (362). Mas, hoje, por exemplo, o valor é já de zero.
A situação deste Agosto está assim muito longe de verdadeiras ondas de calor, intensas e persistentes. De acordo com o IPMA, nos últimos 30 anos têm-se observado mais eventos de ondas de calor extremas no período do Verão em Portugal Continental, com especial incidência nas regiões do interior Norte e Centro (distritos de Bragança, Vila Real, Viseu e Guarda) e o Alentejo (distritos de Setúbal, Évora e Beja). Os episódios mais severos de ondas de calor, com maior número e duração destes eventos, verificaram-se depois de 1990 na região interior Norte e Centro e depois de 2000 na região Sul.
Ainda segundo o IPMA, o maior número total de dias em onda de calor (918 dias) ocorreu no Verão de 2022, com a contribuição significativa da região Nordeste. Por exemplo, Bragança, Mirandela e Carrazeda de Ansiães – com 44, 42 e 41 dias, respetivamente – foram as zonas mais afectadas, embora sejam pouco povoadas.
Em todo o caso, convém referir que o mês de Agosto, em média – e incluindo mesmo os anos com períodos mais mortíferos associados a ondas de calor – é o terceiro mais “ameno” de todo o ano, apenas atrás de Setembro e Junho.
De acordo com uma análise do PÁGINA UM, no período de 2013-2022 o mês de Setembro contabiliza 7,08% das mortes, seguindo-se Junho (7,35%) e Agosto (7,46%). Os piores meses são os considerados de Inverno: Janeiro (11,16%), Dezembro (9,65%) e Fevereiro (9,17%).
Se se considerar como época de Verão os meses de Junho, Julho e Agosto – juntando Setembro a Outubro e Novembro para formarem o Outono –, também se evidencia ser o período do ano menos mortífero: concentra 22,5% das mortes, contrastando com 30,0% dos meses de Inverno (Dezembro, Janeiro e Fevereiro), caracterizados pelo frio, chuvas e maior prevalência de infecções respiratórias, como a gripe e as pneumonias.
Caso se considere agrupar os quatro meses que incluem dias de Verão (Junho, Julho, Agosto e Setembro), o contraste ainda é maior: acumulam 29,57% das mortes, que confrontam com os 38,81% das mortes dos quatro meses que incluem dias de Inverno (Dezembro, Janeiro, Fevereiro e Março). Ou seja, se as ondas de calor podem ser fenómenos temidos, na verdade o Verão continua a ser a melhor época do ano para… nos mantermos vivos.