A primeira pergunta deve ser vista em tom provocatório, porque feita por alguém que assume, desde os idos anos 90, antes do wokismo climático, a existência de alterações climáticas (que não se mede numa perspectiva meteorológica) decorrentes do aquecimento global, mas que rejeita histerismo (colectivos e individuais), hipocrisias (sobretudo políticas) e sensacionalismos (sobretudo de jornalistas) e renega, crítica e abomina toda uma corja de oportunismos ao melhor estilo do greenwashing (sobretudo de certas empresas, mas também de políticos como António Guterres), enquanto se continuam os negócios e as negociatas, e o povo, às tantas, acaba apontado como o culpado a merecer justa punição. E acredita; e cala; até concorda com a perda de direitos; e, às tantas, de liberdades – enquanto os supostos “salvadores do Planeta” viajam, comem e divertem-se para “salvar o Planeta” para aqueles que, acusados, estão “presos” para não “destruírem mais o Planeta”.
Em abono da verdade, independentemente das alterações climáticas decorrerem dos gases com efeito de estufa, o Mundo tem um paradigma energético para resolver, e que passa também por resolver problemas de poluição, de uso ineficiente de recursos. Mas a solução para tudo isto tem de vir de políticos e de diplomatas, porquanto está nas mãos da China, dos Estados Unidos e da Índia (a União Europeia não conta, pelo peso residual). E tem de ser feito sobretudo sem radicalismos e sem tentativas de ressuscitar a energia nuclear. E também passa por assumir que, provavelmente, em muitos casos a solução será a possível: a adaptação, embora com evidentes perdas e com embates geopolíticos e sociais.
Quanto à segunda pergunta, esta faz cada vez mais sentido, sobretudo no mundo ocidental onde o discurso político e mediático em redor do aquecimento global se estafa nas alegadas ondas de calor (por vezes inexistentes) supostamente terríficas e letais, e não em outros problemas decorrentes das alterações climáticas muito mais graves, como seja a redução dos recursos hídricos, o aumento do risco de incêndios (que não significa que haja incêndios e que não se possa fazer nada para evitar que o risco se transforme em dano) e as alterações profundas de habitats.
Mas esta pergunta também faz todo o sentido porque me parece essencial saber se, de facto, se notam efeitos das alterações climáticas – e do aquecimento global, portanto – na mortalidade em Portugal durante o Verão, a grande preocupação política e dos media nacionais.
Ou seja, devemos estar mesmo preocupados com as ondas de calor no Verão do ponto de vista de Saúde Pública? Ou devemos considerar esse um problema mais secundário se comparado com as outras épocas do ano, em especial com o Inverno? Ou seja, devemos repetir o que se fez entre 2020 e 2022: olhar para a covid-19 sem cuidar do resto?
Vamos então por partes. A resposta sobre se o aquecimento global está a causar em Portugal mais mortes, a resposta não pode ser dada com um simples sim, ou um simples não.
Primeiro, porque, na verdade, o matar mais ou menos, quando falamos em efeitos de alterações climáticas, requer um período relativamente longo para análise, de várias décadas. E, nessa linha, entram factores que interferem com análises simples, porque se mostra muito difícil isolar o fenómeno climático dos demais, que numa primeira análise são muito mais relevantes.
Vejamos: em Portugal, a população vulnerável – susceptível de ser afectada mortalmente por eventos associados às variações da temperatura e outras variáveis meteorológicas (chuva, humidade, vento, etc.) – foi modificando-se ao longo dos tempos quer por factores demográficos quer por factores associados à Saúde Pública e às condições sanitárias e médicas.
Apenas a título de exemplo – e é algo que escapa à maioria das análises –, saliente-se que a mortalidade infantil ainda era elevadíssima há algumas décadas, e os óbitos de recém-nascidos tinham um peso imenso. Por exemplo, em 1970, morreram ainda 10.027 bebés com menos de um ano de idade, o que representou 10,8% do total dos óbitos desse ano. Se recuarmos para os anos 50 ou ainda antes, os números são ainda mais pavorosos. No ano de 2022, o número de mortes nesse mesmo grupo etário foi de 233, representando somente 0,02% do total.
Assim, quando observamos, por exemplo, a mortalidade em meses de Verão nas primeiras décadas do século XX, salientam-se alguns picos significativos, mas não se devem a óbitos necessariamente relacionados com temperaturas extremas (letais agora para os idosos), mas mais à proliferação de doenças transmissíveis por água inquinada ou alimentos contaminados, e que causavam elevada mortalidade em bebés e crianças.
Por outro lado, o grupo de idosos foi-se alterando de forma significativa, com todas as vulnerabilidades que tal implica. Além disso, por exemplo, alguém com 65 anos em 1970 já estaria a atingir a sua esperança de vida à nascença, quando agora uma criança que nasce pode ambicionar ultrapassar os 80 anos. Uma pessoa de 65 anos de há 50 anos não apresentava as mesmas condições físicas de uma que agora tenha essa mesma idade. E a ciência médica consegue mantê-la em boas condições por mais tempo.
Acresce ainda que as condições de vida foram registando evoluções muito favoráveis, pelo que muitas doenças crónicas e agudas, antes bastante letais, são hoje raras e perfeitamente controladas.
Significa isto, de uma forma muito sintética, que a vulnerabilidade é um conceito muito fluído e dinâmico, e por isso devemos ter alguma prudência quando fazemos comparações ao longo do tempo em populações que, embora do mesmo país, não têm uma estrutura demográfica similar e muito menos um “quadro clínico” comparável. A população de Portugal de 2023 não é estruturalmente semelhante à do ano 2000 e muito menos à de 1975 ou de 1950…
Em todo o caso, uma análise para apurar se há mais ou menos mortalidade numa determinada época do ano carece sempre de se saber qual o “comportamento” das outras épocas do ano. No caso concreto de Portugal, desde sempre – e pegando, por agora, nos valores mensais desde 1951 –, o Inverno (considerando os meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro) sempre foi, e continua a ser, muito mais mortífero do que o Verão (considerando os meses de Junho, Julho e Agosto), que, apesar de toda a histeria mediática em redor do aquecimento global, se mantém como a época do ano menos mortífera.
Desde 1951, muito raramente o mês de Janeiro não é o mês mais letal – e se tal sucede, então é “substituído” por Dezembro, seguindo-se, normalmente, Fevereiro como o terceiro pior mês. Em média, o Inverno abrange 29,8% das mortes entre 1951 e 2022, variando dos 28,6% na década de 1950 até aos 30,7% da década de 1970. Na década mais recente (década de 2010), o Inverno englobou 29,6% das mortes.
Em 2021, por via da pandemia da covid-19 e de outros factores que causaram a ruptura do Sistema Nacional de Saúde, os meses de Inverno representaram 35,1% do total das mortes, sendo que 15,7% foi apenas em Janeiro (o valor mais elevado num mês desde 1951).
No oposto, o Verão sempre tem sido historicamente a época do ano menos mortal, agregando 22,0% do total dos óbitos registados entre 1951 e 2022 – uma diferença, para menos, de 7,8 pontos percentuais, o que é muito significativo. As variações por decénio não são muito relevantes: 21,5% na década de 1950; 21,1% na década de 1960; 21,4% na década de 1970; 22,5% na década de 1980; 22,3% na década de 1990; 22,6% na década de 2000; e 22,3% na década de 2010. Mesmo estando a falar de grupos populacionais distintos entre 1951 e 2020, não se observa qualquer agravamento em termos médios.
Na verdade, o Verão é a época do ano com menor taxa de mortalidade, independentemente de se considerar o período entre o solstício de Junho e o equinócio de Setembro, ou os meses de Julho a Setembro ou os meses de Junho a Agosto. Tem uma mortalidade inferior também significativamente à Primavera e ao Outono.
Numa análise mais fina, pode-se tentar identificar eventuais acréscimos de mortalidade no período do Verão ao longo das últimas décadas, mas aí deparamo-nos com a tal situação de se comparar alhos com bugalhos. Por exemplo, se definirmos que entre Junho e Agosto (que nesta análise se considera a época de Verão) a ocorrência de um mês com mais de 8% das mortes no ano relevante, então contabilizam-se seis casos na década de 1950 (dos quais cinco em Agosto e um em Julho), apenas dois na década de 1960 (ambos em Agosto), nenhum caso na década de 1970, quatro na década de 1980 (um em Junho, dois em Julho e um em Agosto), dois na década de 1990 (um em Julho e outro em Agosto), três na década de 2000 (dois em Julho e um em Agosto), e três na década de 2010 (dois em Julho e um em Agosto).
Na verdade, a maior prevalência de meses de Verão particularmente mortíferos na década de 50 não parece dever-se simplesmente a ondas de calor, mas sim a doenças potenciadas por problemas sanitários associados a temperaturas mais quentes.
Na verdade, fazendo análises estatísticas um pouco mais complexas, até se poderia concluir que existe verdadeiramente um fenómeno de crescimento da mortalidade por causa das alterações climáticas, embora depois, provavelmente, constatar-se-ia que por “troca” de um Outono mais ameno. Aliás, esse fenómeno aparenta ser evidente numa análise estatística simples desde a década de 50: a mortalidade relativa dos meses de Outono (Setembro a Novembro) tem-se tendencialmente aproximado da dos meses de Verão (Junho a Agosto).
Com efeito, na década de 50, os meses de Outono, com 26,2% do total das mortes, até eram mais mortíferos do que os meses de Primavera (algo que deixou de suceder logo na década seguinte), valor que contrastava com os 21,5% do total associados aos meses de Verão. Essa diferença – então de 4,7 pontos percentuais – foi-se atenuando até à década de 2010, não tanto por um crescimento do peso relativo da mortalidade no Verão (aumento de 0,8 pontos percentuais face à década de 1950), mas sobretudo pela diminuição da letalidade relativa do Outono (descida de 3,2 pontos percentuais face à década de 1950).
É certo que se nota uma tendência de crescimento do peso relativo da mortalidade nos meses de Verão, e com alguns picos, mas não é assim tão relevante que salte à vista – e mereça parangonas constantes –, antes sim exigem medidas preventivas adequadas e oportunas para se reduzir o impacte potencialmente letal dessas ondas de calor.
Aliás, para reforçar a necessidade de intervenção preventiva ou profiláctica – e deixar de considerar que nada se pode fazer –, exemplifiquemos com o relatado sobre os picos de mortalidade em alguns Verões da década de 1950: por certo que, com a situação sanitária e médica do século XXI, aquela mortalidade não teria sido tão elevada com as temperaturas então registadas. Portanto, criem-se condições “sanitárias” para que, independentemente das causas do aquecimento global ou dos seus efeitos, a letalidade não seja elevada quando chegarem ondas de calor.
Aliás, é olhando para o perfil da mortalidade interanual (ao longo dos anos) e intranual (ao longo dos meses) que melhor conseguimos apurar o grau de controlo que temos sobre o ambiente que nos rodeia, porque é isso que, ao fim e ao cabo, interessa saber.
E é aqui que quero levar a água ao moinho: é, na verdade, no Inverno, e não propriamente no Verão, que reside o nosso maior problema “sanitário” – e, ironicamente, um aquecimento global pode ajudar-nos indirectamente, por os meses de Dezembro a Fevereiro passarem a ser menos agrestes.
De facto, esperando que a todos seja já evidente – até pelo que acima se referiu – que os meses de Inverno são mais letais do que os de Verão, porque o ambiente nesses meses em Portugal, que aqui deve incluir Setembro (o mês menos mortífero), é mais propício para não se ser afectado por doenças e afecções.
Ora, um objectivo fundamental da Saúde Pública será sobretudo o de evitar que o ambiente externo – que inclui agentes biológicos, químicos e físicos – não constitua um factor agravante da condição e natureza humana, e de cada indivíduo (e das suas opções de vida). Daí que conseguiremos uma vitória absoluta sobre os elementos quando a distribuição do peso da mortalidade padronizada (em função da idade) nos diferentes meses e ao longo dos anos for cada vez mais homogénea. Isso ainda está longe de suceder, mas não é por “culpa do Verão”, mas sobretudo por “culpa” da nossa incapacidade (não apenas portuguesa, mas muito portuguesa) em controlar o que sucede nos Invernos.
Senão vejamos.
O Inverno não é apenas a época do ano onde mais se morre – é aquela que regista uma maior variabilidade interanual, porque, de quando em vez, os agentes meteorológicos associados aos agentes biológicos e virais se mancomunam ainda mais para causarem maiores mortandades. E isso sucede não apenas pela maior capacidade de destruição dos “inimigos”, do seu “armamento”, ou da “ferocidade” maior ou menor em cada investida, mas sobretudo pela maior ou menor capacidade de defesa do ponto de vista individual e de Saúde Pública. Dir-se-ia que há similitudes com a área militar.
Podendo-se fazer essa análise simples também para Dezembro e Fevereiro, exemplifique-se, por economia de tempo, com a situação do mês de Janeiro, como já dito o mais mortífero do ano. Em termos médios, entre 1951 e 2022, constata-se que 10,8% do total das mortes concentraram-se neste mês (Janeiro tem 8,5% dos dias de um ano). Vistas década a década, as médias não são muito diferentes, variando entre 10,3% na década de 2000 e o0s 11,2% da década de 1970.
Contudo, analisando ano a ano observam-se porém grandes variações, com picos associados sobretudo a período de gripe associados a condições meteorológicas mais agrestes, às quais os mais vulneráveis não ficaram protegidos. E quanto mais idosa se tem tornado a população mais estragos “causam” os Janeiros mais inclementes.
Assim, para Portugal, se consideramos como fasquia definidora de um Janeiro particularmente letal um peso relativo superior a 12%, detecta-se um ligeiro agravamento da mortalidade ao longo das últimas décadas, o que sendo expectável, não é o desejável. Assim, com mais de 12% do total das mortes não encontramos nenhum Janeiro na década de 1950, temos dois na década de 1960 (1965 e 1970), mais três na década de 1970 (1973, 1976 e 1978), mais um na década de 1980 (o Janeiro de 1990), mais dois na década de 1990 (1997 e 1999), nenhum na década de 2000, e dois na década de 2010 (2015 e 2017).
Se acrescentarmos o Janeiro de 2021 (15,7% das mortes, por via da pandemia e ruptura do Serviço Nacional de Saúde, até porque a mortalidade não-covid foi também elevada), verificamos que nos últimos 25 anos contabilizam-se cinco Janeiros registando uma mortalidade com peso superior a 12% do total anual. No período de 1951 a 1975 (também 25 anos), contam-se três Janeiros nestas condições.
É certo que a estrutura etária é bastante distinta, mas aquilo que se pretende mostrar é que os Invernos são tão ou mais agrestes no presente do que no passado, mesmo se temos melhor tecnologia e melhores cuidados médicos e sanitários.
Obviamente, a manutenção da maior vulnerabilidade aos Invernos deve-se, em grande parte, à crescente prevalência de idosos, mas, se assim é, então não se compreende que seja dado um enfoque exclusivo à protecção dos idosos contra as potenciais ondas de calor no Verão. Qual é, afinal, o motivo para se dar tão pouca importância à desprotecção deste grupo etário nos meses de Inverno?
Por isso, esta análise ao aquecimento global, tem como objectivo principal um alerta: para que se cuide melhor da saúde dos vulneráveis no Inverno – é nessa época do ano que há ainda muito a ser feito. Muito mais. E não se tem feito, do ponto de vista político, quase nada.