Título
Vínculos ferozes
Autora
VIVIAN GORNICK (tradução: Maria de Fátima Carmo)
Editora (Edição)
Dom Quixote (Julho de 2023)
Cotação
18/20
Recensão
Há livros que escrevem a sua própria história, sem que se perceba porque são ignorados quando são publicados, e têm um sucesso enorme tempos depois. Foi o que se passou com este Vínculos ferozes. Foi publicado pela primeira vez em 1987, mas só acabou catapultado para o sucesso recentemente, pelos críticos literários do New York Times que o consideraram o Melhor Livro de Memórias dos Últimos 50 Anos.
Os críticos elogiaram-no pela avaliação crua e honesta que a autora faz sobre uma relação habitualmente não escrutinada nem por ensaios nem por ficção: a relação entre mães e filhas. Neste caso, entre a própria Vivian e a sua mãe. Trata-se de um livro autobiográfico, que explora a natureza do vínculo mãe-filha e, surpreendentemente, nos mostra como nem sempre é um relacionamento saudável.
Escritora de não-ficção e crítica literária, Gornick normalmente escreve sobre assuntos polémicos, incluindo política e questões de género, mas, neste livro, explora tópicos familiares sob novos ângulos: o que significa ser mulher, mãe e filha. Refclete sobre o seu próprio relacionamento com a mãe, “Ma”, e o que esse vínculo filial lhe ensinou sobre feminilidade.
Há muitas maneiras de ser mãe, e as outras influências femininas são tão importantes para as filhas em crescimento, quanto a influência das próprias mães. É isto que a autora explora. O relacionamento de Vivian Gornick com a mãe é difícil. “A minha relação com a minha mãe não é boa e, à medida que as nossas vidas se acumulam, parece muitas vezes piorar. Estamos encerradas num canal relacional estreito, intenso e vinculativo” (pág. 12).
Aos quarenta e cinco anos da autora, elas encontram-se regularmente para passear pelas ruas de Manhattan. Esses passeios levam-nas a recordações nostálgicas da Nova Iorque do tempo da infância de uma e idade adulta de outra. Os diálogos são, por vezes, amistosos e cheios de sentido de humor mas, na maioria das vezes, essas caminhadas são ofuscadas por níveis de desprezo, irritação e raiva tão fortes que a mãe chega a interpelar estranhos na rua e dirá: “Esta é a minha filha. Ela odeia-me”.
A narrativa passa-se então entre estes momentos do presente e as memórias do passado da autora. Vivian Gornick começa o livro com uma das suas primeiras recordações: tem oito anos e mora num bairro judeu, no Bronx, com Ma, que passa a maior parte do tempo a julgar as vizinhas do prédio e o que elas fazem. Tudo é objeto de escrutínio, o que fazem, o que compram, com quem se dão socialmente. Quem entra e sai das suas casas.
Gornick reflete sobre o papel da mãe na sua educação, mas escreve também sobre as outras mulheres que moldaram a sua juventude, transformando-a na mulher que agora caminha com a mãe. Está particularmente grata a Nettie Levine. Nettie morava do outro lado do corredor do prédio, da sua infância, e era o oposto de Ma: coquete, liberal e feminina. Encorajou Viviane a "flirtar", namorar e a usar os seus encantos femininos. Para Gornick, Nettie e Ma representavam os dois modelos antagónicos de feminilidade, e ela lutou, ao longo da sua vida, para os conciliar.
A mãe é ousada e obstinada, ela realmente quer o melhor para a filha, mas adora controlá-la. A tensão aumenta em casa. A casa da vizinha é um refúgio para a adolescente. E é neste diálogo de aproximação e de ruptura que toda a narrativa do livro nos vai levando num vai e vem de amor e de ódio.
Vivian ama muito Ma, mas não a vê através de lentes cor-de-rosa. Vê-a como ela realmente é: não a sua mãe, mas uma mulher imperfeita com tantos defeitos como qualquer outra pessoa. Só quando crescemos é que vemos os nossos pais como pessoas reais e isso nem sempre é uma experiência agradável.
A autora escreve também sobre si própria na amizade, no casamento, como filha, como uma mulher que vive sozinha em Nova Iorque e como uma escritora que tem dificuldade em escrever. Há momentos em que descreve as suas lutas e os seus fracassos com tanta franqueza calma que parece não haver nada sobre si que tema falar.
É, por tudo isto, um livro brilhante, que nos deixa a pensar, e permanece por muito tempo na nossa mente.