A estrutura de atendimento de doentes hoje é uma escada de insatisfação. O primeiro degrau é o das pessoas, elas mesmas, que estão insatisfeitas com a vida, com o custo desta, e com a desesperança de trabalhar e não conseguir sair da cepa torta. Trabalhar não garante Habitação, Educação, Segurança, Justiça e Saúde. Mais grave é que não garante aquecimento ou conforto. É o maior falhanço da governação portuguesa.
Isto traduz-se em depressões, ansiedades, desespero, relações doentes. Casa onde não há pão…
O degrau seguinte é buscar soluções gratuitas onde se inclui o recurso a urgências hospitalares. As urgências servem para suprir a falta de Medicina Familiar, a má prestação aos cuidados continuados, a ausência de apoios eficazes nos lares, os constrangimentos criados sobre as consultas privadas.
Em França, a opção pode ser consultar um clínico, fazer os exames que pede e o dinheiro segue o paciente. Assim se retiram milhares de pessoas de urgências sobrelotadas. É o misto entre público e privado. Aqui a ideologia não quer. Se tenho um problema de pele poderia ir a um atendimento dermatológico. Se a próstata me perturba ia a um urologista.
Deste modo, o Estado pagava o valor que custam estes atendimentos, directamente aos clínicos nos seus espaços. Mas claro que a ideologia tem destruído, com milhares de regras e certificações, o exercício privado e pessoal da Medicina.
Os constrangimentos forçaram a encerrar o que nunca causou problemas, para agora produzir monstros empresariais que abrem como cogumelos na voracidade das seguradoras.
O degrau seguinte foi encerrar portas de atendimento para barrar o acesso desta vertigem que são as queixas miúdas, as queixas pequenas. Os doentes não sabem se o que agora sentem é grave, mas ouvem esses canais televisivos de estupidez sem fim a lançar o pânico, a conduzir a discursos de medo. Podiam verter a estratégia em ensino, em formação do simples, em atendimentos por Whatsapp filmados em directo. O queixoso adoraria ver-se na TV e a sua questão respondida em directo seria uma aula. Torci o pé, apareceu-me rubor na mama, hoje tenho o rabo quente, sinto este sinal a crescer… Construíamos doutores da mula russa, mas agora com a experiência de terem visto algo semelhante na TV.
O degrau maior é o espaço de urgências como a do Hospital dos Covões, onde um ou outro médico se atreve a enfrentar a horda de queixosos que não tem outro lugar onde ir. São dezenas de pedintes de clemência e ajuda por aquilo que não sabem se é grave, mas não têm outra porta, ou não a querem usar, ou acham que nas urgências é melhor.
A verdade é que esperam, fazem alguns exames, são vistos de modo indiferenciado entre indigentes mal comportados, loucos sem soluções na actual organização dos serviços públicos psiquiátricos, ansiosos crónicos, superutilizadores de urgências (milhares inscrevem-se mais de 15 vezes por ano em urgências, além de consultas, atendimentos privados), etc.
Neste processo, a gestão não se preocupa com os tempos de espera, não se preocupa com a falta crónica de agentes de qualidade, com agentes médicos que aportam eficiência. A urgência dos Covões é já uma anedota e um case study do que não devia estar aberto no sistema.
O problema não são os doentes, nem os serviços, mas a ausência de uma Administração Regional de Saúde (ARS), a ausência de liderança do sistema. Uma ARS ausente, de cabeça enterrada na areia, sem soluções de atendimentos, sem avançar estudos sobre a satisfação dos doentes.
Hoje, dezenas de doentes abandonam as urgências, vencidos pelo cansaço, tentando soluções que desconheço, fugindo do desespero que é ser pobre apesar de trabalhar.
A realidade é uma trovoada de desinteresse, um lugar onde o director de urgência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) nunca aparece, onde o gestor-mor do CHUC nunca se inscreve para perceber aquilo que construiu. Ando tão envergonhado desta peça de teatro em que me colocaram de actor!
Diogo Cabrita é médico
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