Por via de uma suposta (e muito estranha) interpretação da lei de protecção de dados, o Hospital de Loures – também conhecido por Hospital Beatriz Ângelo – não divulgou no Portal Base ainda nenhum dos poucos contratos escritos que assinou desde a passagem daquela unidade de saúde para a esfera pública. Se se juntar isto às centenas de contratos em que se recorreu a regimes de excepção para que nem fossem sequer reduzidos a escrito, fica-se com uma ideia da opacidade nos gastos públicos. Segundo o levantamento do PÁGINA UM, desde Janeiro de 2022, este hospital contabiliza 1.262 contratos, envolvendo quase 76,5 milhões de euros. Um caso paradigmático de opacidade na gestão hospitalar. Ou um caso de polícia.
Em duas dezenas de meses na esfera pública, após o fim da parceria público-privada no início de 2022, o Hospital de Loures não colocou nenhum dos 1.262 contratos celebrados até hoje no Portal Base respeitantes à aquisição de bens e serviços. O montante envolvido atinge já quase 76,5 milhões de euros, desconhecendo-se assim detalhes fundamentais sobre os compromissos assumidos entre a administração hospitalar e centenas de fornecedores.
Esta situação insólita – pelo menos, até agora o PÁGINA UM nunca detectou similar situação em outras entidades públicas – deve-se em parte à sistemática opção do Conselho de Administração do (também conhecido por) Hospital Beatriz Ângelo em celebrar contratos recorrendo a regimes de excepção no Código dos Contratos Públicos que não exigem a redução dos contratos a escritos quer por serem montantes inferiores a 20 mil euros quer por estarem previstos em contrato público de aprovisionamento – também denominados acordos-quadros –, quer por alegada “urgência imperiosa”.
No entanto, mesmo em contratos de montantes elevados – e o Hospital de Loures celebrou já 13 contratos entre um milhão de euros e 3,2 milhões de euros –, grande parte dos quais por concurso público, a administração do Hospital de Loures decidiu unilateralmente, e sem base em qualquer parecer conhecido, invocar o Regulamento Geral da Protecção de Dados (RGPD) para não disponibilizar o teor dos contratos.
Assim, apesar da lei exigir expressamente que os contratos públicos que tenham sido escritos e assinados pelas partes, incluindo assim a identificação dos gestores públicos, sejam divulgados na íntegra no Portal Base a digitalização do texto assinado entre as partes –, o Hospital de Loures decidiu, de forma invariável, colocar uma “declaração” do vogal do Conselho de Administração, Rui Moreira.
Nessa curta declaração, o administrador justifica que não se submete “o respetivo Contrato escrito, para efeitos de proteção de pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais, nos termos constantes do RGPD e na Lei nº 58/2019, de 8 de agosto”.
Porém, o RGPD apenas protege dados pessoais que, além do endereço, revelem a origem racial ou étnica, opiniões políticas e convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, dados biométricos e de saúde, e ainda dados relativos à vida sexual ou orientação sexual da pessoa – que não são, de todo, dados inseridos num contrato público, onde por norma, quem assina é identificado pelo nome, pela função e pelo número de identificação civil e/ ou fiscal.
Mas mesmo que existisse algum elemento sensível, o contrato deveria sempre ser publicado, expurgando somente algum dados específico, até em cumprimento da lei invocada pelo Hospital de Loures.
Com efeito, a Lei nº 58/2019 – também conhecida por Lei da Protecção de Dados Pessoais – refere explicitamente que, “no âmbito da contratação pública, e caso seja necessária a publicação de dados pessoais, não devem ser publicados outros dados pessoais para além do nome, sempre que este seja suficiente para garantir a identificação do contraente público e do cocontratante.” Ou seja, em nenhuma parte deste diploma surge a possibilidade de não se publicar um contrato por via de uma suposta protecção dos participantes do contrato. Aliás, se assim fosse, a opacidade na contratação pública passaria a ser total.
Contactado pelo PÁGINA UM, o Conselho de Administração do Hospital Beatriz Ângelo diz, contudo, que está a ser dado “cumprimento integral, pelos serviços competentes deste Hospital, do dever de publicitar todos os procedimentos aquisitivos previstos na Lei”, e que as sucessivas declarações de Rui Moreira “resulta da existência de dúvidas sobre a forma de conciliar esse mesmo dever de publicitação com o cumprimento das regras do RGPD aplicáveis aos signatários não públicos, que apenas recentemente foram dissipadas junto das entidades competentes, possibilitando retomar a prática subjacente à sua publicitação.”
Perante esta resposta, o PÁGINA UM pediu novos esclarecimentos para saber “quem, no seio da Administração do HL [Hospital de Loures] teve essa dúvida” sobre a divulgação dos contratos até agora escondidos, e “como foram elas dissipadas”. Também se questionou se essa decisão foi tomada em reunião do Conselho de Administração, e se existe acta. E, de igual modo, solicitou-se cópia de um eventual parecer jurídico que comprovasse que, efectivamente, houve dúvidas – e não uma tentativa de esconder contratos públicos.
Em resposta, o secretariado da Administração do Hospital de Loures – que também foi questionado sobre um contrato específico que será abordado em breve pelo PÁGINA UM – diz que “consideramos suficientes ao correto enquadramento das questões previamente suscitadas e à comprovação de que o Hospital de Loures, E.P.E. – Hospital Beatriz Ângelo (HBA), adota procedimentos adequados para aquisição dos fornecimentos de que depende o seu funcionamento e o cumprimento da Missão assistencial com que se encontra superiormente comprometido (…), procedendo igualmente e em todos os casos à sua publicitação em termos que garantem o respeito pelo princípio da transparência, sem deixar de acautelar a necessária compatibilização com outros preceitos legais, neste caso os decorrentes do RGPD, e a forma correta da sua interpretação e harmonização efetivas, caso a caso.”
E acrescenta ainda que, “à luz da mais recente interpretação dos diferentes princípios e preceitos legais supra referidos, encontram-se os serviços competentes deste Hospital a operacionalizar a publicitação também dos Contratos resultantes desses mesmos procedimentos, quando reduzidos a escrito.”
De acordo com uma análise do PÁGINA UM, o Hospital de Loures já estabeleceu 705 contratos por ajuste directo, 533 ao abrigo de acordos-quadro e apenas cinco após consulta prévia e 19 por concurso público. Nos ajustes directos, a Administração deste hospital já gastou mais de 27,1 milhões de euros, destacando-se cerca de 10,1 milhões de euros em produtos farmacêuticos, quase 10 milhões em material médico de consumo, perto de 1,5 milhões de euros em serviços de informática e um pouco mais de 750 mil euros em equipamentos médicos.
No caso dos 533 contratos ao abrigo de acordos-quadro, o montante despendido ultrapassa os 35,3 milhões de euros, sendo na esmagadora maioria relativos a compra de medicamentos. Já quanto aos contratos por concurso público, embora sejam apenas 19 resultam num valor total significativo: 13,9 milhões de euros, estando aqui sobretudo a aquisição de serviços de limpeza, lavagem de roupa, segurança e alimentação. Mas destes pouco sabe, porque não há contratos divulgados.