VISTO DE FORA

Os senhorios também gostam da inflação

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Quando tratamos os senhorios como um todo – uma espécie de perigosos especuladores –, corremos o risco habitual das generalizações. Em princípio, vamos misturar o trigo com o joio, e do mesmo saco tiramos o ganancioso capitalista e o gajo que foi viver para outro país e deixou a casa alugada por um preço decente.

Devo dizer, para início de conversa, que o argumento de que “cada um mete o preço que quer na sua propriedade”, é algo que me irrita particularmente. Quando a liberdade se confunde com o puro bom senso e toma lugar a procura do lucro fácil à custa da miséria alheia, eu acho muito bem que o Governo tome medidas para beneficiar os mais desprotegidos.

Colorful Buildings in City Downtown

Dou-vos dois exemplos que ilustram o que pretendo dizer.

Se uma pessoa contrai um empréstimo bancário para compra de casa e, passados uns tempos, vai trabalhar para outro país, acho perfeitamente lógico que a alugue por um preço que cubra a prestação ao banco e as despesas inerentes. O mesmo é dizer que se a Lagarde passar os juros para o triplo, também é normal que essa carga acabe no inquilino, uma vez que é ele que lá vive. O senhorio nesse caso continua apenas a cobrir as despesas e os aumentos a que é alheio. Não há qualquer busca  pelo lucro fácil. 

Já se um apartamento nos cair no colo, por herança ou qualquer outra razão, e o resolvermos alugar, praticamente toda a receita é lucro. Neste caso, admito, já tenho mais algum dificuldade com conversas de inflação e juros que pouco ou nada afectam as despesas da casa. Claro que podemos sempre dizer que cada um pede o que quer e só aceita quem quer. É verdade. Mas não é propriamente um bom princípio de convivência social e muito menos um caminho com grande futuro.

Se num país com falta de habitação – embora existam mais casas do que pessoas –, especialmente a preços que os baixos salários possam suportar, deixarmos o preço do arrendamento ser decidido, apenas, por quem procura uma mina de ouro no meio do empobrecimento geral, em princípio não vamos muito longe.

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Reparem que nada disto é muito difícil de perceber. Provar as despesas que se tem com uma casa, começando pelo crédito à habitação, é relativamente simples. Portanto, não é uma equação impossível perceber quem é que lucra muito com a especulação imobiliária. 

Dito isto, o tecto de 2% imposto pelo Governo para o aumento das rendas é mais uma daquelas medidas do governo do PS que servem para muito pouco. Darão eventualmente uma linha no próximo PowerPoint de programa eleitoral mas, para a vida dos inquilinos que sofrem para aguentar as casas, não trará grande protecção.

Como explica a própria associação nacional de senhorios, num rasgo de inteligência a lembrar um chco-esperto de Alfama: “se o Governo anuncia um aumento máximo de 2% para daqui a não sei quanto tempo, os senhorios aumentam 30% já e ficam garantidos para os próximos anos”. E volta a meter o palito na boca para tirar os último fios do pastel de bacalhau ingerido no jantar do dia anterior.

Há no entanto um argumento que é válido do lado desta malta. Segundo eles, se todos os outros sectores não são prejudicados pela inflação, leia-se, restaurantes, supermercados, bancos, etc., por que razão não podem os senhorios aumentar os preços de acordo com a inflação? Ou seja, se os outros mamam, por que não podemos nós também?

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Esta é uma argumentação que me lembra uma conversa, há uns meses, com um senhor que trabalha em jardinagem. Dizia ele: “se o carpinteiro, pintor e canalizador dobraram os preços, sou eu que vou cobrar o mesmo?” Na altura, disse-lhe que se os gastos dele eram exactamente os mesmos, tanto na mão de obra como nos materiais e não perdia dinheiro, qual era a necessidade de dificultar a vida aos clientes cujos salários, esses sim, estavam a perder poder de compra. Ao que ele respondeu, insistindo que, se o pintor podia, ele também.

Ora o senhor da associacão nacional de senhorios segue este tipo de lógica, e eu percebo-o. Se os bancos ganharam um jackpot com a inflação nas prestacões das casas e o Costa não fez nada, tem agora que vir chatear a cabeca aos senhorios? Visto assim até os compreendo. Se a Lagarde aumenta os juros só porque lhe apetece, não pode o gajo que tem um T0 na Mouraria fazer o mesmo, agora que nenhum russo lhe quer comprar aquilo? Claro que pode. E se o Costa disser que só pode aumentar 2% com a inflacão nos 5%, ele adianta logo um simpático 28% ao inquilino e depois da guerra acabar, olha, paciência. Segue jogo e fica como está.

Há uma regra na Suécia para casas compradas em regime de cooperativa que me agrada particularmente: ou vives lá ou então vendes. Se estiveres com um pé dentro e outro fora, podes alugar durante dois anos. Findo esse período, tens de decidir. Viver ou vender, não há cá lucro gerado para ninguém com filas enormes para conseguir casa. É a chamada optimização de recursos e o combate possível à especulação imobiliária.

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O problema do governo PS é que navega sem rumo há já tempo demasiado, tendo em conta o tempo que ainda falta para as eleições legislativas. Costa anuncia medidas em pacotes cheio de flores e intenções, mas com pouquíssima aplicação prática. Quando vamos a ver, somos um país de paus mandados da União Europeia. Se o Banco Central Europeu aumenta os juros, nós dizemos que sim e os bancos nacionais fazem o que bem entendem.

O Governo não pensa, por exemplo, em devolver parte desses juros em sede de IRS. Se a Lagarde diz para não pagarmos prestações sociais, nós deixamos as pessoas sem nada. Se os supermercados aumentam os preços até ao limite do insuportável, resistimos a colocar tectos, porque isso é muito Venezuela. Os governos portugueses limitam-se a gerir apoios comunitários e pouco mais. Não conseguem ver para lá do próprio interesse e da próxima eleição.

Enquanto vivemos este autêntico inferno – onde é suposto acomodarmos a ganância de toda a gente, desde bancos privados a senhorios que aproveitam a oportunidade, passando por cadeias de distribuição que agarraram este momento único –, aceitamos que a única coisa que fica absolutamente fixa, segura e imutável, é o salário. Esse, na melhor das hipóteses, ficou poucos pontos percentuais abaixo da inflação. Andam os sindicatos a fazer greves por todo o país por salários que já andam de braço dado com a Sérvia e a Moldávia.

A cantina onde de vez em quando compro um iogurte, mudou o seu preço pelo menos três vezes nestes últimos meses. De 3 para 4,5 euros. Sempre, mas sempre, com a justificação da Ucrânia, quando o leite e tudo o que lá está dentro, é produzido aqui na cidade ou arredores. Um simples copo de vinho, num banal restaurante italiano, custa agora quase 8 euros. Também por causa da Ucrânia, essa famosa exportadora de vinho. 

granola and yoghurt filled mason jar

Há um conjunto de negócios que aproveitam, sem margem para dúvidas, esta oportunidade de lucrar como nunca.  Senhorios, pelo menos alguns, estão dentro do grupo de pessoas ou entidades que não querem ficar de fora desta autêntica lotaria. A perda do poder de compra dos trabalhadores é real, os salários pouco ou nada mexem, mas, no fim, temos que olhar em volta e aceitar que todo o resto do mundo precisa de vender o seu produto de acordo com a inflação. 

António Costa, um político hábil, como se sabe, vem desde a pandemia a governar ao sabor do vento e sem um real plano de futuro. Tapa buracos com areia, em estradas ventosas. Pior do que percebermos onde estamos é não vermos grande alternativa. Imagine-se um Governo do PSD com liberais e extrema-direita, num período em que as pessoas precisam de ajuda como nunca.

Resta-nos continuar a empobrecer e ir distribuindo o pouco que temos por bancos, supermercados e senhorios. Viver, pelo menos como a vida merece ser vivida, isso fica para a próxima geração.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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