Recensão: A Maldição da Noz-Moscada

Quo vadis, Humanidade?

por Paulo Moreiras // Setembro 15, 2023


Categoria: Cultura

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Título

A maldição da noz-moscada

Autor

AMITAV GHOSH (tradução: Miguel Romeira)

Editora (Edição)

Elsinore (Junho de 2023)

Cotação

18/20

Recensão

Confesso que estava um pouco reticente em levar este livro na bagagem para preencher a ociosidade dos meus dias de veraneio. As férias pediam leituras mais ligeiras, para não dar muito trabalho ao miolo ou narrativas que fossem bem-dispostas, de preferência na companhia de um branco fresquinho. Como se diz, espalhei-me ao comprido – mas ainda bem.

A partir de um episódio ocorrido em 1621 numa das ilhas Banda, no território das Molucas, na actual Indonésia, o romancista e ensaísta indiano Amitav Ghosh (n. 1956) tece uma teia de relações entre os factos aí ocorridos, o massacre de toda a população local (provavelmente um dos grandes genocídios esquecidos pela História), e as presentes alterações climáticas que afectam todo o planeta. Uma alucinante viagem por tudo aquilo que o Homem (leia-se o Homem Branco e Ocidental) foi fazendo e provocando em vários lugares do globo, interferindo com a Natureza nas mais variadas maneiras, com consequências devastadoras. 

Naquele tempo vivia-se uma corrida às especiarias, caracterizada pelo autor como “a corrida espacial da época”, em particular a tão demandada noz-moscada (Myristica fragans). Para a colher era preciso atravessar meio mundo. Com isso, “ao viajarem pelo mundo conhecido, a noz-moscada, o macis e outras especiarias fizeram nascer rotas de comércio que atravessavam o oceano Índico e entraram por África e pela Eurásia.” 

A noz-moscada, além do uso culinário, também era procurada devido às suas propriedades medicinais, sendo cobiçada como símbolo de luxo e de estatuto: “No final da Idade Média, a noz-moscada tornou-se tão valiosa na Europa que uma mão-cheia pagava uma casa ou um navio.”

Ao analisar este caso, a eliminação do povo Banda, levada a cabo pelos holandeses a fim de assegurar o monopólio do comércio da noz-moscada, Amitav Ghosh estabelece paralelismos com outros episódios ocorridos em diferentes partes do Mundo e em outros tempos, como o caso das tribos indígenas nos Estados Unidos da América ou no Amazonas, e de como, ao destruíram as suas maneiras de viver, acabam por destruir todo um equilíbrio existente, com repercussões, por vezes, difíceis de alcançar. 

O autor desdobra-se em múltiplas e inteligentes abordagens, seguindo um fio condutor, a acção do Homem Branco e Ocidental, tido como o pináculo do mundo civilizacional, contra um outro Mundo, inferior, o dos outros, vistos como “bestas”. Abordagens essas que vão desde a biologia ao racismo, da escravidão aos actuais movimentos como o Black Lives Matter.

Este é um livro que exige um certo nível de concentração, não por apresentar um discurso complexo, muito pelo contrário: explana uma narrativa bastante fluída, com diferentes histórias que se vão interligando numa malha mais ampla, quase gigantesca. A concentração é necessária para, com cada uma dessas histórias ou curiosidades (que são mesmo imensas), como se fossem folhas, não só conseguirmos ver a árvore como toda a floresta de conhecimento que o autor nos oferece.

Uma leitura que além de ser um murro no estômago, provoca também um nó na garganta e um aperto no coração: o que andámos nós a fazer para deixar o Mundo neste estado?

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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