Um destes dias, podíamos começar a descascar a pele de “empresa-modelo” que a Autoeuropa anda a vestir há 30 anos. A conversa em torno do layoff fez-me lembrar a primeira vez que ouvi falar em “down days” como forma de compensar as baixas de produção e os reduzidos aumentos salariais. Aqueles plenários de trabalhadores realizados na cantina que tinha o melhor arroz-doce industrial alguma vez fabricado. Sim, a qualidade do arroz-doce é muito importante na negociação dos meus contratos de trabalho.
Lembro-me de não ter ficado desagradado com a situação. Era temporário, mais dias de férias não soavam mal, e com vinte e poucos anos ainda havia o sonho de um dia o salário chegar a qualquer coisa que se visse. Era o meu primeiro emprego, não conhecia outra realidade.
Hoje, quando leio as notícias sobre a Autoeuropa, reparo que os “down days” temporários ainda por lá andam duas décadas depois. O crescimento salarial ainda é uma miragem e, como boa parte das empresas portuguesas, a Autoeuropa baseia o seu lucro em mão-de-obra qualificada e mal paga. Ou como se dizia por lá: “se não fosse para explorar, todas as fábricas do grupo seriam na Alemanha”.
É assim que funciona o estilo de vida a que chamamos capitalismo. Produz-se em zonas onde a mão de obra é barata para se vender no Mundo pela maior margem de lucro possível.
Este ciclo deixa de funcionar se o país produtor evoluir e a mão-de-obra deixar de ser barata. No final do século passado, a cadeia de produção concentrava-se no leste europeu e na Península Ibérica, por serem essas as zonas mais pobres. Com o crescimento dos salários um pouco por toda a Europa, vimos no século XXI a grande deslocação das fábricas para a Ásia, nomeadamente para a China. Mas também Vietname, Camboja e Laos, entre outros.
Portugal é, ou devia ser, um caso de estudo neste campo, porque, enquanto boa parte da Europa deixou de ser atrativa para o capital, Portugal conseguiu manter-se ao longo de décadas como um país de mão-de-obra qualificada e baixos salários. O único exemplo que a “empresa-modelo” da Autoeuropa nos dá é o de mostrar como, continuamente, consegue manter os salários baixos e os lucros altos. Isto enquanto vai recebendo apoios fenomenais dos governos portugueses para nos fazerem o favor de continuar por cá. De facto, são um exemplo, mas nem por isso bom.
Por estes dias discute-se de que forma os trabalhadores e os impostos de todos devem uma vez mais ir em auxílio da Autoeuropa.
A história é relativamente simples de perceber. Um fornecedor de uma peça do motor, situado na Eslovénia, viu a sua produção e respectivo fornecimento à Autoeuropa serem interrompidos depois das graves cheias que afectaram o país. A Autoeuropa foi obrigada a parar a linha de montagem e mandar os trabalhadores para casa. É aqui que começa o busílis. Como de costume num sistema capitalista, os lucros são divididos por accionistas e as migalhas ficam para os trabalhadores. Mas no momento de dividir o prejuízo, a fatia já deve ser dividida por quem vende a mão de obra e, sempre que possível, pelos governos locais.
Para compensar as perdas originadas pela paragem da linha de montagem, a Autoeuropa usou a ferramenta legal do layoff, ou seja, um apoio público para comparticipar os salários dos seus trabalhadores. Ao mesmo tempo, despediu alguns temporários provando a razão pela qual as empresas gostam deste tipo de contratação. Em momentos de aperto não há direitos sociais que segurem estes trabalhadores. São despedidos com pouquíssimo tempo de aviso e passam a ser um problema da Segurança Social. Portanto, são precários durante anos com o luxo de poderem planear a vida ao sabor do mercado. Ou de catástrofes naturais no centro da Europa.
O layoff tem dois problemas logo à partida. Usam dinheiro público para cobrir prejuízos privados e não comparticipam os salários a 100%. Se bem se lembram, durante o regabofe dos confinamentos, várias empresas recorreram a este expediente, receberam as ajudas do Estado e depois despediram os trabalhadores na mesma.
Mariana Mortágua disse que o Governo devia comparticipar o layoff a 100% para não prejudicar ainda mais estes trabalhadores. Ora… é aqui que o problema reside, na minha opinião.
O layoff, como está desenhado, não faz sequer sentido. Os trabalhadores não podem perder salário, isso parece-me óbvio. Especialmente, quando já estão a perder poder de compra por causa da inflação, mas não pode também ser o erário público a cobrir os erros de gestão privados.
O grupo Volkswagen, a que pertence a Autoeuropa, foi em 2022 o terceiro mais rentável do Mundo. No primeiro trimestre do presente ano apresentou um lucro de 33 mil milhões de euros. Precisa uma empresa destas de usar a Segurança Social portuguesa para acomodar erros próprios de gestão? É culpa do contribuinte português que usem um sistema de logística com stocks pequenos para reduzir custos? Deve o operador de linha, que ganha pouco mais de 1000 euros, doar parte do seu salário para cobrir os prejuízos deste trimestre?
Não. É exactamente nestas alturas que o tão apregoado mercado deve funcionar. A empresa deve assumir sozinha os riscos da sua gestão e cobrir as despesas. Não pode ser o contribuinte português a pagar e muito menos os trabalhadores da própria Autoeuropa, que já se sacrificam há anos para contribuir para os lucros fabulosos a troco de baixos salários.
Os accionistas que ficam com a maior fatia do lucro, que dividam entre eles o prejuízo. Não é isso que defendem os amantes da modalidade? O Estado longe dos negócios, é o que nos dizem. Pelo menos até que chegue o momento de pagar os prejuízos.
Outra coisa que esta crise nos explica é o perigo da contratação de temporários em alternativa aos efectivos, protegidos pelo contracto colectivo de trabalho. Num país com pouco emprego e baixíssimos salários, a contratação de precários é um cancro que não permite estabilidade ou sequer desenvolvimento profissional dos trabalhadores. São descartáveis a cada falha nos lucros, como se percebe.
Uma coisa é trabalhar nesse regime em países desenvolvidos e com uma oferta de emprego, que permite que um temporário seja, na prática, um efectivo que vai mudando de empregador. É um regime laboral que conheço bem e que tem lógica em zonas de elevada produção e crescimento económico.
Em Portugal, um país com escassez de emprego e cada vez menos produção, ser temporário é viver o dia-a-dia sem poder planear seja o que for. É como fazer uma pausa no desenvolvimento normal de um adulto e do que se imagina ser uma vida profissional e familiar, enquanto se reza ao São Pedro por chuvas fracas na Eslovénia. É no fundo, sobreviver, em vez de poder viver.
Não há como uma boa crise para nos explicar que as empresas dependem dos seus trabalhadores e não o contrário. E é escusado repetirem a conversa do “vão-se embora como a Opel da Azambuja”. Se em todos os países pobres lhes disserem o mesmo, eventualmente chegará o dia em que a retribuição justa do trabalho acontecerá, à custa das margens de lucro e não do esforço de quem trabalha.
A Autoeuropa é um mito. Não é exemplo, muito menos que se recomende, para ninguém.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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